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quarta-feira, 6 de setembro de 2017

Capítulo 10

Com a prisão de Goldo e seus comparsas, a fragata estava vazia e o desejo de Ralph por aventuras o levou a investigá-la. Perguntava-se o que piratas teriam escondido em seu convés — mapas, baús do tesouro, itens preciosos para sua jornada?
A decoração era rústica e de bom acabamento, traço do povo recluso de Garamond. Quando alcançou a cabine do capitão, avistou um imenso mapa do Reino de Sellure que cobria uma parede inteira. Ralph não conhecia nem metade das províncias existentes — Bodoni, Century, Constantia, Garamond, Helvetica, Myriad, Perpetua e Trajan. Sua entrada na academia da Vila das Pérolas fora a única oportunidade até então de sair de sua terra natal para explorar o mundo, o que o aguardaria dali para frente?
Passou a mão por uma bela poltrona de veludo e encarou a paisagem através de uma janela aberta. O mar estava tranquilo e o sol começava sua despedida. Ralph viu passar um trem que cortava as ondas no meio do oceano, não fazia ideia que aquela rota permitia a passagem do famoso Trem das Águas.
Um ruído fez seus sentidos se aguçarem, mas não havia ninguém no local. A sala do capitão levava a um depósito no andar inferior, talvez algum pirata ainda estivesse à espreita, de vigilância.
Desceu duas levas até os depósitos, onde caixotes estavam jogados e alguns até mesmo abertos com todo seu conteúdo de mercadorias roubadas espalhado pelo chão. Julgou melhor não examiná-las, pois se tratava de uma tarefa para a marinha.
O chamado repetiu-se. Ralph sacou Lignum com uma das mãos.
Sssssiga-me, meu bom menino.
O ambiente era escuro demais para se enxergar, pois contava apenas com a iluminação fraca dos raios solares que passavam pelas frestas entrepostas do piso superior. Ali estava um gecko de pele albina, vestido em um jaleco branco fechado até a altura do pescoço, sua longa cauda balançava incontida de um lado para o outro enquanto ele se atentava aos manuscritos mais recentes que tomara nota. Virado de costas, balbuciava palavras misteriosas enquanto acrescentava anotações na parede com uma lasca de pedra afiada.
Ralph observou a cena intrigado. Os rabiscos pareciam escritos em uma língua antiga há muito esquecida. Assim que ele apoiou as mãos na grade o gecko virou-se depressa com os olhos esbugalhados e os dentes à mostra de um jeito agressivo, depois ficou observando o garoto, como se tentasse sufocá-lo na escuridão.
— O que está fazendo aqui? — A serpente cuspiu as palavras, olhando para o nada.
— Eu ouvi uma voz. Pensei que você tivesse me chamado — Ralph respondeu.
— Se nem você sabe, quem sou eu para ter certeza? — O gecko voltou a escrever na parede. — Vá embora, antes que eles decidam pegar você também.
O jovem julgou que aquele pobre prisioneiro deveria estar louco e pensou em afastar-se, mas não abandonaria alguém em necessidade. A criatura parou de rabiscar só por um instante.
— Espere. — E olhou para Ralph, mas não em seus olhos. Suas palavras saíram quase como um sussurro sem som. — Eu sei sssssim.
A serpente guardou a pedra lascada no bolso e caminhou em direção do humano. Por trás das grades esticou o braço para ele, ereto e com uma expressão taciturna. Para um gecko, parecia mais instruído que outros que conhecera, como um professor de pesquisas que apresenta sua mais nova descoberta à bancada.
— Apresento-me a você como o Doutor Erlenmeyer, mas se for incapaz de lembrar-se do meu nome, dou-lhe a permissão de chamar apenas de doutor. — Ele apertou a mão do rapaz com naturalidade, como alguém recebe uma visita em sua casa. — O que traz uma ovelha para o covil dos lobos em uma situação tão inusitada?
Ralph olhou para a cela desgastada e suja em que ele se encontrava.
— Pensei que o senhor fosse um prisioneiro, por isso vim verificar.
O velho gecko olhou ao redor, observador.
— Verdade. Parece que estou preso — o doutor comentou, cauteloso. Sua voz mudara drasticamente. — Será que você poderia me tirar dessa cela para que possamos conversar como bons cidadãos civilizados, meu garoto?
Ralph atentou-se à porta da cela. Estivera aberta o tempo todo, não havia nem sinais de que fora arrombada. Ele recuou dois passos por precaução e preferiu não contrariar o doutor e sua sanidade.
— Quem é o senhor?
— Que bom que perguntou. Sou um pesquisador e cientista autêntico em busca de respostas ainda não solucionadas deste mundo, doutorado em ciências e tecnologia pela UNIS, turma de 83. Eu acompanhava esses bons samaritanos em viagem quando fizemos uma pausa. Agora aqui estamos nós, tendo essa conversa excepcional — disse Erlenmeyer. — O que procura na Ilha-S?
— Na verdade estamos na Ilha dos Geckos.
— Sério? Não é onde eu deveria estar.
Ralph observou a criatura. Viu que ele tinha braços, mas seus pés ficavam sempre escondidos, como se rastejasse. Não devia ser da espécie dos lagartos ou crocodilianos, mas das serpentes.
— Há algo que eu possa fazer por você, doutor? Nós também deixaremos a ilha em breve e seguiremos de volta para a Vila das Pérolas ou algum lugar onde possamos criar uma base provisória, e...
Pérolas? — O Doutor Erlenmeyer avançou contra Ralph e tentou agarrá-lo do outro lado da grade, mas foi impedido pelas grades. Por sorte os dois mantiveram uma distância segura. Assim que se recompôs, a serpente desculpou-se com cordialidade.
— Perdão, acabei ficando... apreensssssivo. O que sabe sobre as pérolas?
— Tem uma porção delas lá na vila, são como areia nas praias. Perderam total valor — comentou o rapaz.
— Não me refiro a esse lixo do mar. Falo das Pérolas Sagradas. Se eu lhe disser sobre elas, promete que não conta para mais ninguém?
— Eu provavelmente vou falar para os meus amigos. — Ralph teve de ser sincero. — Não sou bom com segredos.
Erlenmeyer pareceu não se importar.
— Justo. Preocupar-se com seus amigos antes de todo o resto. Os meus também estão ouvindo nossa conversa de qualquer maneira. — Ele olhou para os lados, só para ter certeza de que não havia mais ninguém presente.
O doutor enfim saiu da cela, caminhando de um jeito meio encurvado. Ernlenmeyer apontou para a parede onde estivera escrevendo e Ralph distingiu o desenho de um pentágono com cinco pontos distintos. Os círculos deveriam ser as pérolas, cada uma delas era cercada de cálculos e potenciais localidades, muitas delas riscadas e descartadas, devia estar há anos naquela busca.
Os desenhos formavam um mapa. Erlenmeyer chegou bem perto de Ralph e começou a lhe explicar enquanto mexia suas patas de dedos compridos e unhas afiadas.
— Cinco são as Pérolas Sagradas e cinco são os guardiões que as protegem. A Ordem do Selamento é como se intitulam. Durante anos estudei a raça dos tótines para explicar como eles detêm tais poderes. A mana é uma energia que está em tudo a nossa volta, como água e fogo — contou o doutor, erguendo as mãos no ar como se fosse capaz de tocar algo invisível. — Os tótines esperam tê-la só para si, roubaram toda a magia do mundo e, por isso, julgam-se superiores. Todos deveriam ser iguais, não acha?
— Esses guardiões são mesmo assim tão poderosos? — Ralph repetiu intrigado.
— São temíveis e astutos. Dizem que as pérolas podem invocar o Mago Supremo do Reino de Sellure, uma entidade capaz de realizar sonhos, desejos e vontades; um xamã com poderes que fogem à nossa compreensão.
Quando era menino, Ralph ouvia histórias sobre feiticeiros poderosos e criaturas místicas. Ele não duvidou de palavra alguma, pois o cientista falava com tanta convicção que seria crueldade interrompê-lo de seus devaneios.
— Desde os tempos passados, as pérolas estavam ligadas à força fundamental da vida. Costumava-se dizer que quando uma perdia o brilho, era um presságio da morte. Estudiosos desenvolveram meios de drenar a mana e colocá-la em objetos. Na época, as pérolas foram os instrumentos escolhidos antes de começarem a usar selos por sua praticidade. Nunca me conformei com a ideia da magia ser limitada, até descobrir que existe um motivo para que ela tenha sido herdada geneticamente por essas criaturas. Eu estudo ciência para explicar o que muitos não compreendem. — Erlenmeyer escalou uma parede o encarou Ralph de cima para baixo. — Você as buscaria? Buscaria para mim? Eu seria muitísssssimo agradecido.
— T-tudo bem — Ralph concordou. A língua bífida se movia incessante, como se tivesse o intuito de desconcentrar a vítima. — Onde podemos encontrar essas pérolas sagradas?
— Century. — O pesquisador voltou a apontar para os rabiscos na parede e bateu três vezes.
Ele subiu a escadaria para fora do depósito e indicou que Ralph o acompanhasse. Continuou até a sala do capitão e começou a revirar gavetas e baús em busca de algo com extrema euforia.
— Onde eu deixei? Onde está? Ah, aqui.
O pesquisador apresentou um mapa detalhado de Century, uma região a sul da província onde se encontravam. Ficava entre Myriad e Helvetica, Ralph passara por essas terras em sua viagem de trem até a Vila das Pérolas. Erlenmeyer começou a desenhar marcações em lugares que não faziam sentido algum no momento.
— Eu os tenho observado. Só podem estar aqui. Não tenho tempo para me rastejar pela terra em busca de hipóteses, então você será de grande ajuda, meu garoto.
Assim que terminou, entregou o papel amarelado nas mãos do rapaz e aproximou-se da mesa central para arrumar acessórios e pequenos adereços que não estavam perfeitamente alinhados.
— Eu deveria investigar cada um desses pontos?
— Sim, sim. Minhas pesquisas apontam que os guardiões estão nessas proximidades... — contou o doutor. Ele agia como se tudo ao seu redor o incomodasse, ajeitava cadeiras e limpava onde já estava limpo. — Com as Pérolas Sagradas em mãos, terei poder para me encontrar com o Mago, e talvez até mais. Minha sede é em Bausonne, capital de Century, então peço que me encontre quando as tiver em mãos. Procure pela Semente Venenosa.
— Doutor, não complica as coisas porque eu sou péssimo com metáforas! Mas já que nós também estamos indo para Century, eu e minha equipe poderíamos acompanhá-lo, e...
Não — Erlenmeyer gritou, o que causou certo espanto no garoto. — Eu não ando junto de... pessoas. Pessoas são más quando formam grupos, elas logo começam a pensar, e ter ideias, e.... Trabalho melhor sozinho.
Ralph concordou. Olhou para o mapa e refletiu sobre a proposta, era a primeira grande missão que alguém colocava em suas mãos.
— Resumindo: o senhor sugere que eu saia em uma jornada maluca, derrote cinco guardiões poderosos e encontre as pérolas para você invocar um mago que ninguém sabe se existe mesmo?
O Doutor Erlenmeyer confirmou com a cabeça. Gostava de crianças que aprendiam rápido.
— Não podemos sentar e esperar a boa vontade de uma força divina que foge à nossa compreensão. O mundo precisa de mudanças.
Ralph dobrou o mapa e guardou-o no bolso da calça.
— Eu aceito. Vou só conversar com meus companheiros de equipe e ver quando partimos. Se quiser, podemos tomar um café qualquer dia desses e você me explica de novo qual a pegada desses símbolos confusos no mapa, porque pra ser sincero eu não entendi quase...
Quando Ralph se deu conta, estava falando sozinho.
Olhou o cômodo, mas não havia sinal do Doutor Erlenmeyer. O jovem correu para fora da cabine, viu as ondas batendo no casco do navio e imaginou se o pesquisador sinistro não havia decidido pular. Sua cabeça estava num turbilhão tão grande de ideias que Ralph olhou para baixo e, sem pensar duas vezes, pulou também.

i

— Ei, fêmea. Não é o Ralph naquele barco?
— Não enxergo muito bem de longe, lagartixa, mas acho que é, sim.
— É a minha impressão ou ele vai pular?
— Ele não sabe nadar.
— ... E pulou do mesmo jeito.
Não demorou para que Auria arrancasse a jaqueta mais uma vez para salvar seu amigo. Saltou do píer e mergulhou nas águas profundas à procura de Ralph que se debatia e gritava. Agarrou-o com força para que não se afogasse e logo o levou para a costa onde Lesten e alguns outros geckos curiosos observavam a cena.
— Qual é o seu problema?! — Auria gritou, debruçada sobre o corpo molhado do rapaz estendido na areia. — Por um acaso você tem alguma afeição romântica pelo perigo?
— Depende, seu nome é perigo? — Ralph brincou e até Lesten teve de rir, pelo visto estavam todos recuperados. — Pessoal, vocês não vão acreditar! Eu vi um sujeito esquisito, ele disse umas coisas estranhas sobre pérolas mágicas, guardiões poderosos e um mago capaz de realizar desejos, depois desapareceu, e...
Lesten deu dois toquinhos no ombro de seu companheiro.
— Shhhhh... Já passou. Tu acaba de ser nomeado o novo mentiroso da turma.
— Concentre-se — Auria retrucou. — Tente organizar seus pensamentos. O que você descobriu que o deixou tão alvoroçado?
O jovem olhou para a fragata onde estivera e começou a juntar as peças que estavam espalhadas pela mesa.
— Acho que eu acabo de descobrir o nosso destino.

Com os piratas presos pela marinha, metade das riquezas de Goldo foram confiscadas e serviram para consertar os danos na ilha. Uma parcela mínima terminou nas mãos dos aventureiros como forma de agradecimento — ao menos, a estadia na pousada saiu como cortesia. Auria conversava com as autoridades a respeito da destruição causada e tentava inventar uma desculpa convincente para explicar o que dois humanos clandestinos faziam na Ilha dos Geckos. Por ter colaborado com a captura de um fugitivo, teve passagem liberada contanto que se apressasse em deixar o local, os habitantes da ilha estavam fartos de humanos naquela semana.
O grupo se hospedou na taverna Escama Azul que os recebeu de bom grado pela proteção. Era por volta das seis da tarde e o céu laranja oferecia uma linda visão sem fim do horizonte distante. Passariam a tarde descansando, mas Lesten teve de continuar escondido dos oficiais.
Ralph estava deitado na cama, refletindo sobre o que ouvira do Doutor Erlenmeyer — as palavras do pesquisador, o mapa oferecido e seus cinco pontos misteriosos. O que significavam? Quais seriam os grandes tesouros? A busca era como caçar um dragão: todos sabiam que existiam, mas ninguém nunca mais viu um.
— Ei, Auria... Você já esteve em Century?
— Uma vez passei as férias em uma casa de campo com minhas irmãs — a mulher estava na varanda do quarto enquanto apreciava a vista —, o turismo é muito forte.
— Só que não é o melhor lugar para um gecko viver — falou Lesten em busca de algo para comer. — O clima é incontrolável. E mudanças súbitas afetam minha espécie.
— Bem, é para lá que estamos indo.
Auria virou-se com as sobrancelhas franzidas. O clássico sinal de que discordava de algo.
— E por que o senhor aventureiro decidiu ir para Century?
— Nós temos um novo objetivo lá.
— Outro? — Auria deu de ombros. — Nosso plano não era construir uma base e prestar serviços?
— Pensei que fosse sair correndo sem pagar a conta — murmurou Lesten.
— Estamos em uma situação delicada aqui na Ilha dos Geckos — contou Ralph. — Depois do ataque dos piratas, os portos redobrarão a atenção para cima de qualquer embarcação, ainda mais de humanos. Estão de olho na gente. A única opção seria voltarmos para a Vila das Pérolas.
— Estou começando a achar que eu nem deveria ter saído de lá.
Ralph era péssimo em esconder seus sentimentos. Ele era como um livro aberto — qualquer um ao seu redor sabia dizer quando ele estava feliz, triste ou zangado.
— Desculpe. — Auria percebeu que sua resposta soara mais rude do que gostaria. — É que até agora só estamos sendo jogados de um lado para o outro...
— Há quase dez anos eu tenho procurado o viajante que conheci quando eu era criança, mesmo assim eu nunca desisti — Ralph respondeu. — Você me acompanhou até aqui, Auria. Eu preciso de você ao meu lado.
Ralph levantou-se da cama e ficou ao seu lado na varanda. O céu alaranjado mesclava com as luzes da rua que começavam a ser acesas, a calçada que dava para o centro estava cheia de geckos de todas as cores e tipos. Lá longe era possível ver um cruzeiro chegar, tão grande quanto um monstro marinho. O garoto respirou o ar salgado do litoral, ouviu o barulho das ondas e sentiu cada espaço de um mundo que nunca teria tido a chance de conhecer se não tivesse arriscado.
Auria o puxou pela gola da blusa, seus rostos muito próximos e os narizes quase se encostando.
— Você me enfiou nessa aventura, então é bom que façamos algumas lembranças que valham a pena.
Ralph encarou com firmeza aqueles olhos profundos, suas pupilas como obsidianas. Era o segundo pôr do sol que via ao lado de Auria e esperava ter a chance de ver muitos outros.
— Eu prometo que você nunca mais vai esquecer essa viagem!
— É bom mesmo — disse a mulher com uma risada. — Explorar o desconhecido sem nem saber por onde começar. Só você mesmo para me levar nessas ideias malucas.
Quando uma proposta surgia, por mais arriscada e ousada que parecesse, Auria aprendeu que não pensaria duas vezes em agarrá-la e fazer dela uma oportunidade. Agia assim desde que conhecera certo garoto de cabelos vermelhos não fazia nem uma semana.
Porém, Lesten ainda não pensava da mesma maneira, odiava ser tirado de sua zona de conforto.
— Calma aí. Eu não vou deixar a Ilha dos Geckos. O mundo lá fora é cruel e perigoso, tu não sobrevive nem um dia sem que uma desgraça aconteça. E do jeito que sou azarado, vai ser comigo!
— Isso pode até ser verdade, mas se você ficar trancado em casa vai perder inúmeras oportunidades e perceber que no fim teria sido melhor tentar. Veja o mundo com seus próprios olhos — Ralph respondeu.
Lesten se estirou no chão só para chamar atenção.
— Tô de boa, cara. Quero ver quem é que vai me tirar daqui.
— Você é preguiçoso, isso sim. — Auria o desafiou.
— Talvez seja verdade, fêmea! Minha preguiça me impede de viver, foi-se a época em que eu era um guerreiro nato, é só olhar pra minha barriga.
— Nós iremos para Century com ou sem você.
 — Não se preocupe, aposto que vai acontecer alguma coisa sobrenatural de última hora que o fará mudar de ideia — falou Ralph.
— É o que veremos, ruivo.

ii

Mal completara vinte e quatro horas que estavam na Ilha dos Geckos, era triste ter de despedir-se dela sem aproveitar um pouco do paraíso ancestral. A cultura reptiliana era exótica, eles se preocupavam como nenhum outro ser com sua história e louvavam seus ídolos como verdadeiros heróis. Um dos pontos turísticos mais famosos da ilha datava dos primeiros anos do mundo, era possível visitar o túmulo onde o lendário Tokay Asa Negra estava enterrado e conhecer o museu onde historiadores mantiveram intactos seus equipamentos de batalha e sua história de vida. Outra atração famosa era a montanha que dava vista para parte da cidade de Cortina Escarlate, capital de Myriad e terra natal de Auria.
Ralph desceu rumo à recepção para verificar a disponibilidade de um navio que voltasse para o continente. O único que faria uma travessia até Century chegaria após as duas da tarde, logo, teriam de esperar.
O grupo aproveitou para organizar seus pertences e provisões. Eles se serviam do café da manhã com torradas, frutas e leite quando puderam ouvir certo movimento vindo do andar de baixo. Os soldados da marinha local bateram a porta e foram direto para a recepção, mas dessa vez não estavam à procura de piratas.
— Bom dia — o oficial falou com a atendente —, poderia informar-nos se Lesten, o Perturbador, encontra-se hospedado neste local? Ele não tem o direito de se aproximar do centro, é acusado de quebrar duas cabanas, levar frutas do mercado e causar problemas em cinco pontos fixos da ilha. Nós o interrogaremos assim que o encontrarmos e o levaremos sob custódia.
— Quando foi que você arranjou tempo para fazer tudo isso? — Ralph perguntou assustado.
— Mano do céu, esses caras não esquecem nada!
Lesten agarrou as mãos de seus amigos e pulou pela janela. O lagarto pegou embalo no teto de palha de uma casa para escapar dos soldados da frota que os perseguiam. Carregava seus amigos com uma facilidade incrível em suas costas, mas eles não diriam o mesmo sobre se segurarem. Movia-se feito uma lagartixa por paredes íngremes, esgueirando-se em cantos e despistando a todos como um belo fugitivo. Os funcionários corriam pelas ruelas afora enquanto gritavam:
Ele está ali, peguem-no!
— Trouxas! — Lesten ria com gosto. — Eu vou dar é o fora dessa ilha, nenhum de vocês merece a honra de pisar no mesmo solo que eu!
Lesten era tão rápido que os soldados logo ficaram para trás, no tumulto do cais. O grupo alcançou o píer onde travaram a batalha contra Goldo e o Dinorros. Eles se esconderam embaixo da ponte e avistaram a fragata apreendida. Uma ideia inesperada percorreu pela mente dos três.
— Não, não e não. Nós não somos ladrões e não vamos roubar um barco desse porte — disse Auria.
— Roubar?! A ação mais comum entre geckos é pegar algo emprestado e não devolver mais — respondeu Lesten. — Pense que é por um bem maior.
— Abaixem-se!
Eles se esconderam assim que os guardas passaram reto por cima da ponte.
— Algum de vocês sabe algo sobre navegação? — Ralph questionou com a voz baixa.
Não havia perícia alguma entre os três. Se continuassem ali, seriam descobertos; se tentassem manejar uma embarcação daquele tamanho, corriam o risco de afundar ou ficarem desnorteados e irem parar em uma ilha aleatória. Eles precisavam dar um jeito de chegar à Century o quanto antes.
Foi quando ouviram um apito forte vindo distante e imaginaram se não seriam reforços. Lesten estava amedrontado, Auria aproveitou para espiar e seus olhos foram ao encontro do que poderia ser a chance perfeita de alcançarem seu destino com conforto e precisão.
— Rapazes, o que acham de pegarmos de trem?
— Mas é claro! — respondeu Ralph. — O Trem das Águas liga as oito províncias do reino. Só precisamos alcança-lo.
— Tá vendo a estação ali? — Lesten apontou longe. — Se a gente correr, dá pra entrar a tempo.
— Então é só isso? Correr? — Auria perguntou e o lagarto revelou uma risada assustadora, balançando a cabeça de forma positiva.
— Correr muito.
Os grupo saiu em disparada, o que logo chamou a atenção dos oficiais que mais uma vez voltaram a persegui-los — e mesmo que Auria e Ralph não tivessem nada a ver com a história, só eram perseguidos porque estavam correndo também. Lesten corria na dianteira, Ralph em seguida e Auria mais atrás. O lagarto deu um pulo e passou pelos caixas sem pagar. Ralph parou, retirou algumas moedas do bolso e deixou com o atendente da estação antes que Auria o agarrasse pela gola da blusa e o arremessasse dentro do trem que fechou as portas poucos segundos depois.
Os oficiais foram parando e nem se preocuparam em impedir que o transporte aquático seguisse viagem. Lesten estava ileso, sentiu-se um vencedor. Fazia caretas e lhes mostrava o dedo do meio — ou melhor, geckos só possuíam quatro dedos, então era difícil dizer ao certo o que aquele gesto significava para eles, mas era ofensivo.
— Idiotas. Nunca vão me pegar!
— É bem provável que não, afinal, por que eles trariam de volta alguém que está se exilando por conta própria? Nós fizemos um favor para essa gente — respondeu Auria com uma risada enquanto procurava um lugar para se sentar e descansar.
O pobre lagarto continuou olhando as pessoas no porto e parecia que elas comemoravam. Virou o rosto e ignorou. No fundo estava feliz por ter criado coragem e abandonado a terra de seu povo que tanto o odiava, levava consigo apenas o importante e sentia um peso desprender-se de suas costas. Era a chance de recomeçar do zero.
— De agora em diante vocês se responsabilizam por mim, ouviram? — Lesten apontou para seus companheiros. — Eu exijo três refeições ao dia, um local confortável para dormir e manhãs com sol agradável para me aquecer.
Auria apoiou-se nas janelas e viu de longe o grandioso Dinorros no extremo sul da ilha, comendo frutas e árvores suculentas de uma vez com seus bracinhos miúdos. Desejou toda a sorte do mundo para a criatura que a fascinara tanto e soltou um longo suspiro que foi compartilhado com seus companheiros.
— Será que nós vamos encontrar outros monstros incríveis como ele por aí? — perguntou Auria.
— Century é conhecida por ser um dos paraísos dessas criaturas — disse Lesten. — Existem regiões tão antigas em Sellure que mal foram exploradas, oceanos, montanhas, cavernas repletas de mistérios.
— Espero que o mundo nos receba bem — disse o garoto.
A viagem duraria até a manhã seguinte, o trem avançava depressa e o momento de descanso veio em boa hora.
O vento soprava pelas janelas com a velocidade inalterável, abrindo ondas em meio ao oceano quase como se deslizasse e seguindo uma trilha enorme forjada em águas rasas. Eles contornariam a costa e deixariam a província de Myriad para entrar em um novo território, rumo a capital dos intelectuais, pesquisadores e acadêmicos. Um novo arco estava para se iniciar.


        

sexta-feira, 4 de agosto de 2017

Capítulo 9

Era raro uma mulher agir na linha de frente, a maioria se especializava em arcos e feitiços conferidos a longa distância; nunca estavam no combate corpo a corpo, mas Auria brandia Melodia como uma amazona.
Ralph também sacou sua espada de madeira e um alvoroço começou. Johnny Goldo ergueu a mão e pediu que um de seus comparsas trouxesse seu equipamento — uma enorme bala de canhão amarrada com correntes, os demais carregavam cimitarras e facões na cintura. Goldo levantou a calça apertada acima do umbigo, um sinal de que agora a situação ficaria séria.
Os geckos saíram da taverna às pressas. O líder dos piratas começou a rodar a bola de ferro na corrente e atirou-a contra os lagartos, mas em um movimento surreal, Ralph rebateu-a com sua espada, como se fosse um taco de baseball. Ninguém acreditou que um material frágil feito madeira suportaria tamanho impacto, a bola regressara com tanta força que abriu um buraco na parede e quase arrastou o líder dos piratas para fora.
— Essa criança não é normal — murmurou Johnny Goldo com as mãos doloridas.
— Ele só poder ser um feiticeiro — alertou um dos piratas enquanto os demais corriam para verificar o estado de seu capitão.
Ainda atordoado, Goldo ordenou que seus capangas entrassem na Escama Azul e roubassem e quem estivesse hospedado ali. Três deles avançavam quando Auria confrontou-os e fez um corte no ombro do primeiro que tentou passar. Os outros dois trocaram olhares espantados. A própria guerreira sentiu a mão vacilar, pois era a primeira vez que machucava alguém pra valer.
Ralph golpeou o segundo capanga na cabeça com sua espada de madeira. O pirata fechou os olhos e somente então notou que não estava machucado.
— Crianças não deveriam brincar com armas, sabia? — provocou o pirata, sacando uma pistola de sua cintura. — Vou te mostrar uma de verdade!
Ele apontou o equipamento para Ralph, mas nada aconteceu. Também era a primeira vez que usava uma arma, o vendedor do mercado negro lhe dissera que aquele instrumento mortal era de um poder terrível capaz de matar o inimigo num único clique, mas o pirata era tão leigo que precisou olhar dentro do cano.
— Que droga, o que essa coisa faz? Pensei que ela fosse disparar uma rajada de fogo ou algum tipo de magia sobrenatural!
— Por que não tenta usar assim? — Ralph tirou a pistola da mão de seu oponente e o acertou na cabeça com uma cacetada. Em seguida, golpeou o sujeito na barriga com um chute e empurrou-o. O homem bateu a cabeça no balcão e terminou inconsciente. Ralph descartou a arma em seguida, jogando-a no mar pela janela.
Goldo espalhava destruição no cais com sua bola de ferro. Ele atingira o píer e deixara buracos no chão de madeira, a população local estava apavorada. Auria tentou se aproximar, mas era difícil com a quantidade de lagartos desesperados atrapalhando seu movimento.
Ralph odiava a ideia de ferir uma pessoa. Deu uma espadada com força na costela de um pirata, o suficiente para que ele se deitasse no chão coberto de dor.
— Vai tentar me matar com esse pedaço de pau agora? — intimou o homem.
— Eu não mato pessoas. Mas acredito que quem pratica o mal deva ser punido de alguma maneira, só não cabe a mim decidir como.
De repente, o pirata foi surpreendido por uma lança atirada de longe que quase acertou seu ombro. Ralph virou-se assustado quando viu Lesten que regressara, brandindo sua espada e recuperando sua lança. A fita vermelha na ponta dançava ao toque do vento.
— E tu achou que eu ia perder uma baita farra dessas? — disse o lagarto.
— Eu pensei que você tinha ido ao banheiro e estava prestes a voltar. Por quê? Você pretendia ir embora e deixar a gente?! — gritou Ralph, pasmo.
Lesten percebeu que o pirata se recuperava, por isso acertou-o com um soco na cara que o fez cair inconsciente.
— Se tu não quer ferir ninguém, pode deixar que eu faço a parte divertida.
— Rapazes, não quero incomodar — Auria chamou a atenção dos dois com um berro. —, temos alguns problemas maiores para resolver!
Goldo atirou a bala de canhão com força e os três se esquivaram com facilidade, um para cada lado. Auria desarmou um dos homens e Lesten acertou outro no peito, deixando-o sangrar no chão. Goldo só pensava em manter-se longe destruindo postes, palmeiras e construções; foi então que Ralph percebeu que ele demorava muito para recolhê-la. Com um corte liso de Lignum, ele partiu a corrente que conectava a bala de canhão num mergulho só, o pirata caiu para trás e rolou pela banca de areia até a praia.
— Seus miseráveis! Vocês jamais sairão dessa ilha com vida!
Goldo não teve tempo de sacar uma de suas pistolas, Lesten apontava a lâmina da espada em sua garganta.
— E o que tu pretende fazer? Jogar água na gente?
— Nem brinca — Ralph o interrompeu. — Eu odeio água.
Goldo soltou uma risada impetuosa entre seus dentes podres.
— Eu ainda tenho aquilo. Um monstro antigo, vindo dos primeiros anos da criação do mundo. Ele dará conta do serviço.
Um dos sobreviventes piratas correra mancando até o convés para ativar uma alavanca. O dispositivo ativou um sistema de roldanas que ergueu uma enorme jaula escondida no interior da embarcação. Quem observava o espetáculo impressionou-se com o que veio logo em seguida.
Na jaula estava um autêntico Dinorros em carne e osso. Uma criatura de pés grandes e grotescos, suas escamas eram duras feito ferro, ele mal cabia dentro do espaço limitado oferecido e por isso estava assustado. Era parecido com um gecko em sua forma, mas tinha três vezes a altura de um e seus braços curtos o deixavam desproporcional ao restante.
— Um Dinorros! Caramba, pensei que tivessem sido extintos! — Lesten falou impressionado.
Goldo soltou uma longa risada vitoriosa.
— Bah-hahaha! Vocês estão mortos! Eu capturei esse monstro na Caverna da Melancolia em Myriad e depois o aprisionei para que seguisse meus comandos! Quando os Dinorros crescem, eles se tornam criaturas colossais com até oito metros — gritou o pirata, fazendo uma pausa em seguida. — Libertem-no!
O marinheiro soltou os parafusos da jaula que estremeceu e tombou para os lados. O teto caiu na cabeça do dinossauro disforme, os slhos da criatura se encheram de lágrimas e ele começou a chorar.
Auria levou a mão ao peito.
— Ahh, mas ele é tão fofinho...
— Já saquei a tua, fêmea. Tu é chegada nesses bichos esquisitos, que nem eu! — Lesten brincou de maneira desajeitada, o que a fez corar e dar outro soco nele.
Ralph preparou sua espada de madeira quando viu Goldo levantar-se e gritar mais uma vez:
— O que está esperando, seu idiota? Provoque-o, faça esse dragão esquisito sair daí e destruir alguma coisa agora!
O pirata assentiu obediente com a cabeça e, num gesto desesperado, agarrou uma lança e espetou o abdômem da criatura que chorou ainda mais alto. Era como ver um dinossauro revivido nos dias atuais, eles estavam classificados dentro da raça dos monstros e como não existiam mais nenhum dragão vivo, os Dinorros eram seus parentes mais próximos de sangue impuro.
Os Dinorros eram desengonçados por natureza, a fragata estremeceu para os dois lados e quase afundou. O pirata manteve a lança presa nas escamas duras da criatura, seus olhos se incendiaram pelo instinto e, num movimento involuntário, o dragão esmagou o homem com uma das patas como se fosse um inseto.
O chão estremeceu. Goldo caiu com os olhos pregados e a boca trêmula. O Dinorros rugiu com fúria, deu um incrível salto e parou no píer, despedaçando as toras de madeira. A criatura era lenta, por onde passava acabava demolindo alguma construção ainda que não tivesse o intuito.
Lesten atirou sua lança contra o monstro que teve a pele perfurada, mas nem isso o fez parar. O lagarto correu para resgatar sua arma, mas a criatura agora tinha direcionado a atenção para os aventureiros ao invés da cidade. O Dinorros balançou a cauda e deu uma pancada tão forte que o lagarto caiu longe sob os escombros da taverna.
— Lesten! — gritou Auria que correu para socorrê-lo.
— Vocês serão destruídos! — gritou Goldo de maneira eufórica, mas no fundo ele sentia que cavara sua própria cova, afinal, o Dinorros não demonstrava o menor sinal de obedecê-lo.
De nada adiantavam seus equipamentos contra aquela ameaça. O alarme soou, a marinha da ilha fora ativada, mas até que os soldados chegassem eles precisavam evitar o maior número de vítimas.
Ralph tentou confrontá-lo, a criatura mal conseguia exergá-lo. Ao ver o garoto balançar seus braços, pensou tratar-se de alguma brincadeira, por isso o chutou com a pata traseira como se fosse uma bola de futebol. Ainda atordoado, o jovem não conseguiria se defender do ataque seguinte.
— Cuidado! — Auria gritou.
Num ato de desespero, ela arremessou sua espada que fincou nas costas do monstro. O dragão bípede rugiu e virou-se a tempo de Auria dar um salto na direção de Ralph e protegê-lo em seus braços. A criatura mergulhou a pata como um martelo, erguendo poeira e areia com o impacto.
Lesten correu para o local onde vira seus amigos serem esmagados, uma cratera se formara. De forma surpreendente, ambos estavam ilesos, a moça erguia um escudo de ferro para o alto.
Ralph levantou-se e sentiu seu sangue aquecer. Não achava justo que uma criatura inocente como o Dinorros fosse tratada como uma ameaça. Ele sacou sua espada de madeira e deu um salto veloz, Lignum foi dominada pelo efeito mágico onde pareceu transformar-se em ouro. Com a lâmina incandescente, ele acertou a pele do dragão na altura do peito e fez um corte como se fosse revestida de papel. O Dinorros estremeceu e caiu para trás, imóvel.
— Como isso é possível? Derrotaram meu filhote de Dinorros?! — Goldo ficou pasmo. — Quem são vocês, afinal?
Johnny Goldo só parou o estardalhaço quando sentiu que alguém tocava seu ombro. O pirata virou-se e viu que toda a frota da marinha local estava ali, com lanças e espadas apontadas para ele, geckos trajados em uniforme completo e com a bandeira de sua nação. Os homens-lagartos não gostavam que sua terra fosse invadida, ainda mais quando causavam tumulto e confusão, por isso dariam a devida punição para quem desrespeitasse suas leis.
— Opa. — Goldo ergueu as mãos e sorriu um pouco sem graça. — Eu tenho dinheiro, querem ver? O que acham de sentarmos e batermos um papo?
Ele não havia percebido que sua sacola de moedas de ouro caíra em algum lugar. Os guardas trataram de prendê-lo na mesma hora.
Ralph ajudou Auria a sair do buraco. Lesten saltou em direção da moça e deu-lhe um forte abraço enquanto falava um monte de baboseiras ao mesmo tempo.
— Fêmea, antes de mais nada, entenda o seguinte: a) não se arremessa espadas, ou tu fica desarmada. Eu tenho duas armas, sabe contar?; b) desculpa por ter duvidado de ti! Eu devia ter imaginado que as fêmeas humanas eram tão poderosas e destemidas!
— Eu sou feita de ferro — disse ela, limpando o sangue que lhe escorria pela boca.
Ralph aproveitou a ocasião para perguntar:
— Como foi que você fez aquilo, Auria? Quero dizer, desde quando você carrega um escudo escondido no bolso?
Auria olhou para o artefato que cobria seu braço esquerdo inteiro. Ao relaxar a mão, percebeu que o escudo voltou a transformar-se na manga da jaqueta de couro que ela nunca dispensava. A moça mexeu nos cabelos bagunçados, enfiou as mãos nos bolsos e olhou para os lados, envergonhada.
— Para ser sincera, eu só descobri agora.
A jaqueta tinha o poder de se transformar em seu corpo através de pequenas partículas que se materializavam e formavam uma armadura resistente. Eram como escamas minúsculas, a magia utilizada naquela vestimenta era admirável, talvez Lignum tivesse alguma semelhança àquele tipo de poder, pois era capaz de assumir formas em circunstâncias inesperadas através da mana, a magia do universo.
Ralph sorriu e compreendeu o motivo daquela mulher ser a sua grande defensora, o tanque de guerra de sua equipe.
— A jaqueta foi um presente da minha irmã do meio, mas me pergunto se ela também sabia desses poderes quando deu a jaqueta para mim.
— Eu queria ter irmãos. As suas parecem ser muito legais — Ralph disse com entusiasmo.
— São as pessoas mais importantes na minha vida, eu faria tudo por elas. Todos esses anos e nunca parei para pensar no sentido da frase que viviam me dizendo: “nós vamos te proteger onde estiver!”

i

Lesten caminhava pela costa, apanhando pequenas escamas espalhadas na areia. Pegou duas delas e as analisava com cuidado quando Auria decidiu perguntar:
— O que vai fazer com isso?
— São espólios de guerra. Não tive tempo para contar a vocês, mas sou um renomado Caçador de Monstros.
— Lesten, isso é incrível — ela falou admirada. — E quantos você já matou?
— Esse aí caído no chão é o primeiro.
— Que belo caçador...
— Na verdade estou mais para colecionador do que caçador. Não me importo com o desafio ou a caça em si, eu gosto é de ter alguma lembrança dos lugares que passei e das coisas que fiz.
— O seu título deveria ser Lesten, das Coisas Estranhas. — A moça sorriu de forma amigável.
Os dois se aproximaram do corpo estirado do Dinorros abatido. Lesten o cutucou com a ponta da lança e, para sua surpresa, o dragão gemeu de dor, o que os fez recuar em estado de alerta.
A criatura levantou-se com dificuldade, seus braços eram tão curtos que ele mal podia se equilibrar sentado. Quando encontrou uma posição confortável, ficou com os bracinhos voltados para frente examinando movimento ao seu redor com relutância. Agora que fora acalmado, eles podiam ver como não representava perigo algum.
— Ele é apenas um filhote, fez aquilo para defender-se — explicou Lesten. — Um adulto chega a ser três vezes maior, imagine como deve ter sido o tempo em que esses monstros guerreavam usando suas patas como um aríete!
Auria tocou levemente o abdômem ferido da criatura. Desejou ter estudado magias de regeneração nos tempos da academia, mas escolhera outro caminho.
— Pobrezinho... O que vão fazer com ele?
A gente pega, mata e come. — Lesten bateu as mãos contente. — Daria um belo banquete!
— Monstros como os Dinorros são criaturas raras hoje em dia — explicou um dos oficiais da marinha que se aproximou. — Se um filhote foi encontrado, pode ser o sinal de que eles não foram dizimados como imaginávamos. Faremos o possível para que não sejam extintos, como pensávamos que estivessem. Nós o estudaremos e o levaremos a uma reserva no sul da província de Perpetua, uma ilha isolada onde poderá viver em paz e crescer saudável.
O Dinorros pareceu compreender o gesto de carinho, pois se manteve obediente às ordens dos oficiais da marinha.
Ralph estava contente por saber que o incidente com os piratas acabara bem. Os moradores da costa raramente viam invasores cruzar as fronteiras da Ilha dos Geckos, mas a possibilidade de que as velhas alianças tivessem sido rompidas poderia ser o indício de que as raças já não se respeitavam entre si.

         

sexta-feira, 28 de julho de 2017

Capítulo 8

Ralph sempre pensava em como poderia ajudar as pessoas, desde os negligenciados até os que apenas precisavam de uma segunda chance. Fantasiava sobre um lugar onde heróis e vilões pudessem reunir-se sem causar tumulto, formando equipes que buscassem objetivos semelhantes. Não seria uma tarefa fácil, mas sentia que tinha um plano e precisava expandir sua ideia por toda a Sellure até ser reconhecido em cada província.
Lesten quis apresentar sua casa, entrou encurvado para dentro da cabana enquanto repetia um gesto convidativo cheio de empolgação. Mesmo que os geckos tivessem o costume de agir com desconfiança com forasteiros, eles ainda adoravam receber visitas e preparar refeições com iguarias excêntricas e temperos que nenhuma outra raça sabia cultivar.
— Sejam bem-vindos à minha humilde residência. Podem ir entrando, fiquem à vontade!
A cortina de cocais escondia uma completa bagunça. Restos de comida estavam jogados pelos cantos, o ambiente exalava um estranho odor de dormitório masculino composto por cinco ou mais garotos que decidiam fazer a limpeza só depois de um mês inteiro de festas. No primeiro andar o chão era forrado com tábuas de madeira improvisadas e cheias de buracos. Seus pertences mais importantes ficavam em uma área superior, caso a água do mar decidisse subir ao anoitecer e ele fosse pego de surpresa. O que Lesten chamava de “segundo andar” era um amontoado de caixotes e barris embaixo de toras de madeira que se sustentavam como pilares, uma rede de dormir estava estendida de uma ponta à outra e só uma lagartixa poderia alcançá-la no topo. Havia uma lareira — o que Auria não soube explicar a princípio —, pois os geckos precisavam de calor para manter o sangue aquecido em noites frias, mesmo vivendo em uma ilha tropical.
Ralph encantou-se com a autenticidade. Era a casa perfeita para alguém que desejava morar sozinho, alheio aos deveres e obrigações com o resto do mundo.
— Cara, faz um tempão que não recebo visitas. Vocês me pegaram de surpresa! — disse o lagarto enquanto reunia seus pertences. — Sorte que eu limpei a casa, ontem mesmo aproveitei para jogar fora o lixo.
— Pois é. Vimos a sua varanda — comentou Auria, nem um pouco discreta. — Como alguém pode viver nessa bagunça?
— Bagunça é quando a maré sobe e leva tudo embora. Por isso deixo aquela área elevada ali em cima para colocar minhas coisas importantes penduradas. Ah, e cuidado com o buraco no chão.
— Isso tudo é muito interessante — respondeu Ralph por fim. Ele espremeu-se embaixo de alguns caixotes como se fosse um esconderijo. — Sem regras, sem leis. Você pode fazer tudo que quiser e quando bem entender!
Auria apoiou as mãos sobre a caixa e encarou o garoto de ponta-cabeça.
— Pronto. Realizou seu sonho?
— Como assim?
— Você disse que queria ter amigos para compartilhar suas histórias. Aqui estamos nós. Você queria construir uma base notória onde fosse reconhecido. Aqui está a base.
— Auria, você não entendeu. — Ralph caiu na risada. — Eu não procuro uma base, uma guilda ou um castelo requintado, eu quero um lar! Um lugar onde pessoas possam se reunir para compartilhar bons momentos. O lar é uma consequência de onde nos sentimos plenos e felizes. Você se sente feliz?
Auria levou a mão até sua cabeça em sinal de desapontamento.
— Bem, eu não gosto daqui — falou enquanto verificava a qualidade das paredes que caíam quando ela as empurrava com força.
— Poxa, também não ofende! Eu ergui essa cabana com muito esforço — respondeu Lesten, abrindo uma fruta com suas garras para depois abocanhá-la. — Vocês recuperaram seus pertences, então por que não vão embora logo?
Quando Auria estava para pegar Melodia, o lagarto passou-a para a mão esquerda. Ela franziu o cenho, tentou pegar a espada novamente e Lesten esquivou-se, a arma agora estava presa em sua cauda. Auria largou sua mochila e derrubou o lagarto no chão.
— Quer parar de bancar o engraçadinho, sua lagartixa degenerada?
— Foi mal, foi mal! Eu só queria saber como tu reagiria — lamentou o lagarto com o pescoço ainda dolorido. — Tu bem que precisava de um regime, acha não? Parece que está carregando uma armadura inteira no bolso.
Auria saiu de cima do lagarto que respirou fundo com o ar que voltava para seus pulmões. Ralph ajeitou sua espada de madeira nas costas e, após olhar tudo de relance, foi em direção da saída para observar a vista.
— Pensando bem, ele nunca me encontraria aqui...
— Ele quem? — perguntou Lesten.
— Um contador de histórias, um viajante que o Ralph conheceu quando era criança — falou Auria. — Nós estamos isolados em uma ilha. Ele nunca vai te encontrar.
— É tão difícil descobrir o que fazer sem a ajuda de um mentor... Lesten, acha que pode nos levar para o porto? Precisamos voltar para o continente, nossa função nesta ilha está cumprida.
O lagarto era tão esquecido que não levara em conta o porquê de estar morando sozinho, longe de toda civilização. Podia considerar-se privilegiado pelo fato das autoridades não terem obrigado que ele partisse da Ilha dos Geckos, mas dar as caras no centro da cidade não era uma das ideias mais sensatas.
Eles seguiram pela costa evitando ao máximo contato com a selva repleta de insetos e monstros. O som constante das ondas trazia a sensação de continuidade, as pegadas do lagarto iam ficando para trás. Às vezes, quando Lesten corria pela praia, fincava as quatro patas no chão e ganhava velocidade para caçar caranguejos que se escondiam na areia com ainda mais rapidez. Terminava todo sujo depois que enfiava o focinho na areia para apanhá-los, quase sempre retornava vitorioso com um petisco entre os dentes.
Ralph aproveitou para retirar suas botas, arregaçar a barra da calça e sentir a areia em seus pés. O jovem voltou-se para Auria e perguntou:
— Por que não entra também?
— Não estou muito disposta, obrigada — ela respondeu num ar sério.
— Oh, fêmea, tu não sente calor dentro desse casulo encouraçado? — perguntou Lesten.
— É uma jaqueta. E foi um presente da minha irmã mais velha, é uma das poucas coisas que guardei dela antes de ir embora. Quando visto sinto que estou protegida, como se fosse a minha própria armadura — disse Auria. — Estou morrendo de calor, mas não quero tirar. Nunca se sabe quando alguma criatura pode atacar, ainda mais na costa do oceano.
— Alguma coisa... tipo um monstro? — Lesten mencionou com entusiasmo. — Sei tudo sobre eles! Monstros mais antigos que a própria história, habitando as profundezas do mundo, criados desde os tempos em que Tokay, Asa Negra, ainda explorava a terra, os mares e o céu.
— Você também é fã do Asa Negra? — perguntou Ralph. — Ele é o meu ídolo!
— Não brinca. Toca aí, ruivo, tu é o cara! Não faz nem uma hora que nos conhecemos, mas acho que já gosto de ti.

i

Lesten os levou ao cais onde o navio da Vila das Pérolas havia atracado. Existia uma taverna conhecida como Escama Azul, famosa por aperitivos que iam desde casquinha de siri até camarões e lula à dorê, mas a iguaria mais cobiçada era um drink azulado de teor alcóolico chamado Cascata do Dragão. Na recepção também era possível alugar um barco de pescador para que fizessem seu caminho de volta à terra firme.
Lesten entrou na taverna empurrando a porta com as duas mãos, Auria do lado direito e Ralph do outro. Os poucos geckos dirigiram seus olhares para os humanos primeiro, mas por algum motivo não fixaram a atenção neles. Alguns se calaram, outros levantaram e foram embora pela porta dos fundos. O restante ficou observando-os de longe, como se apenas esperassem o inevitável. Logo retomaram suas atividades, mas o clima não era mais o mesmo.
O lagarto guerreiro carregava um sorriso torto entre os dentes, foi até o balcão e sentou-se numa banqueta que girou sem parar, depois pediu três copos de Cascata do Dragão para ele e seus novos amigos.
— E aí, sentiram falta do seu freguês favorito? — disse Lesten. — Como passaram sem minha ilustre presença? Aposto que quase vieram à falência sem seu melhor cliente, vejo que estão até carentes de um pouco de bom humor!
O barman que os atendia permaneceu sério, depois abaixou a cabeça e continuou limpando um copo de vidro como se não tivesse nada melhor para fazer. Lesten ria alto e chamava muita atenção, mas ninguém lhe dava ouvidos. Auria imaginou se era por culpa dela e de Ralph que os outros geckos estavam tão nervosos e incomodados.
Foi então que alguém nos fundos gritou:
— Se manda, Lesten. Não te expulsaram da ilha?
— O quê? — ele berrou. — Quem disse isso?
Lesten virou-se furioso com a acusação, saiu de sua banqueta e caminhou até um grupo de amigos que bebiam juntos. Sem esperar maiores explicações, ele ergueu um deles pelo colete de pele e encarou-o nos olhos sem pálpebras.
— E o que tu vai fazer a respeito?
Dessa vez foi o atendente quem interferiu:
— É por isso que não gostamos de você por aqui, Lesten! Veja suas atitudes! Todos ficaram felizes no dia em que souberam que você não poderia mais vir ao centro. Sem mesas quebradas, copos ou janelas destruídas. Nenhuma briga. Ninguém nunca mais saiu incomodado, nem machucado. E tudo isso porque você foi embora.
O lagarto largou o sujeito. Olhou para cada um ali presente e sentiu-se traído pela própria raça, por pessoas com quem — pelo menos de sua parte — acreditava serem seus amigos.
— Mas eu animava esse lugar — Lesten respondeu atônito. — É da nossa raça. Brigamos, lutamos, defendemos uns aos outros porque somos... geckos. Essa é a nossa natureza.
— Não. Nós nunca fomos animais, somos seres civilizados. A sua natureza é ser um animal — respondeu o atendente com firmeza, abaixando a cabeça. — Vá embora, Lesten, antes que eu chame a marinha e peça para que eles te mandem dessa vez para mais longe, em um exílio do qual nunca mais poderá voltar.
Ralph decidiu intervir pela primeira vez desde que entrara no Escama Azul.
— Meu senhor, não queremos intrigas. Se o Lesten veio até aqui, é porque eu pedi a ele. Meu nome é Ralph, recebi a criação de geckos como vocês. Sei como são os costumes.
— Não é a nossa intenção censurá-lo, meu bom garoto — disse o velho atendente. — Mas ouça meu conselho, este companheiro que arranjou não é confiável. Ele traiu seu batalhão no exército, não tem respeito algum pelos mais velhos e experientes, arrumou encrencas condenáveis e, quando você mais precisar, ele virará as costas.
Ralph voltou-se para Lesten que mantinha a fronte baixa, sem concordar nem negar nenhuma daquelas acusações.
— Ele é um mentiroso — continuou o fregueses ameaçado, ajeitando o colarinho. — Não sabe conter suas brincadeiras e ultrapassa qualquer limite aceitável. É por isso que não há lugar para alguém como Lesten entre nós.
Auria enfiou as mãos nos bolsos, agora todas as suas suspeitas a respeito daquele lagarto encrenqueiro estavam confirmadas.
— Ele vai melhorar — prometeu Ralph com convicção, o que impressionou a todos. — Não vai, Lesten?
O rapaz olhou para o lagarto que manteve a cabeça baixa. Quando esticou a mão em sua direção, Lesten revidou com um arranhão que o fez recuar de imediato. Ajeitou sua armadura no corpo e lançou um olhar fuzilante para cada um ali presente.
— Eu não preciso “melhorar”. Não preciso mudar para agradar ninguém.
O lagarto saiu e chutou a porta com tanta força que se partiu ao meio. Ele bufou impaciente, mas logo voltou a caminhar em direção do píer.
O barman soltou um longo suspiro de desaprovação. Ralph não estava bravo ou irritado pelo arranhão que levara, que inclusive sangrava muito. Sua expressão demonstrava apenas preocupação.

ii

Lesten caminhava pelo píer com o olhar perdido e os pensamentos abalados. Parou assim que atingiu a ponta, onde se sentou e observou a fita vermelha em sua lança esvoaçar ao toque do vento. Ele observou-se no reflexo de sua espada, viu a cicatriz que lhe trazia tantas lembranças e soltou um suspiro.
— É, meu irmão... Só mesmo família para me aguentar.
Havia alguns poucos barcos pesqueiros na região. Lesten nunca admitiria seus erros do passado. Aquela ideia de sair em uma aventura com pessoas que acabara de conhecer não fazia sentido algum. Talvez fosse melhor continuar onde sempre estivera, onde ninguém jamais o encontrasse. Dessa forma, ninguém o criticaria ou tentaria impor regras e mudar sua natureza.
Havia uma fragata aproximando-se da costa, um navio de guerra usado nos dias antigos. As bandeiras não exibiam símbolo algum. Os pescadores locais imaginaram tratar-se de um navio de turismo que eram comuns naquela época do ano, um espetáculo e tanto a ser observado. Banhistas e turistas na praia acenavam contentes.
Mesmo que tivesse sido afastado dos serviços no exército há cerca de cinco anos, ele reconhecia que uma embarcação sem bandeiras não tinha boas intenções.
A fragata moveu-se silenciosa e um bote cheio de homens desprendeu-se da embarcação. Sujeitos grandes e robustos ancoraram na praia como se fizessem uma viagem de férias em terras estrangeiras, apesar de estarem armados e com expressões nada amigáveis.
A pequena tripulação era composta por cerca de oito homens sujos e enfadonhos, alguns carregavam espadas e machados, mas o mais surpreendente eram as armas — daquelas que matam num instante, que usam mecanismos modernos e pólvora, que tornam espadas ineficazes e rompem as armaduras mais resistentes. Eles com certeza tinham algum contato obscuro de fontes desconhecidas, porque armas eram raríssimas e caras em qualquer região de Sellure.
O líder deles era o mais bizarro, um homem tão gordo que os outros sete precisavam ficar do lado oposto do bote para equilibrar seu peso. Na cabeça ao invés de um chapéu clássico carregava uma sacola de ouro, como se desejasse que todos contemplassem seu tesouro.
Ao deparar-se com a porta que Lesten quebrara minutos antes, o homem não conseguiu esconder a decepção.
— Quem quebrou essa porta? Vocês vão me obrigar a consertá-la só para eu destruí-la de novo?!
Ele indicou que dois de seus comparsas erguem-se a porta quebrada e a colocassem apoiada em seu devido lugar, depois foram todos embora. Os clientes da taverna se entreolharam. Segundos depois ele voltou, chutou-a com força e dessa vez estava rindo como o sujeito insuportável que era.

— Bah, hahaha! Eu sou Johnny Goldo, o Contador! Não respeito regras de humanos ou lagartos que me impeçam de entrar nessa ilha. Ajudem o bom Goldo, que o Goldo ajuda vocês.



Os clientes pareciam assustados, Ralph girava em sua banqueta e Auria continuava tomando um gole da bebida que lhe fora oferecida. O pirata e seus comparsas se acomodaram no balcão e o garoto cumprimentou-os contente.
— Olá, meu nome é Ralph, da Espada de Madeira. Algum de vocês quer entrar na minha equipe?
Goldo arqueou uma das sobrancelhas e ajeitou suas pernas balofas. Ele fungou o nariz sujo e soltou uma baforada fedida no rosto do rapaz:
— Você me parece estranhamente familiar — Goldo balbuciou enquanto coçava a barba. — Mas enfim, você tem dinheiro para fazer essa oferta?
— Sim, sou a pessoa mais rica de Sellure. Tenho um tesouro aqui, do meu lado.
Auria quase engasgou com a bebida. Goldo ficou observando-o dos pés à cabeça, devia ponderar sobre a resposta inesperada. Virou-se para seus companheiros e retirou o saquinho de dinheiro da cabeça, eles faziam contas com os dedos das mãos com certa dificuldade, só para ter uma noção aproximada do quanto possuíam.
— Tesouro? — Ele guardou o saco de dinheiro no cinto. — Bem, meu caro amigo, acho que começamos a falar a mesma língua. Estamos falando de quanto?
— De um valor inestimável — respondeu Ralph balançando a cabeça. Em seguida, ele colocou a mão no ombro de Auria e falou: — Afinal, amigos não se compram! Também tem o Lesten que está lá fora e ele eu até poderia fazer na promoção, mas não acho que vou poder vendê-los para o senhor, são o meu maior tesouro.
Os piratas começaram a rir alto e em conjunto, logo todos riam de Ralph, que também começou a rir. Auria agarrou a gola da camisa dele e encarou-o com aquele ar desafiador e olhos insondáveis.
— Quer bancar o engraçadinho para cima de estranhos? Não percebe que eles estão armados?
— Eu também estou — lembrou Ralph, apresentando sua espada de madeira.
— Eu odeio quando você faz isso... Me faz ter coragem.
Goldo riu a ponto de precisar limpar as lágrimas forçadas de tão engraçado que achara a situação. O pirata então olhou para Auria que manteve o cenho franzido e sua costumeira feição de mau humor. Arregalou os olhos e riu o mais alto que pôde.
— Ela é o tesouro? Essa é a mulher mais feia que eu já vi em toda a minha vida! Bah, hahaha!
Goldo e sua tripulação fazia piada de qualquer situação. Dessa vez Ralph não riu. Não admitia que falassem mal de seus amigos na sua frente. Levou a mão até a bainha da espada em suas costas, mas sentiu alguém tocá-lo e pedir que se contivesse.
— Esses caras têm uma conta a acertar comigo.
A moça caminhou em direção do pirata que ainda ria sem parar. Ao erguer o punho, deu-lhe um soco tão forte na cara que todas as moedas em sua sacola de dinheiro voaram e se espalharam pelo chão, fazendo com que os lagartos presentes se levantassem para apanhá-las em um tumulto frenético. Goldo cuspiu um dente de ouro que se perdeu ali no meio, desaparecendo nas mãos de alguém que o confundiu com uma moeda.
A mulher mantinha o peito estufado. Auria abanava sua mão dolorida pela força inesperada que usara, nem ela conseguia acreditar que acertara alguém na cara, devia estar guardando essa vontade desde que ingressara na academia. A sensação era incrível para seu deleite, seus olhos ardiam como ferro em brasa.
— Que mulher irritante! — Goldo tentou levantar-se atordoado. — Homens, saqueiem tudo que encontrarem! Dinheiro, produtos de valor, até mesmo comida; precisamos de um estoque grande para nossa viagem até a Ilha-S. Essa mulher vai se ver comigo.


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