Capítulo 2
Era o local mais
distante que já estivera de sua casa, portanto fez questão de entrar com o pé
direito: tropeçou e foi direto ao chão, pois não estava acostumado com degraus
tão altos.
Quase ninguém
parou com a correria e antecipação de seus dias na Estação Pérola, os poucos
que ficaram não sabiam se riam ou ajudavam, consumidos por uma estranheza
divertida e curiosa. Um homem trajado em uniforme aproximou-se para ajudá-lo,
mas não fazia mais do que sua obrigação.
— Ei, garoto,
você está bem? — perguntou, agachando-se para ficar da mesma altura que ele.
— Já levei
tombos piores, mas esse foi engraçado, né?
— Bem... Só
espero que não tenha se machucado. Foi uma queda e tanto.
O homem revelou
um sorriso, contente por certificar-se de que sua manhã continuaria tranquila. Quando
ficou de pé, Ralph teve que olhar para cima:
— O senhor é... enorme!
— Você é novo
ainda, aposto que vai crescer — o homem de uniforme falou enquanto passava a
mão nos cabelos avermelhados do garoto. Ralph tirou um papel meio amassado de
sua mochila e começou a observá-lo.
O funcionário o
olhava intrigado, até que por fim decidiu perguntar:
— Precisa de
ajuda?
— Moço, sabe dizer
onde posso encontrar esse lugar? — Ele entregou o documento. — Me surpreendi ao
ser convocado, pensei que seria só mês que vem.
— Os
incontestáveis quinze anos. — O funcionário riu enquanto lia o papel sem muita
atenção. — Em breve teremos um grande soldado, não?
O guarda apontou
para um grupo de jovens que se unira ao descobrirem que compartilhavam
semelhanças, como a dúvida, a insegurança e o desgosto pelos geckos. Era
incrível como os humanos se ajeitavam em grupos tão rápido, como uma espécie de
modo de defesa. Talvez andassem assim por se sentirem mais fortes e protegidos.
— Seu lugar é na
Vila das Pérolas. Siga para o norte, terá de andar pouco mais de um quilômetro pela
estrada até o litoral. A academia fica próxima à costa, se quiser uma
referência, siga sempre em direção da Ilha dos Geckos.
Ele agradeceu o
guarda com outro gesto estranho, o que fez o homem cair na risada antes de
voltar ao trabalho.
O apito do trem soou
estridente e a máquina de ferro deixou a Estação Pérola em direção da Estação Diamante
na província vizinha. Para o garoto, visitar as terras de Myriad tão distantes
de seu vilarejo era uma experiência inédita, via pessoas altas e vestidas em
roupas extravagantes, cada qual com seu estilo, fossem ternos e cartolas,
armaduras pesadas ou vestes do dia a dia. Era como se viessem do mundo das
histórias que ouvira na infância.
Era por volta
das seis da tarde quando o trem chegou ao seu destino, mas ainda havia uma
caminhada considerável até a Vila das Pérolas. Uma trilha de tochas estava acesa,
servindo como guia para os estudantes recém-chegados pelo percurso até o
litoral. Além do treinamento, o porto servia como transporte de mercadorias da
ilha dos homens-lagartos. Do alto do penhasco era possível ouvir o som alto que
vinha de uma festa que acontecia na praia e a Ilha dos Geckos distante sob o
céu noturno, claro e límpido.
Na costa pôde
avistar a Vila das Pérolas, seu novo lar. Era uma área voltada para o
treinamento de guerreiros, portanto, recebia a visita constante de oficiais do
exército que vinham dar palestras ou lecionar, alguns inclusive selecionavam os
melhores para seus regimentos. Os jovens selecionados eram enviados para servir
nas capitais de uma das oito províncias. O exército dos humanos era o mais
populoso dentre as quatro raças e se concentrava em Constantia, onde a guerra
acontecia.
De repente, Ralph
teve que parar. Aproximou-se de uma ribanceira mais do que devia. Olhou para
baixo e alguns cascalhos rolaram, somente então notou que poderia ter caído. Recuou
um pouco assustado quando uma estranha ideia passou por sua cabeça, afinal, poderia
descer a colina de um jeito mais prático e ágil. Ajeitou sua mochila e colocou
o pé na primeira rocha da encosta da montanha. Alguns geckos da espécie das
lagartixas eram dotados da capacidade de escalar paredes, então decidiu tentar.
Bastou um pequeno declive e logo cometeu uma falha. Foi caindo, trombando e se
esborrachando até que parasse na encosta do outro lado. Havia poupado pelo
menos vinte minutos de caminhada descendo a colina.
Os ajudantes que
encerravam suas atividades no cais até pararam para observar a cena, eles foram
gentis em fornecer informações para localizar a casa nº 17 no corredor Essência
do Luar.
— Não vai
participar da festa de iniciação? — perguntou um deles e entreolharam-se de
forma travessa, escondendo as próprias histórias. — Os veteranos organizam esse
evento especial para receber os novatos.
— Um luau na
praia — confirmou o segundo. — Você deveria ir. Conhecer gente nova, talvez
encaixar-se em um dos grupos antes que fique para trás. Dá até para pegar umas
gatinhas.
— Muito obrigado
pelas dicas — Ralph respondeu, apesar de não ter intenções de comparecer.
Nos alojamentos,
as casas possuíam um emblema em cima da porta de entrada com o símbolo da raça
humana. Ralph avistou uma casinha pequena de madeira e teto retangular, aconchegante
e agradável para seus costumes humildes. Eram todas agraciadas com uma bela
vista para o mar.
Ao bater na
porta, foi surpreendido por um rapaz moreno de manto azulado com entalhes em
prata e um círculo opaco que representava a academia na Vila das Pérolas.
— Olá, você será
meu companheiro de quarto? — perguntou Ralph.
— Casa sete? — A
resposta soou seca enquanto o jovem afivelava o cinto e tentava prender os
botões na camisa. Ralph voltou a olhar seu panfleto.
— Hm, dezessete.
— Aqui é a sete,
não sabe contar?
— Oh, é verdade —
falou surpreso, embora tenha soado um pouco mais irônico do que gostaria. — Desculpe,
tenho alguns problemas com números.
O rapaz revirou
os olhos, impaciente.
— Sua casa é
essa aí na frente. Siga as dezenas.
— Agradeço a
informação.
— Está indo para
a festa também? — A festa que todo mundo
insistia em falar.
— Não sou muito
de festas.
— Que pena. Os
veteranos costumam fazer trotes com os novos membros da academia e não vão
largar do seu pé caso tente fugir.
— Não estou
fugindo. Digamos que eu esteja apenas... escolhendo a que lugar pertenço.
O rapaz deu de ombros
e fechou a porta. Ralph não sabia quanto tempo ficaria na academia, seus treinos
poderiam durar semanas, meses ou até anos; a única certeza que tinha é que
esperava não esbarrar com nenhum veterano. Ainda não tinha nível e experiência
o suficiente para conquistar esse tipo de amigo.
i
Os alojamentos
fornecidos aos alunos eram usados até que fosse decidido qual caminho seguiriam
na formação. Ralph poderia fazer o que quisesse, aventurar-se pelas redondezas e
tomar banho uma só vez na semana. Ele deu uma volta pelo cômodo, não havia
muito a se ver, explorara tudo; agora queria desbravar o restante do mapa que
ainda não conhecia, mesmo sendo tão tarde.
Na entrada do
alojamento masculino, uma placa em forma de seta indicava a direção da
academia, do porto e da estação. Podia escutar o som da festa vindo da praia,
garotas chegavam com suas saias curtas, cabelos longos e soltos; os rapazes vinham
de queixo erguido e chinelos nos pés para se sentirem o mais confortável
possível. Tinha de admitir que era uma temática litorânea atraente e
convidativa, mas será que eles se lembravam que do outro lado do reino estava
acontecendo uma guerra?
Caminhou pelas
estradas que serpenteavam o litoral quando uma garota de passagem perguntou:
— Para onde está
indo?
— Ainda não sei.
O que tem para esses lados? — perguntou Ralph.
— Não há nada.
Você deveria vir para onde todos os outros estão. É mais divertido.
Ralph seguiu seu
percurso solitário até alcançar os portões de ferro que bloqueavam a entrada da
academia. Era fim de semana e as aulas ainda não haviam começado, os muros
altos tinham a função de manter qualquer invasor longe, mas que aluno seria
louco de invadir a escola quando não precisava estar nela? Não poderia esperar
até a manhã seguinte. Ralph enfiou a cabeça entre as grades e pôde se imaginar
dentro da academia, treinando com sua espada de madeira e provando sua perícia.
Via-se na arena de combate magnífica na entrada, observado por um dos oficiais
do reino, um possível olheiro, que o levaria para longe dali em direção da
glória e do sucesso. Encarava tudo tão maravilhado que, quando percebeu que sua
cabeça estava entalada, entrou em desespero em meio à situação.
Poderia ter
ficado preso por várias horas, mas, para sua sorte — ou um belo acaso do destino
— alguém passava por perto.
— Ei. Precisa de
ajuda?
— Acho que minha
cabeça está entalada — concluiu Ralph com a cara no portão.
— Como é que
você se enfiou aí dentro?
— Acabei de
chegar ao vilarejo e estava tentando dar uma olhada no local... Pode deixar,
acho que eu consigo me virar, não há nada nesse mundo que eu não resolva —
respondeu Ralph.
— Hm, entendi.
Seja bem-vindo, então.
A pessoa
preparava-se para ir embora quando Ralph percebeu que não importava o que fizesse,
não conseguiria sair. Então, gritou novamente:
— Moça, mudei de
ideia! Pode dar uma ajudinha?
— Pensei que
pudesse resolver tudo.
— E eu posso. — Ele
se remexeu envergonhado com a situação. — Só que... não sozinho.
Sentiu a pessoa
segurar seus ombros, manobrando-o de maneira que pudesse se livrar das grades
com facilidade caso tivesse mantido a calma.
Ralph parou e
olhou para trás atordoado. Agora que conseguia vê-la em melhores detalhes,
reparou que se tratava de uma jovem de longos cabelos negros emaranhados, de uma
beleza excêntrica em seu corpo bem desenvolvido. Devia ter os seus dezoito
anos, era mais velha do que muitos na academia. Tinha feições de gente
impaciente, dava para notar por causa das marcas de expressão na testa e as
sobrancelhas franzidas, sempre atrasada para um compromisso que não existia. Transmitia
a clara sensação de alguém que não era de muita conversa. Vestia calça legging e por cima usava uma jaqueta de
couro preto que lhe servia bem. Estava sozinha e sem rumo, gostava de pessoas
que compartilhavam da solidão.
Ralph a analisou
por tanto tempo que chegou a incomodar.
— Ei, garoto, ouviu
o que eu disse? — ela repetiu, estalando o dedo algumas vezes em sua frente e
libertando-o do transe. — Só tenta se cuidar a partir de agora, tá bem?
— Muito obrigado
pela ajuda. Meu nome é Ralph, sou o Guerreiro da Espada de Madeira, tudo com
letra maiúscula!
A moça riu
procurou alguém que estaria ouvindo a conversa porque não queria que ninguém
pensasse que fossem amigos.
— Entendi. Esse
lugar é repleto de gente como você, acho que vai gostar — ela falou num tom divertido,
talvez acostumada àquele tipo de situação. — Seja bem-vindo, novato. Se
precisar de ajuda, talvez nos esbarremos por aí.
— Onde estava
indo?
— Estou voltando
de uma festa — ela falou, enfiando as mãos nos bolsos e erguendo os ombros. — Som
alto e gente desinteressante. Não faz muito meu estilo. Está pensando em ir?
— Se você disse
que não estava bom, então prefiro ficar com você — respondeu Ralph.
— Entendi. Pensa
em se especializar na arte da esgrima?
— Como é que
sabe? Você é algum tipo de feiticeira?
— Se você
pretendia ir a uma festa carregando essa coisa — Auria apontou para a espada de
madeira —, então ela deve ser bem imporante.
— É, sim. Meu
sonho é me tornar um herói famoso e embarcar em inúmeras aventuras com outros
guerreiros para ajudar quem precisa. Quer fazer parte? Tenho um montão de
sonhos para realizar.
— Não tenho
tempo para essas brincadeiras. É como dizem: “se realizar sonhos fosse fácil, o
mundo não estaria repleto de sonhadores”.
— Mas sonhar nos
faz tão bem!
— A realidade é
meio dura, garoto — ela respondeu com rispidez. — Quando for adulto, vai
entender.
— Qual é o seu
nome? Acha que poderíamos ser amigos, pelo menos?
— Pode me chamar
de Auria — respondeu ao virar-se para ele, continuando seu caminho em marcha
ré. — E isso vai depender de como você se sai nos treinos.
Ralph deu um
salto ágil em sua direção, como um réptil que ataca sua presa sem dar-lhe
chances de escapar. Auria recuou dois passos por ter sido pega de surpresa e
quase caiu. Ele era veloz. Os dois se encararam bem próximos, de forma que
Ralph lhe estendesse a mão em sinal de cumprimento.
— Qual seu
título?
— Do que está
falando?
—
O título é como você quer que as pessoas te conheçam. Eu sou o Guerreiro da
Espada de Madeira, pois é assim que eu quero ser lembrado.
— Auria. Acho
que só Auria mesmo — explicou meio envergonhada. — Onde
eu cresci costumam dar mais importância ao sobrenome das famílias do que aos nossos
próprios atos. Mas por que se
interessar tanto por isso?
Ela soltou uma
risada enquanto olhava para o chão e remexia os pedregulhos. Por algum motivo,
Ralph emanava uma aura diferente dos demais, certa serenidade. Auria colocou as
mãos nos bolsos de sua jaqueta e coçou os cabelos emaranhados.
— Foi bom
conhecê-lo, Guerreiro da Espada de Madeira — disse ela de um jeito meio irônico,
preparando-se para partir. — E se quiser saber, sou uma veterana da academia.
Quero ver quanto tempo você aguenta nesse lugar, porque já estou aqui há quase três
anos.
Auria continuava
a olhar para trás ao tentar ir embora. Em seu íntimo sabia que aquele jovem
tinha algo diferente. Sentia vontade de rir só de vê-lo ali parado, uma chama
brilhante no meio da escuridão.
— Vai ficar aí a
noite inteira? — perguntou Auria.
— Já estou indo —
respondeu Ralph. — Obrigado pela ajuda.
— Certo, até
mais.
Quando Auria tomou
certa distância, ouviu o barulho das grades no portão. Voltou correndo para se
deparar com Ralph que dessa vez tentava escalá-lo como se fosse uma espécie de
réptil.
— Qual é o seu
problema?!
— Pensei que
dessa vez dava pra passar, sou meio curioso.
— Desce já aqui!
Não é permitido que ninguém tenha acesso à academia depois de anoitecer, podem
te mandar de volta com o nome manchado, sua família ficaria furiosa!
Ralph jogou-se de
cima e assustou-a com o salto. Ele caiu no chão sem sofrer nenhuma colisão, com
as duas mãos e os pés apoiados na terra como um ser quadrúpede. Apesar das
circunstâncias, Auria apreciou o movimento.
— Belo salto —
admitiu.
— Tenho algumas habilidades
como os geckos. Mas e aí? Quais são suas?
— Olha, eu como
e durmo bastante. Também luto para sobreviver, não desistir, continuar de pé e
seguindo meu caminho. Pelo menos ainda estou tentando, não é? Vi colegas serem
escalados para os melhores batalhões, todos eles seguiram em frente, mas eu
ainda estou aqui.
—
Fique tranquila, quando a oportunidade aparecer você saberá reconhecer — Ralph
falou com um sorriso. — Nós podemos ajudar um ao outro.
— Não acredito
que você possa me ajudar. Eu não consigo nem resolver meus próprios problemas,
muito menos os de outra pessoa.
— Eu entendo. Mas
eu acredito que você vá conseguir, sério. Eu acredito em você!
Diferente dos
demais rapazes da vila, era a primeira vez que Auria sentia que alguém não estava
tentando procurar uma solução óbvia para resolver problemas que somente ela
poderia. O simples gesto de sensibilidade a surpreendeu.
— Já perdi a
conta de quantas vezes tentei ir embora, mas você não deixou — disse Auria em
meio a um sorriso confuso, daqueles meio tímidos e imprevisíveis, como alguém
que está sempre disposto a trocar novas experiências.
— Isso é um bom
sinal?
— Talvez você
seja a coisa mais interessante que eu tenha no momento. Vai enfiar a cara no
portão de novo? — Auria gritou de longe enquanto caía na risada.
— Por enquanto,
não — Ralph respondeu com a mesma entonação. — Mas, se quiser saber, na verdade
eu fiz aquilo porque queria que você voltasse!
Ela retribuiu um
sorriso espontâneo. Sentia-se tranquila, seu coração estava leve. Fora dar uma
caminhada para livrar-se dos problemas e preocupações de sua vida e aquela
conversa se revelara em excelente hora.
Auria ainda não sabia,
mas sentia que de alguma maneira estaria conectada a ele.