Capítulo 10
Com a prisão de Goldo e seus comparsas, a fragata estava
vazia e o desejo de Ralph por aventuras o levou a investigá-la. Perguntava-se o
que piratas teriam escondido em seu convés — mapas, baús do tesouro, itens
preciosos para sua jornada?
A decoração era rústica e de bom acabamento, traço do
povo recluso de Garamond. Quando alcançou a cabine do capitão, avistou um imenso
mapa do Reino de Sellure que cobria uma parede inteira. Ralph não conhecia nem metade
das províncias existentes — Bodoni, Century, Constantia,
Garamond, Helvetica, Myriad, Perpetua e Trajan. Sua entrada na academia da Vila
das Pérolas fora a única oportunidade até então de sair de sua terra natal para
explorar o mundo, o que o aguardaria dali para frente?
Passou a mão por uma bela poltrona de veludo e encarou a
paisagem através de uma janela aberta. O mar estava tranquilo e o sol começava
sua despedida. Ralph viu passar um trem que cortava as ondas no meio do oceano,
não fazia ideia que aquela rota permitia a passagem do famoso Trem das Águas.
Um ruído fez seus sentidos se aguçarem, mas não havia
ninguém no local. A sala do capitão levava a um depósito no andar inferior, talvez
algum pirata ainda estivesse à espreita, de vigilância.
Desceu duas levas até os depósitos, onde caixotes estavam
jogados e alguns até mesmo abertos com todo seu conteúdo de mercadorias
roubadas espalhado pelo chão. Julgou melhor não examiná-las, pois se tratava de
uma tarefa para a marinha.
O chamado repetiu-se. Ralph sacou Lignum com uma das
mãos.
Sssssiga-me, meu bom menino.
O ambiente era
escuro demais para se enxergar, pois contava apenas com a iluminação fraca dos
raios solares que passavam pelas frestas entrepostas do piso superior. Ali estava
um gecko de pele albina, vestido em um jaleco branco fechado até a altura do
pescoço, sua longa cauda balançava incontida de um lado para o outro enquanto
ele se atentava aos manuscritos mais recentes que tomara nota. Virado de costas,
balbuciava palavras misteriosas enquanto acrescentava anotações na parede com
uma lasca de pedra afiada.
Ralph observou a
cena intrigado. Os rabiscos pareciam escritos em uma língua antiga há muito
esquecida. Assim que ele apoiou as mãos na grade o gecko virou-se depressa com
os olhos esbugalhados e os dentes à mostra de um jeito agressivo, depois ficou
observando o garoto, como se tentasse sufocá-lo na escuridão.
— O que está
fazendo aqui? — A serpente cuspiu as palavras, olhando para o nada.
— Eu ouvi uma
voz. Pensei que você tivesse me chamado — Ralph respondeu.
— Se nem você
sabe, quem sou eu para ter certeza? — O gecko voltou a escrever na parede. — Vá
embora, antes que eles decidam pegar você também.
O jovem julgou
que aquele pobre prisioneiro deveria estar louco e pensou em afastar-se, mas
não abandonaria alguém em necessidade. A criatura parou de rabiscar só por um
instante.
— Espere. — E
olhou para Ralph, mas não em seus olhos. Suas palavras saíram quase como um
sussurro sem som. — Eu sei sssssim.
A serpente guardou
a pedra lascada no bolso e caminhou em direção do humano. Por trás das grades
esticou o braço para ele, ereto e com uma expressão taciturna. Para um gecko,
parecia mais instruído que outros que conhecera, como um professor de pesquisas
que apresenta sua mais nova descoberta à bancada.
— Apresento-me a
você como o Doutor Erlenmeyer, mas se for incapaz de lembrar-se do meu nome,
dou-lhe a permissão de chamar apenas de doutor. — Ele apertou a mão do rapaz
com naturalidade, como alguém recebe uma visita em sua casa. — O que traz uma
ovelha para o covil dos lobos em uma situação tão inusitada?
Ralph olhou para
a cela desgastada e suja em que ele se encontrava.
— Pensei que o
senhor fosse um prisioneiro, por isso vim verificar.
O velho gecko
olhou ao redor, observador.
— Verdade.
Parece que estou preso — o doutor comentou, cauteloso. Sua voz mudara
drasticamente. — Será que você poderia me tirar dessa cela para que possamos
conversar como bons cidadãos civilizados, meu garoto?
Ralph atentou-se
à porta da cela. Estivera aberta o tempo todo, não havia nem sinais de que fora
arrombada. Ele recuou dois passos por precaução e preferiu não contrariar o doutor
e sua sanidade.
— Quem é o
senhor?
— Que bom que
perguntou. Sou um pesquisador e cientista autêntico em busca de respostas ainda
não solucionadas deste mundo, doutorado em ciências e tecnologia pela UNIS,
turma de 83. Eu acompanhava esses bons samaritanos em viagem quando fizemos uma
pausa. Agora aqui estamos nós, tendo essa conversa excepcional — disse Erlenmeyer.
— O que procura na Ilha-S?
— Na verdade
estamos na Ilha dos Geckos.
— Sério? Não é onde
eu deveria estar.
Ralph observou a
criatura. Viu que ele tinha braços, mas seus pés ficavam sempre escondidos,
como se rastejasse. Não devia ser da espécie dos lagartos ou crocodilianos, mas
das serpentes.
— Há algo que eu
possa fazer por você, doutor? Nós também deixaremos a ilha em breve e seguiremos
de volta para a Vila das Pérolas ou algum lugar onde possamos criar uma base
provisória, e...
— Pérolas? — O Doutor Erlenmeyer avançou
contra Ralph e tentou agarrá-lo do outro lado da grade, mas foi impedido pelas
grades. Por sorte os dois mantiveram uma distância segura. Assim que se
recompôs, a serpente desculpou-se com cordialidade.
— Perdão, acabei
ficando... apreensssssivo. O que sabe
sobre as pérolas?
— Tem uma porção
delas lá na vila, são como areia nas praias. Perderam total valor — comentou o
rapaz.
— Não me refiro
a esse lixo do mar. Falo das Pérolas Sagradas. Se eu lhe disser sobre elas,
promete que não conta para mais ninguém?
— Eu
provavelmente vou falar para os meus amigos. — Ralph teve de ser sincero. — Não
sou bom com segredos.
Erlenmeyer
pareceu não se importar.
— Justo. Preocupar-se
com seus amigos antes de todo o resto. Os meus
também estão ouvindo nossa conversa de qualquer maneira. — Ele olhou para os
lados, só para ter certeza de que não havia mais ninguém presente.
O doutor enfim
saiu da cela, caminhando de um jeito meio encurvado. Ernlenmeyer apontou para a
parede onde estivera escrevendo e Ralph distingiu o desenho de um pentágono com
cinco pontos distintos. Os círculos deveriam ser as pérolas, cada uma delas era
cercada de cálculos e potenciais localidades, muitas delas riscadas e
descartadas, devia estar há anos naquela busca.
Os desenhos
formavam um mapa. Erlenmeyer chegou bem perto de Ralph e começou a lhe explicar
enquanto mexia suas patas de dedos compridos e unhas afiadas.
— Cinco são as Pérolas
Sagradas e cinco são os guardiões que as protegem. A Ordem do Selamento é como se intitulam. Durante anos estudei a raça
dos tótines para explicar como eles detêm tais poderes. A mana é uma energia
que está em tudo a nossa volta, como água e fogo — contou o doutor, erguendo as
mãos no ar como se fosse capaz de tocar algo invisível. — Os tótines esperam
tê-la só para si, roubaram toda a magia do mundo e, por isso, julgam-se superiores.
Todos deveriam ser iguais, não acha?
— Esses
guardiões são mesmo assim tão poderosos? — Ralph repetiu intrigado.
— São temíveis e
astutos. Dizem que as pérolas podem invocar o Mago Supremo do Reino de Sellure,
uma entidade capaz de realizar sonhos, desejos e vontades; um xamã com poderes
que fogem à nossa compreensão.
Quando era
menino, Ralph ouvia histórias sobre feiticeiros poderosos e criaturas místicas.
Ele não duvidou de palavra alguma, pois o cientista falava com tanta convicção
que seria crueldade interrompê-lo de seus devaneios.
— Desde os
tempos passados, as pérolas estavam ligadas à força fundamental da vida. Costumava-se
dizer que quando uma perdia o brilho, era um presságio da morte. Estudiosos
desenvolveram meios de drenar a mana e colocá-la em objetos. Na época, as
pérolas foram os instrumentos escolhidos antes de começarem a usar selos por
sua praticidade. Nunca me conformei com a ideia da magia ser
limitada, até descobrir que existe um motivo para que ela tenha sido herdada
geneticamente por essas criaturas. Eu estudo ciência para explicar o que muitos
não compreendem. — Erlenmeyer escalou
uma parede o encarou Ralph de cima para baixo. — Você as buscaria? Buscaria para
mim? Eu seria muitísssssimo
agradecido.
— T-tudo bem —
Ralph concordou. A língua bífida se movia incessante, como se tivesse o intuito
de desconcentrar a vítima. — Onde podemos encontrar essas pérolas sagradas?
— Century. — O
pesquisador voltou a apontar para os rabiscos na parede e bateu três vezes.
Ele subiu a
escadaria para fora do depósito e indicou que Ralph o acompanhasse. Continuou até
a sala do capitão e começou a revirar gavetas e baús em busca de algo com
extrema euforia.
— Onde eu deixei?
Onde está? Ah, aqui.
O pesquisador
apresentou um mapa detalhado de Century, uma região a sul da província onde se
encontravam. Ficava entre Myriad e Helvetica, Ralph passara por essas terras em
sua viagem de trem até a Vila das Pérolas. Erlenmeyer começou a desenhar
marcações em lugares que não faziam sentido algum no momento.
— Eu os tenho
observado. Só podem estar aqui. Não tenho tempo para me rastejar pela terra em
busca de hipóteses, então você será de grande ajuda, meu garoto.
Assim que
terminou, entregou o papel amarelado nas mãos do rapaz e aproximou-se da mesa
central para arrumar acessórios e pequenos adereços que não estavam
perfeitamente alinhados.
— Eu deveria
investigar cada um desses pontos?
— Sim, sim. Minhas
pesquisas apontam que os guardiões estão nessas proximidades... — contou o
doutor. Ele agia como se tudo ao seu redor o incomodasse, ajeitava cadeiras e
limpava onde já estava limpo. — Com as Pérolas Sagradas em mãos, terei poder para
me encontrar com o Mago, e talvez até mais. Minha sede é em Bausonne, capital
de Century, então peço que me encontre quando as tiver em mãos. Procure pela Semente
Venenosa.
— Doutor, não
complica as coisas porque eu sou péssimo com metáforas! Mas já que nós também
estamos indo para Century, eu e minha equipe poderíamos acompanhá-lo, e...
— Não — Erlenmeyer gritou, o que causou
certo espanto no garoto. — Eu não ando junto de... pessoas. Pessoas são más
quando formam grupos, elas logo começam a pensar, e ter ideias, e.... Trabalho melhor
sozinho.
Ralph concordou.
Olhou para o mapa e refletiu sobre a proposta, era a primeira grande missão que
alguém colocava em suas mãos.
— Resumindo: o
senhor sugere que eu saia em uma jornada maluca, derrote cinco guardiões poderosos
e encontre as pérolas para você invocar um mago que ninguém sabe se existe
mesmo?
O Doutor Erlenmeyer
confirmou com a cabeça. Gostava de crianças que aprendiam rápido.
— Não podemos
sentar e esperar a boa vontade de uma força divina que foge à nossa
compreensão. O mundo precisa de mudanças.
Ralph dobrou o
mapa e guardou-o no bolso da calça.
— Eu aceito. Vou
só conversar com meus companheiros de equipe e ver quando partimos. Se quiser,
podemos tomar um café qualquer dia desses e você me explica de novo qual a
pegada desses símbolos confusos no mapa, porque pra ser sincero eu não entendi quase...
Quando Ralph se
deu conta, estava falando sozinho.
Olhou o cômodo,
mas não havia sinal do Doutor Erlenmeyer. O jovem correu para fora da cabine, viu
as ondas batendo no casco do navio e imaginou se o pesquisador sinistro não
havia decidido pular. Sua cabeça estava num turbilhão tão grande de ideias que
Ralph olhou para baixo e, sem pensar duas vezes, pulou também.
i
— Ei, fêmea. Não
é o Ralph naquele barco?
— Não enxergo
muito bem de longe, lagartixa, mas acho que é, sim.
— É a minha
impressão ou ele vai pular?
— Ele não sabe
nadar.
— ... E pulou do
mesmo jeito.
Não demorou para
que Auria arrancasse a jaqueta mais uma vez para salvar seu amigo. Saltou do
píer e mergulhou nas águas profundas à procura de Ralph que se debatia e
gritava. Agarrou-o com força para que não se afogasse e logo o levou para a
costa onde Lesten e alguns outros geckos curiosos observavam a cena.
— Qual é o seu
problema?! — Auria gritou, debruçada sobre o corpo molhado do rapaz estendido
na areia. — Por um acaso você tem alguma afeição romântica pelo perigo?
— Depende, seu
nome é perigo? — Ralph brincou e até Lesten teve de rir, pelo visto estavam
todos recuperados. — Pessoal, vocês não vão acreditar! Eu vi um sujeito
esquisito, ele disse umas coisas estranhas sobre pérolas mágicas, guardiões poderosos
e um mago capaz de realizar desejos, depois desapareceu, e...
Lesten deu dois
toquinhos no ombro de seu companheiro.
— Shhhhh... Já
passou. Tu acaba de ser nomeado o novo mentiroso da turma.
— Concentre-se —
Auria retrucou. — Tente organizar seus pensamentos. O que você descobriu que o
deixou tão alvoroçado?
O jovem olhou
para a fragata onde estivera e começou a juntar as peças que estavam espalhadas
pela mesa.
— Acho que eu
acabo de descobrir o nosso destino.
Com os piratas
presos pela marinha, metade das riquezas de Goldo foram confiscadas e serviram
para consertar os danos na ilha. Uma parcela mínima terminou nas mãos dos
aventureiros como forma de agradecimento — ao menos, a estadia na pousada saiu
como cortesia. Auria conversava
com as autoridades a respeito da destruição causada e tentava inventar uma
desculpa convincente para explicar o que dois humanos clandestinos faziam na
Ilha dos Geckos. Por ter colaborado com a captura de um fugitivo, teve passagem
liberada contanto que se apressasse em deixar o local, os habitantes da ilha
estavam fartos de humanos naquela semana.
O grupo se
hospedou na taverna Escama Azul que os recebeu de bom grado pela proteção. Era
por volta das seis da tarde e o céu laranja oferecia uma linda visão sem fim do
horizonte distante. Passariam a tarde descansando, mas Lesten teve de continuar
escondido dos oficiais.
Ralph estava deitado
na cama, refletindo sobre o que ouvira do Doutor Erlenmeyer — as palavras do
pesquisador, o mapa oferecido e seus cinco pontos misteriosos. O que significavam?
Quais seriam os grandes tesouros? A busca era como caçar um dragão: todos
sabiam que existiam, mas ninguém nunca mais viu um.
— Ei, Auria...
Você já esteve em Century?
— Uma vez passei
as férias em uma casa de campo com minhas irmãs — a mulher estava na varanda do
quarto enquanto apreciava a vista —, o turismo é muito forte.
— Só que não é o
melhor lugar para um gecko viver — falou Lesten em busca de algo para comer. — O
clima é incontrolável. E mudanças súbitas afetam minha espécie.
— Bem, é para lá
que estamos indo.
Auria virou-se com
as sobrancelhas franzidas. O clássico sinal de que discordava de algo.
— E por que o
senhor aventureiro decidiu ir para Century?
— Nós temos um novo
objetivo lá.
— Outro? — Auria
deu de ombros. — Nosso plano não era construir uma base e prestar serviços?
— Pensei que
fosse sair correndo sem pagar a conta — murmurou Lesten.
— Estamos em uma
situação delicada aqui na Ilha dos Geckos — contou Ralph. — Depois do ataque dos
piratas, os portos redobrarão a atenção para cima de qualquer embarcação, ainda
mais de humanos. Estão de olho na gente. A única opção seria voltarmos para a
Vila das Pérolas.
— Estou
começando a achar que eu nem deveria ter saído de lá.
Ralph era
péssimo em esconder seus sentimentos. Ele era como um livro aberto — qualquer
um ao seu redor sabia dizer quando ele estava feliz, triste ou zangado.
— Desculpe. —
Auria percebeu que sua resposta soara mais rude do que gostaria. — É que até
agora só estamos sendo jogados de um lado para o outro...
— Há quase dez
anos eu tenho procurado o viajante que conheci quando eu era criança, mesmo
assim eu nunca desisti — Ralph respondeu. — Você me acompanhou até aqui, Auria.
Eu preciso de você ao meu lado.
Ralph
levantou-se da cama e ficou ao seu lado na varanda. O céu alaranjado mesclava
com as luzes da rua que começavam a ser acesas, a calçada que dava para o
centro estava cheia de geckos de todas as cores e tipos. Lá longe era possível
ver um cruzeiro chegar, tão grande quanto um monstro marinho. O garoto respirou
o ar salgado do litoral, ouviu o barulho das ondas e sentiu cada espaço de um
mundo que nunca teria tido a chance de conhecer se não tivesse arriscado.
Auria o puxou
pela gola da blusa, seus rostos muito próximos e os narizes quase se encostando.
— Você me enfiou
nessa aventura, então é bom que façamos algumas lembranças que valham a pena.
Ralph encarou
com firmeza aqueles olhos profundos, suas pupilas como obsidianas. Era o
segundo pôr do sol que via ao lado de Auria e esperava ter a chance de ver muitos
outros.
— Eu prometo que
você nunca mais vai esquecer essa viagem!
— É bom mesmo — disse
a mulher com uma risada. — Explorar o desconhecido sem nem saber por onde
começar. Só você mesmo para me levar nessas ideias malucas.
Quando uma
proposta surgia, por mais arriscada e ousada que parecesse, Auria aprendeu que não
pensaria duas vezes em agarrá-la e fazer dela uma oportunidade. Agia assim
desde que conhecera certo garoto de cabelos vermelhos não fazia nem uma semana.
Porém, Lesten ainda
não pensava da mesma maneira, odiava ser tirado de sua zona de conforto.
— Calma aí. Eu
não vou deixar a Ilha dos Geckos. O mundo lá fora é cruel e perigoso, tu não sobrevive
nem um dia sem que uma desgraça aconteça. E do jeito que sou azarado, vai ser
comigo!
— Isso pode até
ser verdade, mas se você ficar trancado em casa vai perder inúmeras
oportunidades e perceber que no fim teria sido melhor tentar. Veja o mundo com
seus próprios olhos — Ralph respondeu.
Lesten se
estirou no chão só para chamar atenção.
— Tô de boa,
cara. Quero ver quem é que vai me tirar daqui.
— Você é
preguiçoso, isso sim. — Auria o desafiou.
— Talvez seja
verdade, fêmea! Minha preguiça me impede de viver, foi-se a época em que eu era
um guerreiro nato, é só olhar pra minha barriga.
— Nós iremos
para Century com ou sem você.
— Não se preocupe, aposto que vai acontecer
alguma coisa sobrenatural de última hora que o fará mudar de ideia — falou
Ralph.
— É o que
veremos, ruivo.
ii
Mal completara
vinte e quatro horas que estavam na Ilha dos Geckos, era triste ter de
despedir-se dela sem aproveitar um pouco do paraíso ancestral. A cultura reptiliana
era exótica, eles se preocupavam como nenhum outro ser com sua história e
louvavam seus ídolos como verdadeiros heróis. Um dos pontos turísticos mais
famosos da ilha datava dos primeiros anos do mundo, era possível visitar o
túmulo onde o lendário Tokay Asa Negra estava enterrado e conhecer o museu onde
historiadores mantiveram intactos seus equipamentos de batalha e sua história
de vida. Outra atração famosa era a montanha que dava vista para parte da
cidade de Cortina Escarlate, capital de Myriad e terra natal de Auria.
Ralph desceu rumo
à recepção para verificar a disponibilidade de um navio que voltasse para o
continente. O único que faria uma travessia até Century chegaria após as duas
da tarde, logo, teriam de esperar.
O grupo
aproveitou para organizar seus pertences e provisões. Eles se serviam do café
da manhã com torradas, frutas e leite quando puderam ouvir certo movimento
vindo do andar de baixo. Os soldados da marinha local bateram a porta e foram
direto para a recepção, mas dessa vez não estavam à procura de piratas.
— Bom dia — o oficial falou com a atendente —, poderia
informar-nos se Lesten, o Perturbador, encontra-se hospedado neste local? Ele não
tem o direito de se aproximar do centro, é acusado de quebrar duas cabanas, levar
frutas do mercado e causar problemas em cinco pontos fixos da ilha. Nós o
interrogaremos assim que o encontrarmos e o levaremos sob custódia.
— Quando foi que você arranjou tempo para fazer tudo
isso? — Ralph perguntou assustado.
— Mano do céu, esses caras não esquecem nada!
Lesten agarrou as mãos de seus amigos e pulou pela
janela. O lagarto pegou embalo no teto de palha de uma casa para escapar dos
soldados da frota que os perseguiam. Carregava seus amigos com uma facilidade
incrível em suas costas, mas eles não diriam o mesmo sobre se segurarem. Movia-se
feito uma lagartixa por paredes íngremes, esgueirando-se em cantos e
despistando a todos como um belo fugitivo. Os funcionários corriam pelas ruelas
afora enquanto gritavam:
— Ele está ali,
peguem-no!
— Trouxas! — Lesten ria com gosto. — Eu vou dar é o fora
dessa ilha, nenhum de vocês merece a honra de pisar no mesmo solo que eu!
Lesten era tão rápido que os soldados logo ficaram para
trás, no tumulto do cais. O grupo alcançou
o píer onde travaram a batalha contra Goldo e o Dinorros. Eles se esconderam
embaixo da ponte e avistaram a fragata apreendida. Uma ideia inesperada percorreu
pela mente dos três.
— Não, não e não.
Nós não somos ladrões e não vamos roubar um barco desse porte — disse Auria.
— Roubar?! A ação
mais comum entre geckos é pegar algo emprestado e não devolver mais — respondeu
Lesten. — Pense que é por um bem maior.
— Abaixem-se!
Eles se
esconderam assim que os guardas passaram reto por cima da ponte.
— Algum de vocês
sabe algo sobre navegação? — Ralph questionou com a voz baixa.
Não havia
perícia alguma entre os três. Se continuassem ali, seriam descobertos; se
tentassem manejar uma embarcação daquele tamanho, corriam o risco de afundar ou
ficarem desnorteados e irem parar em uma ilha aleatória. Eles precisavam dar um
jeito de chegar à Century o quanto antes.
Foi quando ouviram
um apito forte vindo distante e imaginaram se não seriam reforços. Lesten
estava amedrontado, Auria aproveitou para espiar e seus olhos foram ao encontro
do que poderia ser a chance perfeita de alcançarem seu destino com conforto e
precisão.
— Rapazes, o que
acham de pegarmos de trem?
— Mas é claro! —
respondeu Ralph. — O Trem das Águas liga as oito províncias do reino. Só
precisamos alcança-lo.
— Tá vendo a
estação ali? — Lesten apontou longe. — Se a gente correr, dá pra entrar a
tempo.
— Então é só
isso? Correr? — Auria perguntou e o lagarto revelou uma risada assustadora,
balançando a cabeça de forma positiva.
— Correr muito.
Os grupo saiu em
disparada, o que logo chamou a atenção dos oficiais que mais uma vez voltaram a
persegui-los — e mesmo que Auria e Ralph não tivessem nada a ver com a
história, só eram perseguidos porque estavam correndo também. Lesten corria na
dianteira, Ralph em seguida e Auria mais atrás. O lagarto deu um pulo e passou
pelos caixas sem pagar. Ralph parou, retirou algumas moedas do bolso e deixou
com o atendente da estação antes que Auria o agarrasse pela gola da blusa e o
arremessasse dentro do trem que fechou as portas poucos segundos depois.
Os oficiais foram
parando e nem se preocuparam em impedir que o transporte aquático seguisse viagem.
Lesten estava ileso, sentiu-se um vencedor. Fazia caretas e lhes mostrava o
dedo do meio — ou melhor, geckos só possuíam quatro dedos, então era difícil dizer
ao certo o que aquele gesto significava para eles, mas era ofensivo.
— Idiotas. Nunca
vão me pegar!
— É bem provável
que não, afinal, por que eles trariam de volta alguém que está se exilando por
conta própria? Nós fizemos um favor para essa gente — respondeu Auria com uma
risada enquanto procurava um lugar para se sentar e descansar.
O pobre lagarto continuou
olhando as pessoas no porto e parecia que elas comemoravam. Virou o rosto e
ignorou. No fundo estava feliz por ter criado coragem e abandonado a terra de
seu povo que tanto o odiava, levava consigo apenas o importante e sentia um peso
desprender-se de suas costas. Era a chance de recomeçar do zero.
— De agora em
diante vocês se responsabilizam por mim, ouviram? — Lesten apontou para seus
companheiros. — Eu exijo três refeições ao dia, um local confortável para
dormir e manhãs com sol agradável para me aquecer.
Auria apoiou-se
nas janelas e viu de longe o grandioso Dinorros no extremo sul da ilha, comendo
frutas e árvores suculentas de uma vez com seus bracinhos miúdos. Desejou toda
a sorte do mundo para a criatura que a fascinara tanto e soltou um longo
suspiro que foi compartilhado com seus companheiros.
— Será que nós
vamos encontrar outros monstros incríveis como ele por aí? — perguntou Auria.
— Century é
conhecida por ser um dos paraísos dessas criaturas — disse Lesten. — Existem
regiões tão antigas em Sellure que mal foram exploradas, oceanos, montanhas,
cavernas repletas de mistérios.
— Espero que o
mundo nos receba bem — disse o garoto.
A viagem duraria
até a manhã seguinte, o trem avançava depressa e o momento de descanso veio em
boa hora.
O vento soprava pelas
janelas com a velocidade inalterável, abrindo ondas em meio ao oceano quase
como se deslizasse e seguindo uma trilha enorme forjada em águas rasas. Eles
contornariam a costa e deixariam a província de Myriad para entrar em um novo
território, rumo a capital dos intelectuais, pesquisadores e acadêmicos. Um
novo arco estava para se iniciar.