sábado, 21 de dezembro de 2019

O Passado da Ordem - De Mãos Dadas com seu Reflexo (Parte 6)


Astra King repousava na enfermaria recebendo o devido tratamento para cuidar das feridas e mordidas espalhadas por seu corpo. O corte profundo causado pela garra da loba foi devidamente limpo, mas a infecção se alastrou depressa e o homem sentia dores intensas. A dor causada pelas injeções e produtos de higienização só o frustravam ainda mais, o que deveria ser um dia de comemoração se transformara em uma catástrofe, ampliando sua ira pela Silenciadora e seus ideais estúpidos. Não conseguiria ficar mais um segundo sequer deitado naquela cama desconfortável.
— Sr. King, por favor, peço que continue deitado e evite esforços — alertou-lhe o enfermeiro chamado Ethan que cuidava do turno da noite ao ver que o paciente arrancava os fios ligados ao seu corpo. — Até que o médico responsável chegue, eu preciso que o senhor mantenha-se calmo.
— Saia da minha frente, moleque! — Astra o pressionou contra a parede, o enfermeiro colidiu em uma estante de remédios e caiu no chão. Para um homem debilitado com seus cinquenta e poucos anos, ele tinha muita força invejável. — Eu vou buscar aquela vadia de branco e matar ela eu mesmo.
A discussão estava prestes a tomar novas proporções quando a sirene do laboratório disparou. Astra largou o pobre estagiário amedrontado e observou o teto em busca de ruídos — por se localizarem no subsolo, saberia dizer se o exército estivesse envolvido, pois ouviria passos por toda a parte, mas tudo continuava silencioso até demais. Estariam mesmo sendo atacados?
— Curioso — murmurou Astra, envolto em pensamentos. — Muito curioso.
Não levou mais do que dois minutos até que dois guardas o interceptassem na enfermaria:
— Senhor King, a prisioneira escapou!
— Ah. Que novidade — respondeu o homem com ironia. — Nenhuma jaula no mundo seria capaz de conter aquela besta. Onde está Erlenmeyer?
— Em reunião. Ele ordenou que não o incomodássemos em hipótese alguma.
— Cinquenta por cento desse laboratório é meu, eu o banquei, e eu vou entrar e sair daqui quando eu bem entender! — retrucou Astra King com ferocidade.
O pesquisador vestiu o jaleco ainda manchado de sangue e ninguém ousou impedi-lo. Caminhou com passos apressados para a sala de Erlenmeyer, sua secretária Sophia tentou interceder, mas dada a expressão de fúria do homem, era melhor que não ficasse em seu caminho. Assim que a porta magnética se abriu, Astra deu de cara com Erlenmeyer que servia chá e biscoitos para dois convidados.
— Ah, Sr. King, em boa hora! — disse o doutor. — Por Yllata, seu rosto ficou pior do que eu imaginava, mas nada que uma cicatriz ou outra não ajude a lembrar de não brincar com animais selvagens.
— Dê-me alguma boa notícia — respondeu Astra apressado, servindo-se do café dos convidados para garantir-lhe um pouco mais de energia.
— Claro, claro. Localizamos a terceira Pérola Sagrada, ela já está em nossa posse. Esses bons samaritanos a encontraram para nós — Erlenmeyer apontou para Brando e um comparsa que o cumprimentaram com um aceno —, agora estamos acertando as questões financeiras.
— Pode dar o que quiser para eles, eu só quero a máquina.
— Perfeitamente — agradeceu a serpente de forma complacente. — Pegue a chave do depósito com Sophia. Sinta-se livre para realizar os primeiros testes nas cobaias, você sabe onde encontrar os ratinhos, mas seja rápido. Receio que o laboratório não vá durar muito tempo.
Astra King deu meio volta e retomou seu caminho pelos corredores. A sirene continuava apitando, o que acentuava sua dor de cabeça. Tinha urgência para colocar sua máquina para funcionar o quanto antes, afinal, sabia que com a fuga e traição da Silenciadora era apenas questão de tempo até que as autoridades de Bausonne descobrissem a localização do laboratório secreto e confiscassem seus estudos e maquinários.
O terceiro subsolo era a região mais remota e afastada. Aos poucos a estrutura rígida de metal cedeu espaço para túneis de terra mal acabados, a iluminação branca que chegava a cegar olhos minguou até dar espaço para pequenas lâmpadas de emergência vermelhas em uma área que parecia nunca ter sido concluída por completo.
Astra abriu a porta de aço que dava entrada para uma câmara fechada, sem luzes ou janelas. Era possível escrutar o choro de crianças vindo de diversas partes, muitas delas correram para se esconder entre as fendas cavernosas que fediam a mijo e comida podre. Astra acendeu sua lanterna e começou a chamá-las com um assobio, como se brincasse de esconde-esconder. Agarrou a primeira criança que passou em sua frente pelo braço e a puxou com força para longe do escuro.
— M-me larga! Você é um monstro!
— Cala a boca, moleque. É melhor se comportar se quiser sair daqui com vida.
— Eu quero a minha mãe!
Astra acertou-lhe um tapa na cara, o que fez o menino aquietar-se por um tempo. Teve de ser praticamente arrastado para o andar superior, tentava segurar o choro para não terminar espancado como um dos garotos que se recusaram a colaborar na semana passada.
Ao alcançar a sala de testes isolada, Astra pediu que os demais cientistas fizessem os devidos preparos, com impulso aterrissou o menino em cima de uma mesa branca e ofereceu alguns sedativos antes que ele se deitasse.
— O que vai acontecer comigo? — perguntou o menino.
— Nada. Fique quietinho.
— ... eu vou morrer?
Astra encarou o menino nos olhos pela primeira vez, mas desviou quase imediatamente. Por algum motivo aquele garotinho ruivo o fez pensar em seus próprios filhos, mas não podia permitir que se coração amolecesse agora, não depois de tudo que fizera para alcançar seus objetivos.
— Não. Mas você vai sentir um pouco de sono e, quando acordar, seus pais já terão vindo te buscar — respondeu Astra de maneira gentil enquanto terminava de preparar sua seringa. — Qual é o seu nome?
— Trevor.
— É um belo nome. Boa noite, Trevor. Mande lembranças a eles quando encontrá-los.
Assim que Astra aplicou a injeção, o garoto fechou franziu o cenho e aos poucos sentiu os músculos relaxarem, ele caiu em um sono profundo que retardou seus batimentos cardíacos e sua respiração, agora Astra poderia dar início ao processo de extração da mana. A máquina era grande e corpulenta, diversos fios foram ligados ao paciente, os cientistas trabalhavam de forma incansável para aprimorar a combinação entre magia e ciência.
Para muitas pessoas era difícil explicar como a mana funcionava — era como enxergar a música ou tocar o vento, totalmente invisível aos olhos, embora muito claro das sensações causadas em quem pudesse contemplá-los.
Terminado os devidos ajustes, as portas de vidro se fecharam e máquina foi ligada. As luzes oscilaram em toda a cidade devido a quantidade de energia usada. Astra observou com atenção uma espécie de forma translúcida etérea ser arrancada do corpo da criança, flutuando leve como se um pote de glitter fosse dissolvido em um copo cheio d’água.
A criança não moveu um músculo sequer durante a “cirurgia”, como a chamavam. Astra analisava o recipiente de vidro redondo que armazenava aquela energia cósmica. Concluída a extração, o homem segurou a pérola com cuidado e ficou maravilhado, era a primeira vez que via a essência mágica dos tótines na palma de sua mão.
— Sublime — murmurou Astra, entorpecido pelo sucesso da missão. — Magnânimo.
— Senhor, a criança não está apresentando sinais vitais — alertou um dos cientistas.
— Pode descartá-la, vamos para a próxima. Traga todas aqui para cima.
A verdadeira caçada estava para começar.

i

Sheena esgueirava-se entre os corredores do laboratório, sabia que estavam no seu encalço. Ao ouvir a conversa e passos de dois seguranças se aproximando pelo corredor, seus poderes de água recém-adquiridos se provaram muito úteis — materializou seu corpo em uma poça d’água, fazendo com que um dos homens escorregasse e desse de cara no chão. Seu parceiro morreu de rir com a cena, mas depois o ajudou a levantar-se e os dois se retiraram ainda envolvidos com a cena.
Ao reassumir sua forma humana, Sheena sentiu uma terrível dor nas costas, era como se alguém a tivesse pisoteado. Ainda precisava aprimorar aqueles poderes.
Sua missão agora era entrar na sala de Erlenmeyer e roubar as pérolas que estivessem em sua posse. Chegou aos seus ouvidos de que havia três delas no laboratório, no seu devido tempo iria ao encontro das outras duas; a Silenciadora só não esperava que a sorte colaborasse tanto ao seu favor naquele dia.
— Me solta, seu grandalhão de merda! — escutou a voz de um menino.
Sheena camuflou-se nas sombras para observar o que acontecia. Um caçador de recompensas armado com um machado enorme arrastava uma criança pelo braço para receber a recompensa. Bill fora facilmente atraído para as ruas movimentadas de Bausonne com promessas, no instante em que soube do sumisse de sua amiga Tootie, saiu para tentar resgatá-la sozinho. Distante do olhar cauteloso de sua mãe, Amélia, acabou sendo vítima de gente de má índole, justo no momento em que a Ordem do Selamento se encontrava mais fragilizada.
Bill transformou-se em um guaxinim e mordeu o dedo do homem que o largou com um berro enfurecido. Tentou correr para longe, mas o sujeito estava tão furioso que poderia ter arremessado seu machado e cortado o animalzinho em dois se alguém não o tivesse interceptado. Ao ver o homem erguer o braços em fúria, Sheena perfurou seu peito pelas costas com sua katana com o sigilo de um profissional. O grandalhão tombou para trás com um baque e Bill parou de correr. Ela pediu silêncio para a criança com a ponta do indicador.
Nem por um segundo Bill pensou que estivesse a salvo, ele a reconheceu no mesmo instante — era a assassina que matara sua família.
O menino não soube se chorava ou mijava nas calças, o simples encontro com aqueles olhos amarelos acenderam uma faísca que o impediu de sentir raiva ou desejar vingança, temia que ela tivesse voltado para finalizar o serviço, embora a essa altura Sheena não desse a mínima.
— V-você vai matar? Pode vir! Eu tenho a Ordem inteira do meu lado agora, e eles são muito poderosos! — disse Bill de punhos erguidos, tentando confrontá-la.
A Ordem? O que aquela criança sabia sobre a Ordem? Como poderia incitá-lo a dizer o que buscava se ele não compreendia linguagem de sinais?
A sirene voltou a tocar em estado alarmante, o laboratório inteiro devia estar a par de sua fuga.
— Eles já devem estar chegando. — murmurou Bill, apressado. — Eu preciso encontrar a minha amiga.
Sheena apontou com a ponta de sua adaga na direção da criança e não precisou de linguagem de sinais para deixar suas intenções bem claras:
“Você vem comigo”.

No andar térreo do laboratório, a porta de entrada era detonada com a força de um tanque de guerra. Elma e Black Jack lideravam a comitiva de duas pessoas — a Srta. Cléo e Amélia Altenburg estavam tão desesperadas para encontrar seus filhos que não puderam esperar nem mais um minuto sequer.
— Francamente, nós devíamos ter seguido o plano até o final — reclamou Elma. — O exército foi acionado, a localização deles já não será mais um mistério.
— É meio irônico pensar que ficamos semanas planejando o plano perfeito de invasão para no final seguirmos a mesma linha de sempre: entrar e acabar com tudo. Sério, nós já fomos mais discretos — comentou Black Jack.
— O meu filho está aqui em algum lugar e eu não sairei sem ele! — berrou Amélia, prestes a perder o controle.
— Acalme-se, Srta. Altenburg, os reforços estão a caminho. Você não é a única que tem pessoas importantes presas aqui dentro — falou Elma, apontando para Cleópatra que estava tão aturdida com o fato de ter não ter sinais de Tootie há semanas que aquilo comprometia até mesmo sua efetividade. — Nossa missão de invasão agora atribuiu uma nova causa: resgatar nossos companheiros com vida. Pode ser que não acabemos com os planos de Erlenmeyer em definitivo na data de hoje, mas faremos de tudo para salvar suas crianças com vida.
— Estou doido pra chutar uns criminosos — falou Black Jack. — Que comece o circo de horrores!
Os poderes de Black Jack tinham um alcance tão grande que toda a iluminação em Bausonne se viu prejudicado, as luzes começaram a oscilar de forma incessante e fagulhas estouravam do curto circuito. Por estarem equipados com selos luminosos, teriam alguns minutos à frente do inimigo, fariam o trabalho furtivo em busca dos prisioneiros enquanto seus adversários se preparavam para um ataque vindo das duas frentes. Se pudessem alcançar as celas, logo libertariam outros tótines capturados que, se tivessem sorte, ofereceriam seu poder de bom grado na batalha. O principal intuito era expor os laboratórios e toda a imundice que acontecia por debaixo dos panos, eles mostrariam ao mundo que as pessoas desaparecidas não se tratava de um simples infortúnio.
Os cientistas tentavam salvar equipamentos e documentos sigilosos de seus trabalhos, alguns preferiam até incendiá-los para que não fosse encontrado nenhum rastro de tudo que acontecera no subterrâneo. Erlenmeyer caminhava tranquilo ao lado de sua secretária que dava as devidas instruções aos empregados que corriam desorientados sem saber o que fazer.
— Senhores, tenham calma. A ansiedade não vai nos ajudar em nada agora — disse Erlenmeyer com a voz mansa. — Estamos lidando com um simples imprevisto, as pesquisas devem continuar.
— Mas a besta está saindo de controle, senhor! Não podemos mais controlá-la! — falou um dos envolvidos.
— Deixe-a para lá, faremos uma nova futuramente, um aprimoramento.
— Se formos capturados hoje, enfrentaremos pelo menos trinta anos na cadeia! — disse o chefe de pesquisas em genética. — Eu não vou apodrecer na Cidadela Púrpura por ter me envolvido com um lunático feito você, Erlenmeyer, e se me perguntarem, vou denunciar que tudo isso foi um plano seu!
Uma dos espíritos que acompanhavam Erlenmeyer materializou-se na forma do Lobo Negro, sua sombra começou a alastrar-se até as costas do homem que sequer deu-se conta de sua aproximação. Ao virar-se para trás, a imagem do animal o fez gritar, o lobo sua cabeça com voracidade rasgando seu pescoço e manchando o chão de vermelho. A secretária ajeitou os óculos, como se fingisse estar alheia ao que vira.
— Uma palavra dita contra mim é uma armadilha perigosa. Que sirva de exemplo — disse Erlenmeyer para o corpo inerte. — Srta. Sophia, peço que informe a todos que aprontem seus pertences, vamos nos dispersar, mas nos realocaremos no laboratório 05 em Perpetua. Por hoje estão dispensados.
A secretária fez um cumprimento breve e retirou-se. Em meio ao frenesi e luzes oscilantes, Erlenmeyer retornou para sua sala e reuniu alguns dos pertences que mais gostava, afinal, não sabia se teria a chance de voltar para buscá-los depois. Ele sequer percebeu quando uma presença furtiva aproximou-se dele pelas costas, mas seus Espíritos De Baixo continuavam alertas.
Ela voltou messsssstre, disse o Sussurro.
— A Silenciadora — Erlenmeyer murmurou baixinho. — Decidiu mudar de lado, querida?
Sheena tinha uma de suas adagas apontadas para o pescoço do gecko pelas costas.
“Entregue-me as pérolas”, ela fez um sinal claro.
— São todas suas. Não sou nem louco de tentar impedi-la. O que pretende fazer com elas, se me permite perguntar?
“Eu vou erradicar toda a mana do Reino de Sellure. Não existirão mais tótines, seremos normais como os humanos.”
— Tentador. Uma deusa que abdica de sua divindade — falou Erlenmeyer. — Ainda faltam duas pérolas, mas, conhecendo você, não irá demorar nada para tê-las todas em mãos. Mas estou intrigado, o que vem depois? Você conclui sua “missão” na terra, e então estará livre?
“Eu sou livre”, retrucou Sheena já impaciente.
Erlenmeyer soltou uma risada histérica, as luzes cessaram por completo e pôde-se ouvir nitidamente outras três risadas no aposento. Eles não estavam sozinhos.
— Livre?! Criança tola! Você pensa que está no controle, mas a verdade é que seu destino já foi traçado, você vai terminar sozinha e esquecida pelo mundo — falou a serpente de maneira assustadora. — Tic-tac, minha criança. Sua hora está para chegar.
Sempre temera as alucinações de Erlenmeyer, e por não saber do que seus espíritos eram capazes, Sheena agarrou a caixa de acrílico com espaço para cinco pérolas e desapareceu dali antes que a situação se agravasse. Deixara Bill esperando do lado de fora da sala, pois agora era o momento do garoto ter alguma serventia.
“Leve-me para os demais membros da Ordem”, Sheena indicou através da linguagem dos sinais, mas a criança parecia não fazer ideia do que ela estava dizendo.
— Você e eu... trabalhando juntos? — perguntou Bill.
Sheena fez que não com a cabeça. Tinha que ser mais objetiva.
“Ordem do Selamento. Pérolas Sagradas.”
— V-você vai me ajudar a encontrar minha amiga e recuperar as Pérolas Sagradas?
Sheena levou a mão até o rosto, impaciente. Não era exatamente o que queria, mas poderia funcionar.
A mulher segurou na mão do menino enquanto o guiava pelos corredores escuros do laboratório, seus olhos brilhavam como holofotes e indicavam o caminho. A maioria dos pesquisadores locais evacuava pela saída de emergências, a sirene continuava incessante e ela torcia para que não precisasse sujar suas lâminas outra vez. Como convivera por muitos meses naquele compartimento, sabia situar-se bem. Seguiu em direção do terceiro subsolo, pois era onde as crianças eram mantidas; se tivesse sorte, a amiga do garoto-guaxinim ainda estaria viva e, se seus palpites estivessem corretos, eles a levariam até os demais guardiões da Ordem.
Durante a fuga, ninguém parecia ter se preocupado em libertar as crianças no armazém, podia ouvi-las se aglomerarem na porta, chorando e implorando para que recebessem ajuda. Apesar de não possuir a chave de acesso, Sheena abriu o portão com um corte incandescente e assustou-se quando o rombo permitiu a passagem de pelo menos trinta crianças que correram desesperadas. Em meio ao aglomerado, Bill reconheceu Tootie que parecia mais magra e esgotada desde que desaparecera de forma misteriosa.
— Bill! Bill! Você veio, eu sabia que viria! — disse a menina que tropeçou e caiu de joelhos no chão. Seu amigo a ajudou a levantar-se e os dois se envolveram em um longo abraço. — Eu fiquei com tanto medo... Foi a moça da recepção que me entregou para os homens ruins, e-eles fizeram coisas terríveis comigo...
Bill assustou-se ao ver que o ombro de sua amiga estava marcado por fogo, ela parecia ter sido submetida a torturas leves, algo que nenhuma criança no mundo jamais deveria passar.
— Eu vou tirar a gente daqui, aguenta firme! — falou o menino.
— Eu estou tão fraca, mal consigo me mover — lamentou Tootie, sentindo as pernas fraquejarem. — Mas nós precisamos ir embora, depressa... tem uma coisa lá dentro, ele não para de avançar...
Ao ouvir a confissão da menina, Sheena sacou sua espada e preparou-se para um confronto iminente. Ao adentrar o armazém, não viu monstro algum, mas uma curiosa estrutura de metal localizada no centro chamou sua atenção, fazia um barulho incessante e tinha um relógio acoplado que marcava uma numeração que decrescia um segundo de cada vez.
Trinta minutos para o quê? Sheena não fazia ideia do que era, mas, vindo de Erlenmeyer, não devia ser bom sinal.
A Silenciadora não sentia apreço algum por aquelas crianças — muitas delas, inclusive, ela mesma fora a responsável por trazer ali —, mas também se recusava a deixá-las para trás, talvez ainda tivessem algum valor. Quando subia as escadas em direção da saída, foi interceptada por um mar de areia que a fez escorregar de volta para o chão.
— Amélia, encontrei as crianças! Leve-as em segurança para longe daqui! — ordenou Cleópatra.
“Menos mal, pelo menos agora não terei de ficar de babá”, pensou Sheena.
A assassina sequer tentou impedir que as crianças fossem levadas, afinal, sabia que cedo ou tarde os demais integrantes da Ordem viriam ao seu resgate, e seu verdadeiro alvo eram as Pérolas Sagradas. Trocou um breve olhar com Amélia, lembrava-se dela por ter sido uma das únicas que sobreviveram ao extermínio da família Altenburg, e por mais que a odiasse sem mesmo conhecê-la, teria de vê-la sobreviver por mais um dia.
Amélia abraçou seu filho com força e conjurou uma nuvem rosa capaz de locomover todas as crianças com agilidade para fora dali. A estrutura do laboratório estremeceu, uma batalha devia estar sendo travada nos pisos superiores, talvez as autoridades já tivessem chegado.
— Então você é a caçadora de tótines. É mais bonitinha do que pensei. — disse Cléo, colocando-se em posição de batalha. — Eu não vou permitir que continue espalhando terror para famílias inocentes.
Cleópatra ativou um feitiço que barrou a passagem e impossibilitava qualquer rota de fuga.  Sentia um desejo profundo de acabar com sua oponente e cessar o reinado de terror da Silenciadora, pois estava furiosa.
Sheena investiu contra sua adversária, mas Cleópatra era hábil em defender-se de golpes de curto alcance por utilizar-se de paredes de areia que amorteciam qualquer ataque. Seus gigantescos golens de areia tentavam golpear Sheena com a força de um canhão, ela cortou um ao meio, mas outros dois menores surgiram de suas partes e a seguraram pelas pernas, derrubando-a no chão. A assassina cravou sua adaga na testa de um dos monstros que se desfez em um amontoado de areia e decepou a cabeça de outro, mas eles continuavam a voltar. Tinha de evitar ser atingida a qualquer custo e focar-se no que realmente importava — a convocadora.
Tinha dificuldades de aproximar-se dela, Cleópatra era experiente em combates de longa distância e dominava sua magia de terra com maestria. Ao dar-se conta de que suas habilidades com uma espada não seria o suficiente, Sheena disparou uma explosão de água contra sua adversária que viu-se mobilizada pela desvantagem de seu elemento. Se não tivesse roubado aquela habilidade do gigante prisioneiro, estaria em maus lençóis.
Em um momento de descuido, Cléo foi atingida no abdômen por um punhal, o corte foi profundo o bastante para perfurá-la e atingir seus órgãos. Ela ajoelhou-se no chão e tentou estancar o sangue, mas sua visão começou a ficar turva e a guardiã percebeu que não teria mais muito tempo.
“Então, é assim que vou morrer...? Completamente sozinha e largada nesse buraco esquecido?”, pensou Cleópatra.
Quando seu corpo tombou para o lado, ela desejou de todo coração que algum dia Tootie encontrasse uma família e pessoas que a amavam. Fizera de tudo para dar-lhe uma vida digna nas longínquas terras do deserto, onde toda criatura que o habitava tinha de viver um dia de cada vez.
— Minha pequena — Cléo sussurrou bem baixinho —, meu maior presente...
Seus olhos perderam o brilho. A Pérola do Ouro escorregou de seu vestido e foi apanhado pela Silenciadora que subiu a escada às pressas.

ii

Assim que Aedan chegou ao continente, não demorou a localizar um ponto de destaque em Bausonne — uma multidão se aglomerava ao redor de uma zona restrita, o exército fora convocado para investigar uma possível facção criminosa que atuava no subterrâneo de uma taverna com um laboratório clandestino. Para alguém que vivera a vida toda em uma Cidade Cinzenta, aquilo mais parecia roteiro de um filme.
Detestava ter de sair de sua ilha, mas precisava partir em busca da pérola que vendera para Brando, e no continente tinha mais chances de encontrar respostas. Tinha a esperança de que, ao recuperar um artefato tão precioso para sua família, talvez sua mãe e seu pai pudessem voltar logo para casa. Deixara Elice aos cuidados de Lyndis — uma amiga dos tempos de colégio que tinha uma quedinha por ele —, pelo menos até que voltasse e trouxesse de volta a maldita pérola.
Em meio à multidão, Aedan distinguiu uma boina vermelha e uma jaqueta surrada marrom que só poderia pertencer a uma pessoa.
— Filho? O que você está fazendo aqui? É perigoso! — Hugh Burnout falou alarmado.
— Eu é que pergunto, você não ia fugir para longe feito o que covarde que é? — Aedan o desafiou. — Sempre nos bastidores, incitando os mais jovens e fugindo das lutas.
— Eu não vou discutir com você agora, porque estou aqui a trabalho. As coisas esquentaram, a situação ficou crítica, a Ordem do Selamento está se posicionando, e...
— Ordem, Ordem, é sempre essa merda de Ordem! — Bastasse que os dois trocassem meia dúzias de palavras para que Aedan se estressasse. — Por que não pergunta como está a sua família?
— Porque sei que estão seguros com Isadora — respondeu Hugh.
Pois saiba que a mamãe desapareceu faz alguns dias — retrucou o mais novo. — Simples assim, sumiu, evaporou, ninguém sabe onde ela foi parar.
Hugh ergueu o filho furioso e o prensou contra uma parede.
E você não fez nada para protegê-la, seu imprestável?
Aedan devolveu-lhe o empurrão, ajeitando a gola da camisa.
Olha só quem fala, você é marido dela. Onde é que você estava?
Sua mãe é sensível às mudanças no mundo, você sempre esteve bem ciente das condições dela... Ela não suporta ver a nossa ilha sendo destruída, e ao ver nossa família desmoronar, seu último alicerce foi prejudicado. Você nunca trouxe nenhuma alegria para ela!
— Pra você o problema sempre é com todo mundo, mas nunca percebe que sua ausência também estava matando elas aos poucos! — Aedan ajeitou sua mochila e deu-lhe as costas, já estava farto daquela conversa. — Se for para voltar para casa sem ela, é melhor que nunca volte.
Hugh recuou incrédulo, mas percebeu que havia passado dos limites.
Eu vou trazer sua mãe de volta, filho — disse o velho com a voz abatida. — Ela deve estar escondida, sei onde costuma ir quando tem essas crises, mas logo irá voltar. Tenha fé.
Fé? Nesse mundo? — Aedan encheu-se de sarcasmo. — Você ouviu falar o que acontecia dentro desse laboratório? Tótines eram usados como cobaias, eles praticavam experiências em crianças, crianças! Da idade da Elice! Coisas assim me fazem perder a fé nesse mundo, eu tenho é nojo de ser parte disso.
— Aonde pensa que vai? — perguntou Hugh.
— Entrar lá e colocar fogo em tudo — disse Aedan com a voz séria. — Por que está me seguindo?
— Porque eu vou com você. Acha mesmo que eu ia perder a chance de quebrar tudo ao lado do meu filho?

iii

Com quatro das Pérolas Sagradas em mãos, Sheena supôs que não levaria muito tempo até que localizasse o último membro da Ordem. Se a investida do governo tivesse mesmo começado, teria problemas em encontrar uma rota de fuga, mas tinha confiança em seus poderes. Corria em direção da saída de emergência nos fundos quando notou que Astra King repousava tranquilo em frente à sua máquina, fruto do trabalho de toda uma vida. Sheena deu meia volta levou a mão à bainha de sua espada. Sentiu vontade de decapitá-lo ali mesmo, queria puni-lo por tudo que vira. Sua mente ainda sofria com flashes das lembranças que atordoavam, quando se focava nas imagens, elas voltavam a atormentá-la.
— Ah, você veio... — disse Astra King, sombrio. — Imaginei que fosse querer terminar o seu trabalho
Sheena sacou o punhal negro ainda ensanguentado. Estava prestes a usá-lo, quando uma única frase a impediu de continuar:
— Está pronta. Você pode usá-la, se quiser.
“O que está pronto?”, ela pensou, quando se deu conta do contexto. A máquina. O aparato da ciência capaz de anular mana, a sua chance de viver uma vida normal quando tudo aquilo terminasse.
— Eu decidi permanecer aqui com minha criação. Não quero que ela termine em mãos inexperientes — disse Astra King com o olhar perdido, acariciando sua obra prima como se ela tivesse vida. — Estou tão... feliz por vê-la funcionar. Meu trabalho está concluído.
“Você será preso e executado pelos crimes que cometeu”, insinuou Sheena através da linguagem dos sinais.
— Sei disso, será uma perda irreparável para o mundo, eu ainda tenho tanto a oferecer... mas prometi a você que te livraria dessa “maldição”, então estou cumprindo minha palavra e oferecendo-lhe a oportunidade. Entre na máquina, e tudo irá mudar.
A lâmina afiada da assassina encostou-se ao queixo do homem.
“Se você aprontar alguma coisa...”, Sheena procurava as palavras certas para expressar o que sentia. “Eu volto na forma de fantasma para te assombrar”.
— Sempre fui apaixonado pelo seu senso de humor — insinuou Astra King. — Apronte-se, vamos começar.
Sheena cumpriu cada passo conforme lhe fora instruído. Preferiu não tomar nada que a colocasse em estado de sono profundo, se acabasse dormindo era óbvio que seria capturada, então fez o procedimento inteiro alerta. Mesmo que o laboratório ruísse ao seu redor e a sirene gritasse em seus ouvidos, Astra manteve-se tranquilo todo o processo.
Achou que fosse sentir uma dor tremenda quando a mana fosse extraída de seu corpo, tanto que permaneceu o tempo todo de olhos abertos, procurando algum sinal daquele parasita indesejado que finalmente teria a chance de se livrar. As luzes voltaram a oscilar, a redoma foi preenchida por brilho e cor. Ela observou o Sr. King através do espelho, o homem corria de um lado para o outro em busca de outro recipiente, pois a mana atingia um nível tão absurdo que não poderia ser contida em uma única pérola de vidro.
O processo todo levou pouco mais de cinco minutos. Quando a sessão terminou, ela nem soube dizer o que havia mudado.
— Hoje é o dia em que você renasceu — disse Astra King com admiração. — Vá e viva sua vida.
Muito a contra gosto, a mulher estendeu-lhe a mão para um cumprimento breve. Sabia que nunca mais voltaria a vê-lo, mas algo na maneira como se comunicavam através do silêncio deixava a impressão de que continuariam muito próximos, afinal, ambos estavam fadados a se reencontrarem no Unferis e pagar por todos os crimes e atrocidades que cometeram naquele mundo.

iv

Os guardiões da Ordem foram os primeiros a invadirem o laboratório, a sobrecarga nos aparelhos causara pequenos focos de incêndio que se alastrava por todo o complexo do edifício, o que dificultava a passagem. Elma e Black Jack estavam nas celas liberando os prisioneiros, havia pelo menos quarenta tótines encarcerados que iam desde homens e mulheres gestantes até idosos em condições precárias.
 Elma parou em frente ao alojamento de número 89, o portão era grande o bastante para acomodar um monstro de grande porte. Com seus poderes que ampliavam a própria força, Elma foi capaz de erguer a base de metal e abrir passagem para um gigante barbudo que nem se dera conta do que estava acontecendo.
— Já é hora do jantar? — perguntou Bernard.
— Olha, grandão, tem muita coisa pra explicar agora, mas precisamos que você dê o fora daqui o quanto antes — falou Black Jack.
— Mas vocês viram minha filha? E a minha netinha?
— Desculpe-nos, senhor, realmente não há tempo para lidarmos com isso agora — disse Elma apreensiva.
— Por favor, eu preciso de ajuda, elas são tudo que eu tenho...
Black Jack balançou a cabeça, nunca conseguia dizer “não” aos que necessitavam.
— Qual o nome dela?
 — Minha filha se chama Atani, e minha neta é a pequena Clair.
— A Srta. Atani? Ela estava aqui? — questionou Black Jack, surpreso. — Ela é também uma das integrantes da Ordem do Selamento, mas desapareceu há meses.
A conversa foi interrompida quando um pedaço do teto desabou devido às chamas. Bernard não teve problemas em controlar o fogo com seus poderes de água.
— Então você é pai dela! Não é a toa que é tão poderoso — disse Elma. — Se quer mesmo ajudar, tente controlar os focos de incêndio, mas tome cuidado para não se ferir também, o senhor está há muito tempo encarcerado.
— Oh, não se preocupem, fui muito bem tratado aqui — disse Bernard com a voz gentil. A resistência dos gigantes era mesmo incrível.
Elma e Jack retornaram ao primeiro andar assim que Amélia voltou carregando as crianças em sua nuvem. Elas foram todas encaminhadas aos cuidados dos integrantes do governo que ofereceram alimento e atendimento psicológico imediato. Enquanto elas seguiam em fila, Elma aproveitou a oportunidade para perguntar:
— Alguém viu uma garotinha chamada Clair?
— A Clair foi embora há umas duas semanas — respondeu uma menina de tranças com o olhar abatido. — Ela não vai voltar mais.
Black Jack soltou um suspiro entristecido. Iria doer ter de dar aquela notícia ao velho Bernard.
— Onde está a Cléo?
— Ela ficou para enfrentar a Silenciadora — respondeu Amélia que não parava de abraçar seu filho.
— E você deixou ela para trás? — Jack indagou furioso. — Isso é suicídio! Como foi que...
O líder da Ordem só parou de gritar quando percebeu que Tootie o encarava desorientada, os olhos estavam vermelhos e com olheiras das noites mal dormidas. Por um instante, a menina sentiu-se sozinha e desamparada. Elma ajoelhou-se em sua frente e a abraçou na tentativa de confortá-la.
— A Srta. Cléo... não vai mais voltar...? — perguntou Tootie entre lágrimas.
— Vai sim, porque ela é muito forte, não é? — sorriu Elma. — Sem contar que ela precisa te proteger, você é a garotinha dela, sua sucessora. Agora escute, Tootie, eu preciso que você seja forte agora, há muita coisa acontecendo...
Black Jack chamou a atenção de Elma quando uma presença sinistra começou a se mexer em meio à fumaça. Amélia trouxe seu filho para mais perto e Tootie escondeu-se atrás de sua saia. Ninguém soube dizer o que era a princípio, pois ele era envolto por tantas peças desconexas que mais se parecia com uma quimera, um animal que nunca fora concluído pelas divindades. Tinha o formato da cabeça de um dragão cravado em metal, mas sem as pernas traseiras. Ele movia-se através de duas enormes patas de ferro que se arrastavam em meio a fios como se seus membros tivessem sido amputados, emitindo um grito gutural e lamuriante que aterrorizava.
Jack convocou reforços dos soldados que começaram a disparar flechas em sua direção, mas toda arma era repelida. Quando dois guerreiros de machado tentaram confrontá-lo, o dragão de metal os esmagou com seu tamanho, avançando devagar como se não tivesse controle de quem era ou o que fazia ali.
Elma foi a primeira a atacá-lo com sua lança perfurante, recebendo auxílio de Jack. O dragão parecia sequer ter olhos para ambientar-se, logo, os poderes de Jack não surtiam efeito algum, ele era como uma aberração falha que nunca deveria ter existido. Elma perfurou o peito do monstro na tentativa de atingir seu coração, mas nem isso o fez parar. A boca da criatura abriu-se com um estrondo, e entre palavras deformadas e rangidos, pôde-se distinguir uma frase:
“Me... mate...”
Elma afastou-se aturdida com a mensagem.
“Pare com... nosso... sofrimen...to”.
Era como se houvesse a consciência de inúmeras pessoas presas à criatura. A abertura permitiu que o dragão mirasse as crianças, Amélia conjurou uma barreira de nuvens espessas para protegê-las, mas o escudo foi destruído quando um raio a atingiu. Bill foi arremessado para longe junto de Tootie, Amélia foi soterrada pelo peso da criatura que continuou a avançar, o dragão entrou em um frenesi, atacando todos que estivessem ao seu alcance. Elma gritou furiosa e pulou nas costas do monstro, perfurando-o inúmeras vezes na tentativa de fazê-lo parar.
Bill arrastou-se devagar até onde o corpo imóvel de sua mãe jazia, as pernas dela haviam sido destroçadas, mas ela transmitia toda a serenidade e compaixão que sempre demonstrara para seus filhos nas horas difíceis.
— Mamãe, mamãe, por favor, não me deixe! — lamentou o pequeno. — E-eu não consigo sozinho, eu não posso perder você também...
— Tia Amélia, por favor, eu não quero ficar sozinha também — rogou Tootie. — Eu só tenho vocês.
Amélia tocou de leve com a ponta dos dedos na bochecha de Bill e sorriu.
— Estaremos esperando você do outro lado... meu menino. Nós te amamos...
Black Jack precisou segurar Bill e Tootie nos braços e tirá-los dali antes que o cenário saísse do controle. O dragão cuspia fogo e expelia fumaça por toda parte, a estrutura inteira do prédio estava prestes a ruir. Elma percebeu que a temperatura começou a aumentar de forma considerável, o reforço estava a caminho. O dragão abriu sua bocarra para disparar um raio de energia em sua direção, ela preparou um forte escudo elemental capaz de amenizar o impacto do disparo, mas quando se deu conta, a cabeça da criatura foi arrancada por Hugh Burnout que cortou os circuitos e a fez parar de se mexer. Com o auxílio de seu filho Aedan, o corpo deformada foi rapidamente incinerado antes que apresentasse qualquer sinal de reação feito um zumbi.
— O que era essa aberração? Eu nunca vi nada parecido — falou Hugh.
— Em boa hora, velhote! — gritou Black Jack. — Temos que levar todos para fora por uma passagem segura, nossa prioridade é proteger os tótines inocentes.
— Diga por si só, eu quero é matar o desgraçado que começou tudo isso — retrucou Aedan. — Onde estão as Pérolas Sagradas?
— Ninguém as encontrou, Erlenmeyer deve tê-las levado para longe daqui a essa hora — respondeu Elma. — Nós precisamos continuar a procurá-lo, ele agora está em posse de quatro delas.
— Pode ficar tranquila, doçura. Ele nunca vai ter a nossa, pois vamos protegê-la com nossas vidas — respondeu Black Jack.
Assim que a última criança e prisioneiro foram resgatados, Jack e Elma voltaram a entrar no laboratório em chamas em busca de sobreviventes. O corpo sem vida de Cleópatra foi encontrado no subsolo, seus amigos se recusaram a deixá-la ali e privá-la de um enterro digno. Enquanto Elma preparava-se para o transporte, Jack descobriu a existência da bomba que agora marcava quatro minutos e vinte segundos restantes.
— Puta merda! Elma, a gente precisa sair daqui!
Os dois correram de volta para a saída, dando ordens diretas de que nenhum soldado fosse deixado para trás. No caminho, Bernard ajudou-os a levar o corpo de Cleópatra, carregando-a no colo como se fosse uma criança adormecida.
Eles evacuavam os últimos soldados quando Black Jack parou e olhou para o corredor escuro.
— O que está esperando?! Temos que ir! — gritou Elma.
— Ela está aqui — afirmou Jack. — A Silenciadora. Feche a porta, Elma. Eu vou lutar por todos aqueles que foram oprimidos e não tinham forças para lutar por si próprios.
— Então eu ficarei com você, e nem tente me impedir do contrário.
— Tá brincando? Eu me cagaria todo se você não estivesse comigo.
Sheena revelou-se em meio à fumaça, brandindo apenas sua katana com as mãos nuas. Ela poderia ter dado a meia volta e fugido, mas não aquilo não seria de seu feitio. A assassina sabia que a última Pérola Sagrada estava nas mãos de Black Jack.
Elma armou-se com sua lança e fez a primeira investida, Sheena desviou-se do ataque e fez um corte lateral com o intuito de matar, a espada cravou na armadura da guerreira e chegou a feri-la no abdômen. Black Jack usou sua magia de escuridão total, mesmo que soubesse que os olhos da Silenciadora brilhavam como dois faróis no escuro.
... mas ela falhou. Não estava enxergando nada. Era o primeiro sinal de que sua mana estava começando a desaparecer, tinha de terminar logo o serviço.
Elma acertou-lhe com força nas costelas, a guerreira era enorme e troncuda, Sheena estava em situação crítica em uma luta a curta distância, mas também não poderia afastar-se demais por conta da lança de longo alcance. Tinha de se limitar a esquivar-se dos golpes e manter a postura, desde quando fora tão dependente de seus poderes assim?
Elma a agarrou com os braços outra vez e a atirou contra uma pilastra, Sheena recebeu um chute na cara de Jack que arrancou sua máscara, expondo o rosto e as cicatrizes de sua infância.
Há quanto tempo não via o próprio sangue?
Sheena limpou o ferimento e concentrou-se em dar um único golpe, certeiro e mortal; notou que sua adversária era lenta e usou a desvantagem dela ao seu favor, quando Elma ergueu sua lança para atacar, Sheena deslizou a lâmina de sua katana e arrancou um dos braços dela. Elma caiu no chão gritando de dor, a cena deixou Jack sem reação, mas envolto por uma fúria que não podia ser contida.
Sheena ergueu o braço para conjurar um feitiço de bloqueio, mas sua magia falhou outra vez, sentia-se fraca e indisposta. A mana antes abundante estava em seu limite. Não suportaria muito tempo. Jack a acertou com tanta força na perna que ela escutou um osso se partir, precisou rastejar-se para longe dele, sua visão cada vez mais turva. Jack a puxou pelo cabelo e empunhou sua katana caída, erguendo-se sobre ela como um demônio sedento por vingança.
— Você terá seu fim pela própria espada! — Black Jack arfou de cansaço, mas satisfeito por saber que colocaria um fim definitivo ao legado de horror da assassina.
Em um último golpe desesperado, Sheena virou-se e cravou sua adaga no peito de Jack que cambaleou e levou a mão ao peito para conter o sangramento. Ele caiu para trás e as luzes voltaram a se acender, Elma arrastou-se para perto do corpo dele, de repente sua ferida pareceu-lhe superficial à dor de perder a pessoa amada..
— Me leve com você, por favor... eu só peço isso — implorou Elma aos prantos.
Assim que os reforços chegaram, Sheena sabia que precisava desaparecer dali. Hugh Burnout, um dos tótines de fogo mais poderosos do reino, poderia incinerá-la em questão de segundos. Com um último esforço, a Silenciadora concentrou o que restava de sua mana e seu corpo transformou-se em fumaça, um poder que adquirira de Bill. No ato de desespero, mal percebera que deixara para trás suas armas que a acompanharam há tantos anos — além da caixa contendo todas as Pérolas Sagradas roubadas.
— Chamem uma emergência, ela precisa de cuidados! — gritou um dos soldados.
Elma não queria receber atendimento, tão pouco se desvencilhar do corpo do seu amado. Entre lamentos e lágrimas incensáveis era possível escutá-la: “Eu nunca mais vou amar alguém como amei você”.
Hugh contemplou todos seus colegas da Ordem mortos naquele dia — Amélia Von Altenburg, Cleópatra, Atani, Black Jack. A Ordem do Selamento fora destroçada, quebrada ao meio, aquela deveria ser a maior derrota que eles jamais sofreram em toda sua existência.
— O que você vai fazer agora? — perguntou seu filho Aedan. — Você é o líder deles, não é?
Hugh olhou para o que restara de seu legado, e deu-se conta de que era apenas um velho moribundo.
— Eu... eu não sei o que fazer. Perdoem-me.
Ao perceber a incompetência de seu pai, Aedan sentiu que deveria ao menos algumas palavras para aqueles que lutaram e deram suas vidas por aquelas malditas pérolas. Por mais que as odiasse, por mais que abominasse as escolhas erradas e soubesse que nada consertaria os erros cometidos, ao menos devia uma chance de todos ali presentes reconstruírem suas vidas.
— Escutem, vocês agora pertencem à Ordem do Selamento. Peguem essas pérolas e escondam-se, protejam-na com suas vidas. A Silenciadora sobreviveu, e ela pode voltar um dia. Então corram, corram e nunca olhem para trás.
Bill e Tootie soltaram as mãos, sem se dar conta de que talvez aquela fosse a última vez que se veriam. Elma nunca mais lutaria com a mesma eficiência, enquanto o velho Bernard jamais soube de fato o que aconteceu com sua família naquela prisão de horrores.
A bomba explodiu nos minutos seguintes e todos os rastros do trabalho imundo de Erlenmeyer foram apagados.

v

Seis meses se passaram desde o acidente no laboratório de Bausonne.
Astra King recebeu toda a acusação de culpa pelo projeto, terminou preso e condenado à prisão perpétua pelo Rei. A mídia ocultou grande parte do ocorrido que ficou conhecido como “Caça aos Tótines”, foi um tremendo alarde ter o nome de um dos membros do Conselho da Matiz atrelado a experiências tão cruéis. Muitos acreditavam que o governo escondera parte da pesquisa das massas para aprimorar seu poderio militar, mas nada nunca foi comprovado. Teoristas acreditavam que o próprio exército tivesse se livrado das evidências, avisando com antecedência sua chegada e permitindo que o laboratório se livrasse de todos os vestígios. O povo regozijou-se com a ideia de que “os maus finalmente foram punidos”.
Erlenmeyer nunca foi encontrado. O governo o considerou morto e sua ficha criminal nunca veio à tona. Dos que sabiam de seu paradeiro, ninguém jamais considerou entregá-lo às autoridades, e os que tiveram a intenção de traí-lo encontraram de uma morte fria e silenciosa por enforcamento, sem sinais de agressões ou violência.

Era uma manhã fria, mas também estava morrendo de preguiça de acender a lareira. Sentou-se em sua poltrona onde passava a maior parte das manhãs lendo, gostava de colher frutas pela tarde e passear na praia em dias sem sol e de céu nublado.
Estava gostando muito daquela vida, lembrava sua infância. A rotina na Ilha Quebrada era comum e sem grandes surpresas. Com altos penhascos, extensas planícies e aves das mais variadas espécie, era um espetáculo natural poder observar o mar bravio violentar o rochedo, o vento soprava com tanta força que as palmeiras pareciam cumprimentar os visitantes. Com suas trilhas íngremes e estreitas, era praticamente impossível alcançar o cume da ilha onde residia uma humilde cabana que nunca era incomodada por vizinho algum.
Sheena ainda mancava um pouco da perna e sentia dores de cabeça nauseantes, nunca se recuperara por completo de sua batalha final. Como a mana em seu corpo se extinguira, sendo ela também a responsável por sua recuperação acelerada, tinha agora de ter paciência.
Nunca pensara em compartilhar sua vida com ninguém, prezava o silêncio e até que gostava da vida com suas galinhas. Suas aventuras pelo reino terminaram, não se considerava mais uma assassina, mas será que aquilo significa que fora absolvida de seus pecados?
Enquanto tirava a poeira de uma das bancadas, encontrou seu relógio de bolso deixado pelo pai, a última lembrança que restara da vida antiga. Ao abri-lo, notou que continuava sem foto alguma, exceto pelo fato de que, pela primeira vez, ela reparou em sua imagem refletida. As cicatrizes continuavam lá, aquilo não mudaria quem ela era, mas deixou de reparar na ausência das coisas e compreendeu que ela não precisava de nenhuma foto ali para se sentir importante era digna de viver uma vida solitária e feliz sem influência externa.
Sua jornada chegara ao fim. Para o mundo, era como se ela nunca tivesse existido.
E tudo estava perfeito dessa forma.

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