quinta-feira, 26 de setembro de 2019

Capítulo 19.5 - Seus Amigos? [Cena Deletada]

Onde a cena se encaixava?
Entre os Capítulos 19 e 20, logo após recrutarem Elma, os protagonistas passavam um tempo na cidade de Bausonne fazendo os preparativos para seguirem em jornada. Este era para ter sido o fechamento do arco da busca pelas Pérolas Sagradas antes dos personagens partirem pra a Ilha-S.

Sobre o que falava?
Após a conclusão do livro, o autor sentia que Lesten era o único personagem entre os protagonistas que não tinha um "arco de desenvolvimento". O principal intuito desse capítulo era mostrar o entrosamento entre Lesten e Tootie, uma amizade inesperada formada desde os gibis do autor, e também dar destaque para Bill e Elma, os integrantes da Ordem do Selamento que mais sofreram com os cortes.

Qual o motivo de ter sido excluído do livro?
Com cerca de 3000 palavras, combinadas a Parte 1 e 2 totalizavam quase 20 páginas de manuscrito. Depois de mostrar para os betas, as reações foram extremamente negativas, os capítulos foram considerados desnecessários e com uma antagonista esquecível. Pobre Canas... ele guardou esse capítulo com todo carinho para postar no blog quase 3 anos mais tarde.


Seus Amigos? (Parte 1)
As Histórias Perdidas - Cenas Deletadas

Sentada em seu aposento no Castelo da Fachada, Auria baixou a alça da blusa e concluiu que a ferida causada pelo Capiruchi no Pântano Enferrujado não dava sinais de melhora. Por mais que Facade a aconselhasse a procurar um médico, não estava muito disposta a ir sozinha. Ralph bateu à porta do quarto trazendo uma bandeja com alguns pães amanteigados e um copo de leite, mas corou ao ver Auria com os ombros expostos e tampou o rosto, como se tivesse visto algo proibido.
— Desculpa, eu devia ter batido na porta!
— Não esquenta... você não está ocupado, está? — ela perguntou com um tom autoritário. — Venha comigo, quero que me acompanhe até a cidade.
— Ah, pode ser — Ralph concordou de imediato. — Gosto de sair com você!
Enquanto passavam pelo corredor em direção da saída, Lesten perguntou:
— Opa, tão indo pra onde? Posso ir também?
— Você não, lagartixa — brincou Auria. — Ninguém gosta de você.
Lesten saiu dali murmurando coisas sem sentido e foi dormir em algum canto escuro da biblioteca.

Enfim, paz. O silêncio voltava a reinar no Castelo da Fachada, Facade poderia ler tranquilamente sem ser perturbado enquanto os demais estavam fora ou ocupados com suas próprias tarefas. Bill não retornara das ruas desde a noite passada, Elma trabalhava cautelosa em sua mais nova obra e Lesten dormia no sofá da entrada principal próximo à lareira apagada. Tootie era a única que passava de sala em sala observando o que cada um fazia, avaliando a disposição dos colegas. Quando chegou à serralheria, Elma moldava cada detalhe de sua armadura manualmente.
— Com licença — Tootie chamou-a de forma tímida, aparecendo de relance na porta.
— Entre, criança — Elma convidou-a gentilmente. — Você é a menina do deserto, não é? Aprendiz da Srta. Cléo, eu me lembro de você, uma garotinha que tentava copiar todos os passos de sua mestra. E veja só, hoje já é uma mulher!
— Agradeço os elogios sinceros, senhorita Elma. Por um acaso você está ocupada agora? Eu precisava de uma escolta até o centro da cidade, tenho um compromisso que requer minha atenção.
Elma estranhou o pedido, mas continuou trabalhando em seu projeto sabendo que um clima suspeito pairava no ar. Como não era de se deixar enganar, decidiu confrontá-la num tom complacente:
— O que você está planejando, mocinha?
Tootie levou as mãos à cabeça em sinal de desespero, estragando qualquer disfarce que estivesse prestes a criar
— M-me perdoe, eu juro que não é nada perigoso! Eu nem devia estar aqui te incomodando!
— Acalme-se, ninguém aqui quer te machucar — respondeu Elma. — Somos parte da mesma equipe, querida. Independente de quais sejam suas intenções, é importante confiar nos companheiros.
— Tudo bem, eu falo... É que eu preciso comprar um presente para um admirador secreto — Tootie ergueu a voz, sentindo seu rosto ficar avermelhado. Ela respirou fundo e exalou o ar, satisfeita por ter dito aquilo em voz alta.
Elma revelou uma risada ligeira e jogou no verde para tirar suas suspeitas à prova.
— Oh, entendo, um admirador secreto. Eu acho que você deveria pedir ajuda ao Bill, ele tem bom gosto para presentes.
Tootie arregalou os olhos e começou a suar frio.
— Ah, estou começando a entender — Elma balançou a cabeça como se insinuasse “esses jovens...” — Escute, Tootie... eu não sou das melhores companhias para esse tipo de evento, acredite, meus dias de romance já passaram. Hoje entendo de ferro e brasas, são mais fáceis de moldar do que os homens.
— Eu é que peço desculpas, não deveria sequer estar aqui a incomodá-la com essas tolices... — disse Tootie, realizando um cumprimento cortês conforme saía da sala devagarzinho. — Com licença...
Elma suspirou chateada, queria muito poder ajudar e prolongar sua conversa com a garota, mas falar sobre encontros lhe trazia tantas memórias dolorosas que ela precisou manter a mente ocupada na oficina pelas próximas três horas para esquecer as lembranças de oito anos atrás.
Tootie continuou sua busca pelo castelo, mas não restavam muitas opções. Espiou de relance a sala de Facade e não o encontrou ali, o espírito ainda devia estar escondido em algum livro onde ninguém pudesse interrompê-lo. Deveria ter acompanhado Ralph e Auria quando a convidaram a sair, mas a mistura de alegria e vergonha foi tão grande que acabou por recusar, agora se arrependia amargamente. Restava um único indivíduo presente e, de todos que aprendera a conviver, era com quem menos tinha intimidade.
Chegou de fininho perto de Lesten, o lagarto roncava de barriga para cima com a língua de fora, devia estar sonhando com algo muito suculento porque sua baba já se acumulava no encosto do sofá. Tootie o cutucou com a ponta do dedo, mas não houve resposta. Quando tentou observá-lo de perto, viu que seus dentes eram afiados e grandes o suficiente para rasgar a pele de um animal. Enquanto o fitava imersa em pensamentos, o gecko despertou e saltou sobre ela, derrubando-a no chão com seus braços estirados de modo que não pudesse fugir.
— O que tu quer comigo, hein? Aposto que estava tentando roubar as pérolas e me matar enquanto estava desatento, acertei? — Lesten grunhiu entre os dentes. — Vai, desembucha logo! O que vocês da Ordem estão planejando agora que se reuniu com seus amigos?
— D-desculpe-me, senhor lagarto... — Tootie falou com a voz chorosa.
O lagarto afastou-se depressa assim que viu uma lágrima rolar no rosto da menina. Mais uma vez, ultrapassara todos os limites.
— Ih, era só brincadeira... Foi mal, chanel... chora não.
Havia um pouco de verdade no que dissera — ainda tinha desconfiança quanto aos membros da Ordem do Selamento e não compreendia como do dia para a noite poderia conviver em harmonia com seus inimigos debaixo do mesmo teto. O mundo o ensinara a nunca confiar plenamente em ninguém, nem mesmo nos amigos, pois quem poderia dizer que o outro lado o estimava da mesma forma?
Tootie esfregava os olhos, manchando a maquiagem. Lesten a rodeava aturdido, se Auria descobrisse que ele fizera uma garotinha indefesa chorar, com toda certeza estaria sem alguns dentes na manhã seguinte.
— Ei, ei, quer ouvir uma história legal? Vou te contar sobre um guerreiro lendário do exército da Fortaleza Azul, ele e o irmão gêmeo confrontavam as tropas inimigas e eram conhecidos como os Irmãos do Vento!
Tootie fungou o nariz e olhou para Lesten com os olhos inchados.
— E o que aconteceu com eles?
— Bom, eles lutaram muitas batalhas até que um acabou morrendo... só que aí não faz mais sentido ter o título de “irmãos” se só sobrou um — Lesten pegou-se rindo. — Dizem que o outro afastou-se e passou a viver em uma ilha reclusa, mas ninguém nunca mais ouviu falar dele.
— Isso é tão triste... dói muito perder pessoas que amamos — falou Tootie.
— Nem me fale... Acho que pior do que perder alguém é ver essa pessoa ir morrendo aos poucos para o mundo. Um dia tu é considerado um herói, e no outro se transformou em alívio cômico secundário de uma história qualquer.
— Senhor lagarto — Tootie falou baixinho —, por que você está aqui também?
Ninguém jamais lhe fizera uma pergunta tão pessoal.
— Quando teu foco é atingir o topo da montanha, chega um dia que é preciso dar espaço para que a nova geração também alcance o cume. A glória nunca se vai, o respeito não muda e tua bandeira continua lá, entende? — contou-lhe Lesten. Tootie ouvia a história com tanta atenção que parecia hipnotizada.
— Não entendi — disse a menina.
— Não entendeu o que, criatura?
— D-desculpa, eu não queria te ofender! — ela reagiu de imediato com a voz chorosa.
— Calma, chanel, vem cá. Nem todo mundo quer o seu mal.
— Tá bem... mas o que é chanel?
— Ah, é esse corte de cabelo da sua peruca.
Tootie voltou a chorar, porque aquilo era para ser segredo.
— Ô porra, já vi que não vou conseguir dormir em paz...
Apesar da reputação, Lesten sempre fora muito paciente com as pessoas, ainda mais as que precisavam de ajuda. Estava contente em ter uma companhia para conversar a tarde toda, sentira falta disso. Chegou a terminar de contar toda a história dos Irmãos do Vento quando Tootie voltou a fazer seu pedido:
— Senhor lagarto, eu gostaria muito que você me acompanhasse até o mercado como uma espécie de escolta. Sei que você é muito poderoso e sinto que poderá me ajudar.
— Opa, contratou o cara certo! — disse Lesten que adorava elogios e não perdeu tempo em agarrar sua lança. — Pra um rostinho desses, nenhuma criatura na face da terra poderia dizer não!
Os dois deixaram o Castelo da Fachada em direção ao centro próximo da Torre Laranja, as barracas se amontoavam em fileiras ao redor de uma fonte de pedra que jorrava água, os comerciantes travavam sua própria batalha por consumidores.
O mercado estava movimentado e cheio de viajantes curiosos, o sol ardia e mesmo assim Tootie se escondia por baixo de mantos velhos, observando cada loja durante vários minutos e sempre saindo sem comprar nada. Lesten a acompanhava dois passos atrás, já estava começando a se entediar. Não havia nenhuma ameaça nos arredores, só um bando de estudiosos e entusiastas por livros que não fariam mal a ninguém contanto que não matassem seu personagem predileto.
— O que estamos fazendo aqui mesmo? — perguntou Lesten.
Tootie virou-se para o lagarto e mostrou uma moeda da primeira geração do mundo, prensada com o perfil do Rei. Ela era apaixonada por objetos antigos, mesmo que para muita gente não passasse de um monte de sucata velha.
— Não creio que tu também gosta de colecionar coisas! — falou Lesten.
— Sim, eu adoro. Você iria gostar de ganhar essa moeda, senhor lagarto?
— Com toda certeza do mundo, imagine na mão de quantas pessoas essa moeda já passou! Mesmo que ela não tenha mais valor comercial nos dias atuais, só o fato de ter sido um presente seu faria toda a diferença.
Tootie encolheu os ombros e corou de leve, ajeitando a franja.
— Eu gosto de dar presentes, mas nunca sei se a pessoa vai gostar, porque tendo a dar coisas que eu gostaria de receber... — falou a menina.
— Sempre que tu pensar em presentear um macho, procure algo que seja útil para ele. Se dá pra comer, então é bom — brincou Lesten. — Olha, eu não sei quem é o sortudo que vai receber algo de você, mas ele já ganhou na loteria.
 — Eu fico surpresa de você não estar em nenhum relacionamento, senhor lagarto!
— Chanel, tu tá olhando para o imperador dos flertes. Na minha terra natal não havia uma fêmea sequer que resistisse aos meus encantos, eu sinto o cheiro de paquera há milhas de distância.
Os dois riram e continuaram sua caminhada pelo mercado. Estavam se dando muito bem, por mais que fossem de duas culturas completamente diferentes ainda compartilhavam o interesse por criaturas do mundo antigo e adoravam colecionar objetos sem valor algum. Tootie encontrou um ursinho de pelúcia no formato de um Dinorros e Lesten abriu a boca, maravilhado.
— Que. Coisa. Mais. FOFA! — Lesten apertava tanto o bichinho até os olhos saltarem para fora. Tootie o pegou no braço, afagando a cabeça.
— Será que ele iria gostar?
— Pare de se preocupar tanto com o que os outros vão pensar, se for de coração tá valendo, sacou? Olha, se não quiser comprar para esse seu admirador secreto, então eu compro e dou para você.
Tootie agradeceu com um aceno gentil. Andava de lá para cá com o ursinho de pelúcia entre os braços, adorava brinquedos e sempre sentira um pouco de inveja das outras crianças que tinham tantos e muitas vezes não brincavam com nenhum deles. Lesten era um sujeito curioso, sempre o enxergara como um cara despojado e irreverente, mas Tootie agora via um lado carinhoso e divertido dele.
— Eu amo brinquedos — ela encolheu os ombros. — Eles nunca te abandonam, a menos que você o faça.
— Eu também me amarro nessas tranqueiras, sabe? Gosto de valorizar coisas que para a maioria não dá valor algum, mas para mim são especiais. Eu brinco ao dizer que sou um colecionador de memórias, pois cada um desses objetos representam pessoas e lugares que passei. Enquanto eu ainda estiver aqui, significa muita coisa — disse Lesten, percebendo que já falava demais. — Saca só, chanel.
Ele retirou de seu alforje a escama original do Dinorros que enfrentaram na Ilha dos Geckos. Nem mesmo Tootie pôde acreditar.
— Uau, é autêntica. O senhor é um verdadeiro caçador de monstros!
Lesten adorava gabar-se de suas conquistas, mas raramente compartilhava deste sentimento com alguém, pois poucos se importavam. Estava muito contente com sua nova amizade, Tootie era interessante e meiga. Quem seria seu misterioso admirador secreto?
— Pode me dar um minuto? — perguntou Lesten.
— Aonde vai?
— Vou ali entrar em contato com a mãe natureza, se é que me entende.
Tootie riu e disse que não se importaria. Lesten saiu para fazer suas necessidades em algum lugar e a deixou sozinha. A garota continuou sua busca pelo presente ideal quando alguém muito alto parou atrás dela, observando a tenda de cima. Tootie segurou um espelho com bordas douradas e espantou-se pelo reflexo com os olhos lilases de uma mulher sobre ela.
— Se olhar bem é como se pudesse enxergar um universo paralelo, não? — disse a figura feminina encapuzada, suas mãos gentilmente tocando os ombros de Tootie.
A moça tinha os cabelos longos e ondulados da cor púrpura, e por sua excentricidade se escondia atrás de um manto assim como Tootie. Seus olhos brilhavam como duas ametistas perdidas em um oceano sem cor, um tesouro intocado e repleto de seus próprios mistérios que imploravam para ser desvendados. Tootie virou-se envergonhada, não gostava de ser tocada ou sequer manter contato com pessoas desconhecidas, por mais bem intencionadas que aparentassem.
Quando tentou distanciar-se, a moça a segurou pelo braço com força e falou:
— Aonde pensa que vai, mocinha? Não vamos nos conhecer melhor?
— Me solta — Tootie implorou com educação. — Por favor...
Ela chegou bem perto de seu ouvido e sussurrou bem baixinho:
— É melhor fazer o que estou mandando, ou não vai gostar do que acontecerá se tentar me desobedecer, guardiã. — Elas deram as mãos e saíram para caminhar, como mãe e filha. — Não se preocupe, vamos passar alguns bons momentos juntas.

i

Nuvens escuras vinham do mar e anunciavam a chegada de uma forte chuva. Os mercadores aprontaram suas barracas às pressas, as atividades no centro de Bausonne se encerraram e era hora de voltar para casa. Ralph e Auria voltavam tranquilos debaixo de Lignum em sua forma de guarda-chuva, cada um levava três sacolas de suprimentos para a viagem que fariam no dia seguinte.
— Obrigada por me acompanhar hoje, Ralph — falou Auria. — Sua companhia me faz bem.
— Disponha. Foi bom irmos ao médico, vamos tomar conta dessa ferida. Buscamos os remédios amanhã cedo antes de partirmos, tudo bem? E não esqueça: repouso. Se necessário, vou deixa-la trancada no quarto e te alimentar com macarrão instantâneo até que volte ao normal.
— Se for você cuidando de mim, talvez eu até deixe — respondeu a guerreira com uma risada, trazendo-o para mais perto de si para que a chuva não o molhasse. Bem que gostaria de estar com sua jaqueta à uma hora daquelas, poderia esquentá-lo quando sentisse frio, garantiria alguns pontos extras.
 Ao retornarem ao Castelo da Fachada, um clima tenso cobria o local, e não era por causa da chuva. Bill discutia em voz alta com Elma que tentava defender-se, Facade procurava a melhor maneira de manter a ordem, embora sem muito sucesso. Quando os dois chegaram e deixaram as compras na entrada, logo tentaram compreender o que estava acontecendo.
— Como é que vocês não sabem? — Bill reclamava impaciente, a mão constantemente ia até o rosto e ele não parava de olhar para a janela. — Por que a deixaram sair sozinha? Bausonne sempre alaga em temporada de chuva, a Tootie não faz ideia de como se virar no mundo atual!
— Ela não é sua filha, Bill — Elma respondeu de forma rígida. — Tootie é uma garota crescida e sabe se cuidar. Hoje cedo ela pediu para que eu a acompanhasse em uma... tarefa especial, mas eu não pude comparecer, e estou arrependida.
— Perceberam como o lugar está excepcionalmente tranquilo? — começou Facade. — O jovem Lesten também não está presente, talvez eles tenham saído juntos.
— A lagartixa não sabe cuidar nem de si própria — Auria deu risada ali perto.
Bill começava a perder a paciência.
— Como vocês conseguem ser tão imprestáveis? Eu não posso deixar esse lugar por uns dias que tudo sai do controle! Vamos sair e procurá-la agora mesmo.
— Vai com calma, Bill — foi a vez de Ralph falar —, chega a parecer que você está preocupado com algo que ainda não sabemos...
Um trovão rimbombou no céu distante, o mar estava agitado e Bausonne preparava-se para uma tempestade vinda do noroeste. Elma sentia-se culpada por ter menosprezado sua companheira em um momento de descuido e Bill continuava calado. Dessa vez foi Auria quem decidiu perguntar:
— O que foi que você fez, Bill?
— Está me acusando de que? — indagou o gatuno inconformado.
— Quando uma pessoa fica agressiva, ela deve estar escondendo alguma coisa. Fala alto, perde a paciência... Não estou acusando ninguém, só estou esperando que você me diga o que está acontecendo.
A atenção voltou-se para o gatuno. Ele continuou de braços cruzados, uma gota de suor escorreu por seu rosto. Não fizera por mal — ou melhor, não sabia que atingiria alguém que lhe era tão especial. Respirou fundo e, enfim, admitiu:
— Tá, eu vendi uma informação. Estava precisando de dinheiro para uns negócios particulares. Mas como eu ia saber? Foi apenas uma conversa rápida, quem poderia saber que eles iriam atrás da Tootie?
Auria fechou os olhos e massageou as têmporas. Era a última notícia que gostaria de ouvir.
— Que informação tão importante era essa? O que você contou?
Bill ignorou a conversa, olhava para o tempo lá fora e fingia que não era com ele.
— Bom, eu... eu precisava saber se mais alguém estava tentando reunir as Pérolas Sagradas. Só isso, sem maiores detalhes. Foi só uma informação mesmo.
Bill não teve nem tempo de ver de onde veio um soco que o acertou com tanta força que o arremessou no chão. Sua cabeça rodopiava, levara muitos tapas na vida, mas nenhum como aquele;  imaginou tratar-se de Auria, mas notou que havia certo desapontamento no gesto, sem contar que a guerreira estava do outro lado da sala. Quando retirou sua máscara, seu cachecol agora estava com uma mancha marrom avermelhada. Em sua frente, Ralph mantinha sua expressão inalterada.
— Você não vendeu uma informação, Bill — disse o garoto. — Você vendeu um amigo. E isso eu não posso perdoar.

quinta-feira, 19 de setembro de 2019

O Passado da Ordem - A Silenciadora (Parte 1)

A Silenciadora
– Bill 

Bill adorava os domingos, era uma das raras ocasiões na semana onde sua família se reunia em casa e tinha a chance de passar a tarde inteira com seus pais. A mesa do jantar estava posta, o cheiro do risoto preenchia a cozinha — sua mãe sempre fora uma cozinheira de mão cheia, mas quando seu pai inventava de testar alguma receita nova, o resultado era ainda mais surpreendente —, o caçula dos Altenburg ansiava por repetir o prato pelo menos duas vezes, talvez até uma terceira se ninguém lhe desse uma bronca.
Bill estava espremido entre seus quatro irmãos no sofá — Velouria, Xavier, Yan e Zack — todos mais velhos que ele por alguns bons anos de diferença. Zack, o primogênito, tinha vinte e cinco anos e deveria ser considerado o herdeiro principal dos Von Altenburg, mas sua falta de interesse com as responsabilidades deixava claro que não era uma boa ideia; Yan e Xavier também preferiam uma vida boêmia a ter de cuidar dos negócios do pai em Bausonne; Velouria acabara de completar dezoito e estava ansiosa por seguir os passos do pai, mas sua mãe tinha outros planos para a única herdeira mulher da família — esperava que sua filha encontrasse um bom marido na capital de Bodoni e seguisse os estudos que ela nunca tivera a chance de completar.
Sobrava para o pequeno William, que mal completara seus dez anos, para garantir o futuro de sua família.
— Certo, estão todos em seus devidos lugares? — perguntou Amélia. — Gregor, querido, venha logo porque só falta você!
Bill ria alto sempre que via seu pai aparecer da cozinha vestindo um avental apertado. O Sr. Gregor posicionou-se à direita do sofá com sua esposa à esquerda; todos observavam um estranho objeto de formato retangular emparelhado sobre a mesa de centro com diversos apetrechos que o mantinham em perfeito equilíbrio, no aguardo de alguma surpresa excepcional.
— E o que fazemos agora? — perguntou Zack, já entediado. — Estou morto de fome.
— O vendedor disse que essa caixa mágica registrava qualquer momento pela eternidade — respondeu sua mãe. — Talvez ela ainda esteja processando, eu realmente não entendo dessas tecnologias... Isso porque custou uma nota, não é fácil encontrar esse tipo de instrumento longe das Cidades Cinzentas.
— Espera aí, deixa eu experimentar uma coisa — falou Velouria.
A garota apontou o dedo indicador que esticou como se fosse um cipó, pressionando o botão vermelho em cima do equipamento. Uma forte descarga de luz cegou-lhes por um breve instante, Zack resmungou alto ao afirmar que se tratava de uma armadilha enquanto os demais iam correndo lavar o rosto para ter certeza de que o feitiço não contaminaria sua visão. A caixa mágica começou a tremer até cuspir para fora uma folha de papel em branco que aos poucos começou a formar imagens coloridas — uma representação idêntica do momento que acontecera havia poucos minutos.
— Uau, funciona mesmo — disse Velouria, impressionada.
Sua mãe pegou a foto e começou a rir.
— Yan, querido, você saiu de olhos fechados! — disse Amélia com um sorriso adorável.
— Ih, olha só, o Xavier tava cutucando o nariz — brincou o segundo irmão.
— Nossa, agora que parei para olhar, eu fiquei horrível! — resmungou Velouria com frustração. — Vamos descartar isso e tirar outra, pelo amor de Araya!
— Deixa eu ver, deixa eu ver! — Bill implorava de braços estendidos para o alto, mas ninguém nunca lhe dava atenção.
Reunir todos no sofá uma segunda vez se mostrou uma tarefa impossível, apesar de que Amélia também não obteve sucesso em fazer a caixa mágica voltar a funcionar (o vendedor omitira completamente a informação de que a câmera só tinha filme para uma única foto), mas estava satisfeita com o resultado.
Seria a primeira e única foto da família Von Altenburg, um registro para a posterioridade.
Gregor voltou para cozinha para dar os toques finais em seu prato, o cheiro preenchia do corredor à sala de jantar. A mesa foi servida, os Altenburg se sentaram todos juntos com o pai na ponta da mesa, eles riam e conversavam sobre suas mais recentes jornadas, discutindo as últimas notícias que aconteciam em Sellure ou simplesmente compartilhando histórias de quando eram mais novos e Bill ainda nem era nascido. Amélia serviu o mais novo primeiro, Zack brincava ao dizer que ela o mimava demais, o que resultava em intermináveis provocações por parte dos demais.
— Você sente é saudade de ter a mamãe tomando conta de você o tempo inteiro! — brincou Xavier.
— Nem me fale, os mais velhos sempre se ferram... — respondeu Zack de boca cheia. — Precisei descobrir meus poderes mágicos sozinho, papai estava sempre ocupado no trabalho. Acho que eles só começaram a se manifestar quando eu tinha uns sete ou oito anos.
— Sempre me diziam na escola que eu seria uma menina-prodígio, tanto que os meus apareceram antes mesmo de eu começar a andar — gabou-se Velouria.
— Poder elemental da natureza, grande coisa! — respondeu Yan. — Bem que algum de nós poderia ter tido fogo ou água. O único aqui que ainda tem esperança de despertar um dos grandes elementos é o Bill.
— Ou quem sabe ele possa ter uma forma mágica esplêndida, como um elefante! — falou Velouria. — Sério, transformar-se em borboleta não vai te levar a nenhum lugar na vida.
— O Bill já descobriu qual a forma mágica dele, não é, filhão? — brincou seu pai, dando-lhe uns tapinhas nas costas.
O garotinho revirou-se meio tímido. Somente aos dez anos é que seus poderes estavam começando a se revelar, mas odiava ter que compartilhar aquilo com os irmãos que viviam a caçoá-lo. Zack apontou o garfo em sua direção e ordenou cheio de euforia:
— Mostra pra gente!
— E-eu ainda estou praticando... — lamentou-se Bill.
— Qual é, prometemos não rir — caçoou Velouria. — A menos que seja muito idiota.
Amélia lhes deu uma bronca e pediu que voltassem a atenção para outro assunto, deixando o pobre garoto em paz. Bill ainda era muito novo para falar sobre a magia dos tótines, e aquele assunto vinha sendo evitado na casa há algumas semanas.
— Lembram daquele sujeito que eu falei que parou de frequentar a academia faz umas três semanas? — perguntou Zack, concentrado na comida. — Encontraram o corpo dele.
— Tá brincando — comentou Velouria. — Duas colegas minhas da escola também sumiram, mas ainda não há informações sobre elas. De uns tempos para cá têm acontecido tanta coisa estranha no reino, até mesmo nas capitais que julgávamos serem tão seguras...
— O que acham que se trata? Algum assassino de aluguel, como o Ceifador? — perguntou Xavier.
— Duvido muito — ponderou Zack que sempre se interessara pelos figurões criminosos de Sellure. — O Ceifador só pune outros criminosos, ele é como um justiceiro. Mas as pessoas que estão sumindo são apenas... gente comum. Não são guerreiros, não há diferença de classes sociais, qualquer um pode ser vítima. É bom ficarmos alertas.
— Será que vocês poderiam discutir outra coisa? — perguntou sua mãe de maneira educada, dirigindo um olhar discreto para Bill. Ela sempre odiara violência.
A noite seguiu tranquila, a sala foi preenchida de risadas e um ar descontraído, ninguém deixou a mesa até que todos tivessem terminado lá para as seis da tarde. Gregor estava sempre tão cansado do trabalho que se esparramou no sofá para tirar um cochilo, a condição era que os filhos que não ajudaram a preparar a mesa se juntassem para lavar a pilha de louças que fora deixada na cozinha, tarefa esta que se provou mais exaustiva do que aparentava.
Com a chegada da noite, todos se reuniram em volta da lareira, aproveitando do conforto com a sensação que as semanas deveriam ter pelo menos três ou quatro domingos e menos segundas-feiras. O fim de semana terminava e logo todos voltariam para suas respectivas rotinas. Velouria estava namorando um rapaz de sua classe de magia, mas se negava a terminar como uma dona de casa que viveria o resto de sua vida limpando e cozinhando. Infelizmente, não podia se espelhar no relacionamento de seus pais, sua mãe abrira mão de muitas oportunidades na vida para tomar conta das crianças enquanto o marido se dedicava ao trabalho. Yan e Xavier abriram uma loja de itens raros no centro, enquanto Zack trabalhava na polícia de Bausonne como detetive. Bill era o único que ainda morava com os pais.
— Eu não quero trabalhar amanhã — resmungou Zack. — Aproveite enquanto você tem tudo de mão beijada, Bill, porque crescer é uma merda. Ninguém mais liga para você.
— O Bill vai ter a mamãe pra tomar conta dele pra sempre — caçoou Velouria, fazendo um biquinho e afinando a voz para provocá-lo.
A verdade é que Bill já estava farto de ser tratado como criança. Queria completar dezoito anos logo e ir embora, explorar o mundo, desvendar os mistérios de Sellure e ganhar muito dinheiro vendendo brinquedos. A começar, precisava convencer seus irmãos a pararem de chamá-lo de Bill, porque nenhum comerciante de sucesso poderia ter um apelido assim. Quando as cortinas fossem abertas para lhe darem as boas vindas, só queria ouvir o nome de William Von Altenburg sendo recebido com uma sucessão de aplausos!
Mal podia esperar para crescer... e sequer imaginava naquela época que sentiria tanta falta daquelas reuniões em família.

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Duas e quarenta da manhã. Bill levantou-se de sua cama e caminhou na ponta dos pés pelos corredores de casa para se certificar de que alguém estava acordado. Passou primeiro pelo quarto de Yan e Xavier que disputavam um duelo de roncos tão alto que fazia o chão tremer, já a porta do quarto de Velouria estava entreaberta, ele só conseguia enxergar as silhuetas da irmã no cômodo pouco iluminado pelo abajur. A forma como ela se mexia e emitia murmúrios denunciava que devia estar acordada, sua respiração era densa e contínua. Bill se enrolou no cobertor e aproximou-se devagar, o que fez a irmã levar um tremendo susto ao perceber que tinha companhia.
— O que pensa que está fazendo aqui, seu intrometido? Não sabe bater na porta?! — berrou Velouria.
— É que eu...
— Não quero ouvir suas desculpas, sai do meu quarto agora!
Bill fechou a porta às pressas antes que uma almofada o acertasse, desejando que aquela barulheira não acordasse seus pais que deviam estar exaustos e precisavam acordar cedo no dia seguinte.
Ainda estava sem sono. Pelas sombras que se projetavam na parede, percebeu que a lareira devia estar acesa e por isso desceu para apagá-la, mas qual foi sua surpresa ao se deparar com Zack sentado na poltrona de seu pai com as pernas estiradas sobre a mesinha de centro com a velha câmera Polaroid ao lado, fumando um cigarro enquanto observava o retrato da família.
Zack não precisou virar-se para identificar a origem do som vindo da escada.
— A Velouria é muito escandalosa — disse ele com uma risada abafada. — Ela nunca aprende a trancar a porta.
Ao virar-se, Zack observou a luz iluminar o rosto umedecido de Bill. Ele estendeu o braço para o irmão mais novo, sugerindo que viesse se sentar.
— William, se tem uma coisa que você precisa entender sobre as mulheres é que elas são, como eu poderia dizer... temperamentais, mas também muito fáceis de se agradar, contanto que não faça nenhuma besteira. Não tem jeito, elas sempre conseguem roubar um espaço no nosso coração, não é?
Bill sentiu-se importante, pois era a primeira vez que ouvia seu irmão chamá-lo pelo nome. Mal podia esperar para começar os estudos e frequentar a escola, sempre ouvira os irmãos dizerem que naquele ambiente eles encontraram amigos para toda a vida.
— E por que você está acordado a uma hora dessas, hein? — perguntou Zack.
— Eu fiquei pensando no que vocês falaram na mesa, sobre os tótines estarem sumindo... — mencionou o garoto. — E se vocês forem embora também?
Zack revelou um sorriso gentil que lhe era raro, Bill estava acostumado a sempre ouvi-lo gritar, fazer gestos obscenos e provocar todo mundo, mas sentia-se protegido ao lado dele. Como passava tempo demais dentro de casa aos cuidados da mãe, a companhia dos irmãos mais velhos era o evento mais aguardado em sua pacata rotina.
— Estou acordado pelo mesmo motivo, se quiser saber — disse Zack. — Mas não se preocupe, porque nós não vamos a lugar nenhum. Somos uma família, e um protege o outro!
Bill encostou a cabeça no peito dele e respirou fundo antes de dizer:
— Às vezes eu queria não ser um tótines — lamentou o menino. — Todo mundo só se interessa em nossa mana, no que dominamos e podemos nos transformar. Ninguém pergunta no que eu sou bom ou o que gosto de fazer.
Zack ficou quieto diante daquela frase. Será que sentia a mesma coisa?
— Olha, o meu poder não é grande coisa também... quando eu tinha a sua idade, as outras crianças diziam que eu era fofoqueiro porque conhecia todos os segredos da escola, mas eles não entendiam que era porque minha audição era mais aguçada do que o normal. Hoje, foi graças a esse poder que conquistei meu cargo com destaque na delegacia. Então lembre-se do que papai sempre diz: “Você é o senhor de si próprio”.
— Eu me transformo num guaxinim.
Zack soltou uma risada alta e histérica que por pouco não acordou a casa inteira.
— Sério? Um guaxinim? É a sua cara.
— Não é, não! É idiota, ninguém nunca vai me levar a sério!
— Seus poderes não importam, é a forma como você age perante os outros — respondeu Zack. — Não lhes dê espaço para explorar suas inseguranças.
Bill passou mais alguns minutos na companhia de Zack antes de decidir subir de volta para seu quarto, mas os pensamentos sobre o Ceifador ainda assombravam sua imaginação infantil, portanto entrou na ponta dos pés no quarto dos pais, espremeu-se entre os dois no cobertor e ficou ali em silêncio onde nada no mundo poderia feri-lo.

Pelo resto da noite, Zack continuou com os olhos fixos na lareira. Como queria ter tido a chance de dominar um elemento como fogo, igual aos maiores feiticeiros e generais de Sellure, mas seu poder jamais lhe dera nenhuma serventia — audição aguçada, escutar o que as pessoas fazem atrás das paredes, aquilo lhe rendera uma vaga no instituto de crimes, mas bem que preferia não ouvir certas coisas.
Levantou-se para tomar um copo de licor na adega do pai quando algo chamou sua atenção. A maçaneta da porta principal estava girando, mas não fazia som algum. Se houvesse alguém do outro lado, com toda certeza teria ouvido os passos se aproximando minutos atrás. Zack deixou a garrafa de lado e movimentou-se devagar, na ponta dos pés. Permaneceu estático diante da porta, a maçaneta rodando devagar como se estivesse enfeitiçada. Sacou o punhal da família e preparou para manuseá-lo se fosse preciso, não seria a primeira vez que investia contra alguém. Se pudesse evitar um confronto, assim o faria, mas a ideia de que alguém rondava o quintal de sua família elevou sua adrenalina.
Zack empurrou a porta com força, mas não havia ninguém do outro lado. De fato, estranhou que a porta também não fizera seu rangido característico. Soltou um suspiro sem som.
Nada fazia barulho.
Zack levou a mão à garganta ao perceber que também estava sem voz, não escutava o crepitar do fogo na lareira e nem o barulho costumeiro dos insetos no quintal. Para alguém que sempre ouvira os mínimos detalhes, era uma situação assombrosa.
Ele se virou e deu de cara com uma figura taciturna sentada na poltrona no escuro. Pelo semblante do rosto notou tratar-se de uma mulher de cabelos brancos curtos, seus olhos brilhavam feito um par de faróis, ela usava um pano para ocultar a boca e suas roupas eram apropriadas para alguém que se esgueirava em tarefas furtivas. Zack sempre fora um cavalheiro com as damas, mas não se deixou levar pela invasora em sua morada, mergulhou o punhal em direção dela que se desviou para a esquerda e puxou seu braço, derrubando-o no chão. O impacto teria sido o suficiente para despertar seus pais no piso superior, mas a ausência de barulho mostrava o quão qualificada era a invasora.
Zack girou para o lado quando percebeu que ela também combatia com uma adaga, atacando para matar. Tentou gritar e chamar pelos outros, mas percebeu que estaria sozinho naquela luta. Os dois trocaram mais uma dúzia de golpes no escuro, a assassina empurrando-o cada vez mais contra um dos cantos da sala onde comprometesse seu movimento. Zack saltou por cima do sofá para se proteger, mas surpreendeu-se ao notar que a mulher o atacou com uma ventania que fez os objetos no aposento colidirem uns nos outros.
“Duas magias?”, perguntou-se Zack. Pouquíssimos tótines em Sellure eram capazes de dominar dois poderes tão contraditórios.
Julgou que ela também fosse um, mas a ausência quase total de mana vindo da adversária o confundia. Como alguém poderia manusear tanto poder completamente drenado? Ela era uma adversária contraditória e ia contra tudo que ele sabia sobre tótines ou qualquer outra raça no reino.
Um descuido seu fez com que a oponente o desarmasse. Ela parou diante dele com a adaga a um palmo do seu coração. Se a invasora fosse mesmo a responsável pelos inúmeros sumiços de tótines nos últimos meses, então ela precisaria dele vivo, mas a mulher retirou o pano de seu rosto, revelando lábios curvos e traiçoeiros. Ela fez sinal de silêncio, e assim, a adaga penetrou fundo em seu peito. Zack sentiu uma dor agonizante, mas o mais assustador era que, pela primeira vez ninguém o ouvia. Seu corpo escorregou para trás, deixando uma marca vermelha na parede. Sua visão ficava turva quando ele viu a assassina aproximar-se e prender um singelo amuleto em seu pescoço, um antigo objeto usado em funerais por tribos reclusas do norte.
“Esteja em paz”.
Seus olhos se fecharam e ele não escutou mais nada.
A Silenciadora olhou para a escadaria, onde sabia que suas próximas vítimas a aguardavam. Seus passos não emitiam barulho na madeira, ela vinha estudando a morada dos Altenburg nas últimas semanas e sabia precisamente onde cada membro da família repousava, que horário iam dormir e quando acordavam.
Seu primeiro alvo foi o quarto de Velouria. Ela abriu a porta com discrição, pois esperava encontrar a cama desarrumada. Velouria surpreendeu-lhe por trás e a chutou para dentro, usou seus poderes de planta para prendê-la pelos braços, obrigando-a a largar a adaga.
Não era possível escutar o que Velouria dizia, mas não houve dificuldades em distinguir sua expressão de fúria que insinuava: “Eu vou acabar com você, sua vadia!”
De repente, o corpo da Silenciadora começou a esquentar. Ela também parecia ter uma magia de fogo escondida, já somavam três. Os poderes de Velouria se enfraqueciam com o calor, não havia nada que pudesse fazer para detê-la. Reuniu toda mana que pôde para criar uma parede de vinhas espessa que restringisse a travessia da invasora. Por algum motivo seu corpo a fez correr para a esquerda na direção do quarto de Bill, Velouria empurrou a porta e parou diante da cama vazia. Ela esboçou um sorriso de alívio e fechou os olhos. Não teve tempo para avisar mais ninguém, atrás dela a assassina sacava uma katana da bainha, feita para desferir um golpe limpo. Velouria virou-se para que o golpe não fosse desferido pelas costas e encarou aquele par de olhos hipnotizantes. Ela fechou os olhos e seu sangue escorreu pela cama de Bill, manchando o edredom até pingar no chão. A Silenciadora tomou a garota nos braços e deitou-a com leveza na cama, colocando o amuleto sobre seu pescoço.
Yan e Xavier mal chegaram a despertar e tiveram suas gargantas rasgadas. O gesto de despedida se repetiu, cada um deles recebera um amuleto sobre seus corpos inertes.
Agora só faltava um quarto.
No instante em que a Silenciadora abriu a porta, foi surpreendida por um soco com o impacto de uma pedra na cara. Ela caiu e rolou escada abaixo, sentindo a cabeça girar. O pai de Bill ainda estava vestido com o pijama listrado, mas faria de tudo para proteger o que restara de sua família assim que se dera conta da invasão. Fechou a porta e começou a empurrar móveis para impedir o avanço, sua magia de terra lhe conferia a força de um gigante de pedra. Ele olhava para a a carinha chorosa de Bill que não entendia o que estava acontecendo, mas estava claramente amedrontado. Sua esposa apertava a criança em seus braços com o rosto cheio de lágrimas, àquela altura ela devia imaginar o que acontecera aos demais.
“Esconda-se no armário”, Gregor fez menção, apontando para o único esconderijo que conseguira pensar no aposento. “Eu voltarei para buscá-los”
Amélia espremeu-se ao lado de Bill. Os dois permaneceram em absoluto silêncio, o que tornava tudo ainda mais aterrorizante. Eles se recusavam a espiar para descobrir o que acontecia do lado de fora e tudo que podiam fazer era aguardar que logo Gregor retornasse, indicando que era seguro sair.
Bill aninhou-se no peito da mãe e começou a chorar. Sentia sua mana emanar do corpo, queria transformar-se em um guaxinim e escapar pela janela, mas como levaria sua mãe consigo? Sua mãe beijava sua testa na tentativa de consolá-lo. Os dois esperaram pelo que pareceram horas angustiantes que na verdade só levaram alguns minutos.
A porta do armário se abriu.
A Silenciadora parou diante dos dois, mas não os viu. Amélia encarou aqueles olhos impiedosos, mas não conseguia entender como ela não podia enxergá-los. A assassina deixou o armário aberto e olhou para a janela aberta, alheia às duas vítimas que restaram. Ela bateu com força em um móvel que tombou para frente, de onde escorregou uma singela pérola.
A invasora apanhou o objeto e declarou aquela missão como encerrada, limpou a katana ensanguentada na roupa de cama e desapareceu no escuro para longe dali.
Amélia sentia o coração na garganta, olhou para as próprias mãos e percebeu que algo estava estranho — era como se fossem feitas de fumaça. A criança em seu colo estava de olhos fechados, emanando uma quantia incrível de mana. Sem se dar conta, o pequeno Bill descobrira qual era sua aptidão mágica e aquilo salvara suas vidas.
Mas não fora o suficiente para impedir a tragédia que assolou a vida dos Altenburg naquela noite.

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