sábado, 30 de maio de 2020

Fanart #26 - Star-chan


SOBRE A FANART
— por Star-chan

"É bizarro pensar que há alguns anos atrás eu estava lendo o beta do primeiro livro de Matéria e hoje, 29 de Junho de 2020, completa um ano lançamento e devemos dizer que isso parece um sonho da qual não queremos acordar nunca. O problema é que eu já elogiei tanto o livro que fazer um textão enorme seria repetindo tudo de novo rs

Mas eu vim aqui para parabenizar, não apenas pelo lançamento ou pelos números que você fez durante essa caminhada, isso a gente usa só pra compararmos o quanto estamos velhos rs Mas falo das conquistas pessoais e internas, aprendizados que você, com escritor, vai levar para os outros livros, e nós, leitores, que acolhemos das aventuras do pequeno Ralph e seu bando mais estranho que já foi visto.


Tenho certeza que não só eu, mas todas as pessoas a sua volta (até aquelas que não estão mais conosco) estão orgulhosas de ter em seu cantinho de livros, uma capa azul com letrinhas douradas que trazem dentro dele, uma história tão valiosa quanto ouro. É a satisfação de poder dizer “Tá vendo essa belezura? Meu amigo que escreveu”. Acaba sendo uma conquista coletiva que todo mundo abraçou 

Nesse 1 ano, eu quero parafrasear uma citação lá em 2014 no meu aniversário de 17 anos que você me disse : “CRESÇA, MAS NUNCA SE ESQUEÇA”, nunca se esqueça do pequeno Canas rascunhando a história de um menino com uma espada de madeira, de uma princesa que usava azul e de várias criaturinhas fofas que hoje são Lesten, Lee e Hayley e toda a Ordem do Selamento. Nunca se esqueça que Sellure já foi uma brincadeira na mente de uma criança que mal imaginaria que quando crescesse, poderia sentir a sua história na palma de suas mãos, feito com Matéria.

Claramente não podemos esquecer que nada se faz sozinho. Revisor, gráfica e é claro, a Nyx e a Lúcia Lemos merecem todos nossos agradecimentos, é um prazer ver alguém dar um suporte e apoio tão especial a uma projeto maravilhoso.
Da Star para o Canas: Eu não estava quando tudo começou, mas pode ter certeza que estarei lá quando tudo terminar ❤ MEUS PARABÉNS, MATÉRIA!"


COMENTÁRIOS DO AUTOR
— por Canas Ominous

Star já me mandou tantas coisas maravilhosas nos últimos dias que já nem sei como expressar minha gratidão! Preparou fanart da Milady e ainda terminou EM UM DIA essa homenagem para as Irmãs Mercer! O que mais gostei de todo seu processo foi reconhecer as três só pelo olhar, mesmo que não estivessem pintadas nem nada. Está sendo incrível acompanhar o seu avanço com a mesa e me enche de felicidade saber que fui escolhido para ser agraciado com suas fanarts ♥

Se eu apenas tivesse juntado um dinheiro e pago uma editora para fazer 1000 exemplares do meu livro, eu não teria tantas histórias loucas para contar de como foi essa jornada, do quanto aprendi. Lembro do quão triste fiquei ao ter que abrir mão do meu primeiro contrato, mas quando ouvi falar que a editora faliu dois anos depois e largou um monte de escritor na mão eu fiquei só aquele meme lá: "puts" kkkkkkkk Foi horrível, mas foi para melhor, escapei de uma tremenda bomba da qual era capaz que eu nem me recuperasse tão cedo.

Eu nunca tinha parado pra pensar como isso foi uma conquista coletiva, mas nessa semana isso se refletiu mais do que nunca. Consigo lembrar do quanto as pessoas estavam felizes no dia do evento, ainda recebo mensagens de apoio de amigos, familiares, de gente que fazia ANOS que eu não conversava. Sempre fui muito tímido, e o livro meio que abriu essa oportunidade de conversa com muita gente que eu sentia falta ou que fez parte da minha vida. Tem sido uma experiência e tanto!

"Cresça, mas nunca esqueça." Star nunca esqueceu também ♥ Sei que o pequeno Canas estaria orgulhoso em saber do quão longe seus personagens chegaram. Preciso revirar minhas pastas e trazer mais dessas velhas curiosidades, estou super empolgado para trabalhar em coisas novas graças a você! Muito, muito, muito obrigado por esse presente, por fazer desse dia uma data tão incrível e oferecer sua companhia sempre que precisei.

    sexta-feira, 29 de maio de 2020

    1 ano do Lançamento de Matéria - Espada de Madeira

    Nem parece que foi em Abril de 2014 que eu falei pela primeira vez que meu livro sairia "EM BREVE", com previsão de lançamento para 2015. Levou um pouquinho mais do que o planejado,  como vocês bem sabem, mas hoje reconheço com alívio que a espera foi para melhor. Agora que todo aquele drama de "será que consigo, será que sou bom o suficiente?" já passou, enxergo que a minha jornada nesse ramo de escrita foi o que me deu a oportunidade de amadurecer e ter a certeza de que é isso que quero para minha vida.

    Foram muitos altos e baixos nessa longa trajetória que durou cerca de 4 anos — a falha busca atrás de uma editora que atendesse minhas expectativas e me desse oportunidade para trabalhar com ilustrações e uma obra desconhecida de quase 400 páginas, a recusa por parte da editora Rocco, as inúmeras revisões e cortes que fui fazendo ao longo do tempo —, mas também gosto de encarar que eu precisava desse tempo para as coisas boas que vieram. Conheci muita gente bacana no caminho, participei de minha primeira antologia ao lado da Editora Rouxinol, compartilhei o livro com vários amigos e betas que me deram um feedback mais profundo do que poderia ser consertado, eu até tive tempo para adiantar o Livro 2 e 3 para me precaver de eventuais furos no roteiro. É, pode ter parecido um tremendo e longo hiatus, mas foi um tempo de muito trabalho duro também.

    Para ser mais exato, eu tive acesso aos primeiros exemplares e comecei a vender o livro no dia 29 de Maio, mas o evento de lançamento só aconteceu em 30 de Julho de 2019.

    Quando volto para olhar as foto e vídeos que a galera gravou, me encho de uma saudade absurda do momento, das pessoas que fizeram parte disso, do fim de semana louco com os amigos da Aliança Aventuras que só tornou a experiência ainda mais especial. Lembro que uma hora antes do evento ter início eu comecei a surtar: "Mano, não vai dar, cancela essa merda aí e bora jogar um Mario Kart!" *risos* Hoje percebo porque o Ralph precisava tanto de companhia para trilhar sua jornada, porque se eu tivesse que encará-la sozinho eu não teria chegado nem na metade!

    Maio virou um mês especial, porque comemoro tanto o aniversário do Aventuras em Sinnoh quanto do lançamento de Matéria, os dois projetos mais importantes da minha vida — um caminhou para a primeira década cumprida, enquanto o outro apenas alcançou seu primeiro ano de existência.

    Deixo meu singelo agradecimento para todos que fizeram parte dessa minha longa trajetória, que possamos continuar trilhando esse caminho lado a lado porque ainda restam 3 livros pela frente!

    Aproveito para avisar que o projeto gráfico do Livro 2 continua em andamento! A revisão profissional está concluída, e a partir de agora creio que pouquíssimas mudanças serão feitas. Encomendei também a arte da capa com a mesma ilustradora que fez o primeiro, a Lúcia Lemos. Agora resta a diagramação e as ilustrações para trabalhar, além da impressão, claro. Mal posso esperar para trazer mais novidades a vocês! Continuem seguros, continuem apegados àquilo que possuem de mais importante, vamos nos esforçar para melhorar sempre e levar nossos projetos ao mundo!

    E aqui está o primeiríssimo teaser de Matéria postado no Aventuras em Sinnoh, em Abril de 2014.

    O Passado dos Personagens - Auria (Parte 3)

    Auria voltou para casa mais cedo naquele dia. O atendimento na agência de cadastro de soldados fora mais rápido do que o planejado, pois Diana já havia separado toda a papelada necessária na noite anterior por estar acostumada a preencher pilhas de documentos dos jovens que completavam quinze anos. Faltava pouco mais de um mês para o embarque à Vila das Pérolas e Auria se sentia ansiosa, era a primeira vez que se veria longe do conforto de seu lar e dos olhos vigilantes de suas irmãs. Apesar de ser Myridiana por nascença, Auria se considerava uma Constantina tendo sido criada na Fortaleza Azul desde os três anos de idade. A vida na capital era pacífica e ela ansiava por uma mudança de ares.
    A garota comentou de forma automática ao abrir a porta de casa, pois sabia que as irmãs deviam estar no trabalho.
    — Dia? Ly? Tem alguém aí?
    Não houve resposta... e ter a casa vazia somente para ela só significava uma coisa.
    Correu para a cozinha, pegou uma garrafa de refrigerante na geladeira e abriu um saco de seus salgadinhos preferidos — era o momento perfeito para assistir seriado na sala vestindo pijamas e pantufas às três da tarde sem ninguém para incomodá-la.
    Como suas mãos estavam ocupadas, Auria usava a boca para segurar uma barra de chocolate que vinha escondendo o mês inteiro para abrir quando fosse comemorar seu ingresso na academia. Estava a caminho da sala quando ouviu a porta do andar de cima bater — não que estivesse se escondendo, mas alguma coisa lhe dizia que Lydia não sabia que ela estava ali. Sua irmã veio descendo os degraus de mãos dadas com outra garota de farda enquanto ela vestia apenas o seu roupão de banho,.Auria já se acostumara com a presença de caras estranhos e gente do exército que vinha a trabalho ter algumas “conversas particulares” com Lydia, mas era a primeira vez que a via com outra mulher.
    Voltou a espiá-las de relance da cozinha. As mãos de Lydia e da mulher se entrelaçaram com delicadeza. A outra já estava vestida para sair, mas antes de sair pela porta não conseguiu se controlar e desceu a mão devagar pelo roupão de Lydia, apalpando seus seios enquanto beijava seu pescoço. Ouviu-se um tapa safado no bumbum e as duas trocaram risadas maliciosas.
    — Te vejo semana que vem — murmurou Lydia com a voz apaixonada, do mesmo jeitinho que usava para fazer qualquer homem enlouquecer por ela.
    As duas aproximaram seus rostos e se beijaram como amantes, trocando carícias em uma mistura bizarra de línguas se tocando que fizeram a cabeça de Auria girar. O dever a chamava, a mulher se despediu e Lydia trancou a porta como uma gatuna, girou a chave e saiu na ponta dos pés sem emitir som algum para seu quarto, apagando qualquer sinal de sua presença.
    Auria permaneceu com as costas coladas no corredor sem emitir som algum. As sacolas de salgadinhos e refrigerante transbordaram para os lados. Tinha a impressão de que descobrira algo proibido, mas não poderia contar nada a ninguém.
    Auria não entendia muita coisa naquela época, e continuou sem entender.

    i

    O segredo de Lydia atormentou Auria pelas próximas horas que se seguiram. Será que era seguro contar para Diana? Como ela iria reagir? E se aquela descoberta colocasse em risco o bem estar da família Mercer e as três terminassem separadas sem nunca mais se ver? A dúvida a estava matando por dentro, mas a maneira como a mulher enfiou a mão no roupão de Lydia sem pudor fazia suas pernas estremecerem sem entender o motivo. Havia muita coisa que Auria não entendia sobre relacionamentos e ela sentia muita falta de sua mãe para compartilhar e compreender aquele tipo de situação.
     Ela caiu no sono e despertou em curtos intervalos devido à ansiedade. Passava das duas da manhã e, como estava frio, envolveu-se em seu cobertor e desceu as escadas para ver se suas irmãs haviam voltado do trabalho. Avistou um feixe de luz e uma porta entreaberta — outra vez sentiu que estava sendo uma tremenda curiosa enxerida, mas dessa vez o assunto era ela.
    — ... então agora você vai para a guerra também? Quer morrer igual à mamãe e o papai?
    — Pelo amor de Araya, Lydia! Eu já disse que não vou estar na linha de frente, eles garantiram que vou ajudar de alguma outra maneira! — respondeu Diana. — Não é sempre que surge a chance de tornar-se estrategista, e se eu me destacar posso ingressar no batalhão do Lorde Raito.
    — Ah, então você também está de rolo com algum general por acaso? Quem você precisou servir para conseguir o cargo, hein?
    Diana deu um tapão na cara de Lydia. Auria chegou a arregalar os olhos e prender a respiração enquanto espiava por entre o vão da porta.
    — Não ouse dizer isso na minha frente nunca mais. Eu não preciso usar meu corpo para conquistar o respeito de ninguém — falou Diana. Era a primeira vez na vida que Auria a via tão furiosa. — E você sabe muito bem que sou comprometida.
    Assim que se deu conta do que havia acabado de dizer, os olhos de Lydia ficaram marejados e a maquiagem borrada.
    — Você sabe que eu só penso na segurança da nossa família, Dia... Eu não suportaria que vocês tivessem o mesmo destino que nossos pais.
    — Não vai acontecer nada conosco, Lydia. Somos Mercers.
    — Nossa mãe também era, e veja só no que deu! Amanhã conversarei com a Auria, posso conseguir a dispensa para ela da academia. Nossa irmãzinha estará segura ao nosso lado.
    — Você não pode privá-la de tentar. Se ela quiser servir o exército, deixe-a tentar! Ela não quer ser como você, e nem precisa.
    Auria recuou assustada, sua cabeça estava uma bagunça. Voltou para seu quarto onde permaneceu acordada até às três da manhã, chorando sem nem entender o motivo. Mesmo com as luzes apagadas, pôde escutar alguém passando no corredor, por isso escondeu-se embaixo de seus cobertores porque não queria que suas irmãs a vissem naquela situação lastimável.
    A porta se abriu. Ela espiou discreta e reconheceu que era Tellum fazendo sua vigilância noturna.
    — Senhorita, você está acordada? — perguntou o homem com a voz tranquila.
    A garot levou alguns segundos até decidir se responderia ou não.
    — Sim. Estou.
    — Escutei alguém chorar enquanto fazia minha ronda... está tudo bem?
    Auria mordeu o beiço na tentativa de conter tudo que vinha guardando para si nos últimos meses. Estava tão envergonhada dos seus próprios sentimentos que não sabia até onde poderia manter aquilo guardado. Ela cobriu os olhos e murmurou baixinho:
    — Não, Tellum. Não está.

    A mesa da sala de jantar tinha espaço para mais de doze pessoas, mas nunca se sentaram ali mais do que três. Tellum terminava de preparar uma omelete com queijo para Auria no meio da madrugada, mas a garota não parecia estar com muito apetite.
    — Por que é tão duro, Tellum? — ela perguntou com os pensamentos distantes enquanto revirava o alimento em seu prato.
    — Creio que por proteção, senhorita. Veja, a casca do ovo é calcificada para proteger o que há no seu interior, que é o que há de mais importante.
    — Não estou falando do ovo, seu bobo — Auria retrucou com uma risada franca.
    — Oh, compreendo. A que se referia então?
    — Estou falando de tudo! Por que é tão difícil ser adolescente? Desde que papai e mamãe morreram, tudo têm saído do controle. Já não vejo a Lydia e a Diana com tanta frequência e elas parecem não se dar bem como antigamente, nós vivemos tentando trilhar os mesmos passos que nossos pais, mas jamais seremos como eles.
    — Seus pais foram personalidades excepcionais neste mundo, mas não cabe a vocês copiá-los. Na vida é preciso trilhar seu próprio caminho, cometer os próprios erros se necessário e crescer de acordo com o seu tempo. Você ainda é nova, e há tanto para se viver.
    — Quantos anos você tem, Tellum?
    — Vou completar trinta daqui a dois meses.
    — Puxa, e eu nem estarei por aqui para vê-lo ficar mais velho — respondeu Auria, comendo a omelete que agora lhe parecia o prato mais saboroso do mundo. Tellum era excelente em inúmeras tarefas cotidianas e também um exímio cozinheiro. — Sabe... Eu vou sentir muita falta de você. Você foi um bom amigo durante todos esses anos.
    Tellum revelou um sorriso sutil ao escutar uma frase tão simples e que tinha um impacto tremendo sobre ele.
    — Eu também, senhorita... foi um tremendo orgulho vê-las crescer. Mas agora minha tarefa está cumprida.
    — Espera aí. Você prometeu que iria cuidar de nós para sempre.
    — Sim, desculpe. Fui feito para obedecer, senhorita.
    Auria terminou a omelete e afastou seu prato devagar, depois respirou fundo enquanto observava quadros e fotos nas estantes preenchidas por memórias. Havia tantos problemas que sua mente adolescente não sabia lidar, e Tellum sempre lhe transmitia aquela serenidade como alguém impermeável a qualquer tipo de dúvida ou incerteza. Os dois evitavam se encarar na madrugada silenciosa, cada qual com seus devidos pensamentos; ambos iluminados pela luz fraca amarelada da sala de jantar enquanto a cidade dormia.
    — Posso te fazer uma pergunta, Tellum?
    — Claro, senhorita.
    — Você pode me achar esquisita por não saber algo assim, mas... duas mulheres podem... n-namorar? — Auria gaguejou só de precisar dizer aquela palavra em voz alta. — Sabe, beijar, casar, ter filhos, essas coisas, e... ah, quer saber? Esquece que eu perguntei isso.
    Tellum demonstrou-lhe um olhar de afeto que Auria só se lembrava de ter visto em seu pai. O guarda-costas precisou pensar um pouco antes de responder, afinal, queria ser sincero com os sentimentos dela e não plantar ainda mais incertezas.
    — Sim, Auria. Elas podem.
    — Ah. Entendo. — Auria soltou outro longo suspiro e esparramou-se em sua cadeira. — Legal. Que bom.
    — Você sabia que sua mãe foi uma das poucas Mercer a se casar com um homem na história? — perguntou Tellum.
    — Como assim?
    — As Mercer são uma família muito tradicional em Sellure, desde os tempos antigos era comum que elas se relacionassem com outras mulheres. Quando decidiam formar uma família elas adotavam crianças, independente de sua raça, afinidade ou gênero. Dizem até que a famosa General Defesa foi também uma Mercer, embora não haja nada comprovado. Ela própria também nunca se casou, mas adotou muitas crianças que continuaram o seu legado.
    Auria sentiu as bochechas corarem só de imaginar construir uma família e ter filhos. Nunca se imaginara sendo mãe, muito menos que existisse alguma pessoa no mundo que a aguentasse como parceira por mais de um mês. Ela era insegura e insuportável nos seus períodos, por vezes mandona como toda boa Mercer que se preze, embora transbordasse de amor e carinho para oferecer para qualquer um que ousasse ultrapassar as barreiras que ela mesma impunha antes de conhecer alguém.
    — Nunca te ouvi falar sobre coisas do coração, Tellum — admitiu Auria. — Você também tem alguém especial em sua vida?
    — Eu? Não, não — ele negou com a cabeça. — Prefiro não estar em um relacionamento com ninguém. Já tenho dores de cabeça demais cuidando de vocês três.
    — Mas um dia, quando você ficar velhinho e se aposentar, quem é que vai cuidar de você?
    — Não será necessário ninguém para cuidar de mim, senhorita. Quanto a isso pode ficar tranquila.
    — Vivo com medo do dia que minhas irmãs irão se casar e acabarão indo embora... não quero ficar sozinha. Torço pela felicidade delas, mas vou odiar qualquer idiota que as roubar de mim!
    — Avise-me antes para que eu quebre a cara do indivíduo, pois será necessário passar por cima de mim para pedir a mão de qualquer uma de vocês três em casamento.
    Os dois riram alto, mas precisaram conter a voz para não acordar Lydia e Diana que descansavam no andar de cima. Auria repousou a cabeça sobre a mesa, sentindo o sono atingi-la em cheio agora que estava mais tranquila.
    — Me conta seu sonho mais impossível, Tellum...
    — Eu não tenho sonhos, Srta. Mercer — respondeu o homem. — Cuidar de vocês foi o maior prazer de minha vida e sinto que minha função nessa história foi concluída com êxito. Tudo que me resta agora é seguir o meu caminho.
    — Mas todo mundo precisa sonhar... — Auria bocejou enquanto falava. — Uma pessoa sem sonhos... vai lutar pelo quê?
    — Os sonhos de vocês são o suficiente para mim.
    — Tellum, você é muito gentil e generoso... — Auria fechou os olhos, prestes a cochilar ali mesmo. Ela mal se deu conta do que saiu de sua boca, ainda assim, foi com amor: — Nós te adoramos muito, você sabe disso... não é?
    — Permita-me levá-la até sua cama — disse Tellum ao levantar-se e tomá-la em seus braços. Ele subiu a escada sem emitir ruído algum e deitou a menina em seu quarto, cobrindo-a com gentileza antes de se despedir na noite fria e silenciosa. — Tenha uma excelente noite, senhorita.

    ii

    Na véspera da partida de Auria para a Vila das Pérolas, ela recebeu uma encomenda dos geckos alados via correio. O envelope era longo e pesado, nem mesmo suas irmãs se lembravam de ter encomendado nada nas últimas semanas. Assim que Auria abriu o pacote, seus olhos encheram-se de brilho — era uma espada feita sob encomenda com o formato de uma clave de sol na ponta de cores prateadas e azul marinho, com a bainha escura e detalhes brancos como se fosse um céu noturno estrelado. Não havia remetente, mas Auria sabia que aquele era um presente de Tellum para sua nova jornada que estava para começar.
    Ela e Diana estavam assistindo televisão de noite quando Lydia chegou com uma carta em mãos e a expressão tão confusa quanto as palavras que estavam ali escritas.
    — O Tellum pediu demissão.
    As duas pausaram o filme e se voltaram para ela em choque.
    — Como é que é? — perguntou Diana.
    — É o que está escrito aqui — frisou Lydia. — Se mandou. Fim de serviço. Aquela história de “vou cuidar de vocês para sempre” era só fachada pelo visto, porque ele não vai voltar. Vamos ter que arranjar outro empregado para cuidar das coisas em casa, porque o quartinho dos fundos nem terminou de ser pintado.
    — Lydia, isso é sério, o Tellum nunca pediria as contas, alguma coisa deve ter acontecido — Diana levantou-se apressada e vestiu o seu casaco. — Eu vou até a casa dele conversar, talvez ele esteja passando por maus momentos.
    Auria não deu muita trela ao assunto no momento, pois em sua cabeça ela e Tellum continuariam amigos pelo resto da vida.
    O que ela ainda não sabia era que a vida passava como um sopro. Um dia se está conversando na sala, e no outro a cadeira permanece vazia.
    Às dez e vinte quatro da manhã seguinte, veio o choque. Auria desceu as escadas ainda de pijama, ansiosa pelo dia em que ingressaria nas academias de treino quando se deparou com suas irmãs desoladas na sala de jantar. Diana cobria o rosto com as mãos procurando se controlar enquanto Lydia chorava compulsivamente, andando de um lado para o outro prestes a surtar.
    — Como ele pôde ser tão egoísta? O que ele tinha na cabeça? Não era direito dele, isso não é certo, ele não podia!
    — Acalme-se, Lydia! Eu entendo a raiva que você está sentindo, mas isso não nos ajudará em nada! Está sendo difícil para todas nós — retrucou Diana com a voz embriagada. — Ninguém jamais saberá o que se passava na cabeça dele, e nós... nós sequer notamos se aproximar. Como pudemos ser tão insensíveis?
    Auria aproximou-se devagar, ainda sem compreender a cena.
    — O que está acontecendo aqui?
    Diana levantou-se, mas não conseguiu correr pra abraçá-la.
    — Auria, escute com atenção o que vou dizer.
    — T-tá bem, mas eu não gosto desse suspense todo... fala logo.
    — O Tellum... não vai voltar.
    — Sério? Ele encontrou outro trabalho?
    Lydia tampou a boca e precisou retirar-se da sala. Auria ainda as encarava sem entender nada.
    — N-não — soluçou Diana. — O Tellum... se foi.
    A garota riu, pois pensou tratar-se de uma piada de muito mau gosto.
    — Como assim? Ele foi para a guerra? Alguém o atacou desprevenido? Porque o Tellum é muito poderoso, poucos poderiam vencê-lo em um duelo de espadas. Ninguém some assim do dia para a noite sem estar doente, sem demonstrar sinais, ninguém vai... sem se despedir de forma adequada dos amigos.
    Quando se deu conta, Auria estava com os olhos encharcados. Lydia quebrou um vaso na sala e gritou de forma histérica, ela jamais compreenderia. Diana correu com os braços estendidos em direção de sua irmã mais nova que sofria um ataque de pânico, caindo de joelhos no chão por conta da respiração descompensada.
    — E-eu não entendo, Dia...
    — Calma, querida, nós estamos aqui.
    — Eu não entendo. Por que ele foi embora? — Auria sussurrou em seu ouvido. — Nós fomos assim tão ruins para ele?
    — Não diga isso! Tellum foi muito feliz em vida, e nos resta acreditar que ele fez isso porque tinha um propósito. Ele cuidou de cada uma de nós e tenho certeza que se orgulha de ver que nos tornamos mulheres formidáveis.
    — E-eu conversei com ele de madrugada não tem uma semana, e tudo parecia tão normal... ele parecia tranquilo e sereno, como sempre esteve. Será que estava sofrendo por dentro, mas eu não fui capaz de enxergar? Eu poderia ter suprimido essa dor? — Auria parou de falar com os olhos vidrados em um vaso de flor seca na janela. — Diana, e-eu deixei o Tellum morrer?
    — Pare de dizer essas besteiras! Não cabe a nenhum de nós julgar a decisão dele. Lembre-se apenas do que ficou, do carinho e atenção que ele nos proporcionou, das lições e o aprendizado.
    Lydia voltou da sala com as pernas cambaleando e ajoelhou-se ao lado de suas irmãs. As três se abraçaram, e pela primeira vez desde a queda de Cortina Escarlate elas se sentiram completamente sozinhas.
    — Por favor, prometam-me que jamais farão nada parecido. Que isso jamais lhes passe na cabeça, contem comigo para tudo — suplicou Lydia. — Eu não suportaria perdê-las sem entender o motivo, e lutarei com todas as minhas forças para mantê-las seguras debaixo de minhas asas.

    O embarque de Auria para a Vila das Pérolas atrasou em cerca de uma semana. Não houve grandes honrarias, tendo em vista que o exército agora o considerava um “desertor” de sua raça. Nenhum parente compareceu, pois Tellum não tinha mais ninguém. Diana guardou a medalha que o guarda-costas lhe presenteara quando pequena no dia em que Cortina Escarlate caiu, pois prometera que um dia devolveria quando crescesse.
    O luto mal havia passado e Auria se viu no trem viajando de volta à província de Myriad, com a espada que ganhara de presente ainda embrulhada. Mal tivera tempo de praticar, pois seu professor não estaria mais ali para treiná-la quando voltasse.
    Era comum que jovens discutissem suas ambições e preferência de classes nos vagões, adolescentes com grandes pretensões na carreira e ansiosos por fazer novas amizades que poderiam durar toda uma vida. Auria mantinha o olhar distante na janela, incapaz de entrosar ou sequer interessar-se pelo assunto dos demais.
    — Meu maior sonho é algum dia me tornar um grande general do exército da Fortaleza Azul! Quero vestir farda e a capa com estrelas prateadas! — disse um rapaz.
    — Já eu quero ser pesquisadora, vou me especializar em Bausonne e estudar a magia na capital dos magos, bruxos e feiticeiros — respondeu uma garota cheia de empolgação.
    O assunto foi indo de assento em assento até chegar a vez de Auria. Por um instante foi como se o vagão inteiro estivesse em silêncio para ouvir o que a mais nova dos Mercer tinha a dizer sobre seus sonhos e objetivos, mas ela desculpou-se e pediu que não criassem grande expectativa. Seus sonhos pareciam simples e genéricos aos olhos alheios, mas, para ela, sempre carregaria um significado imenso.
    "Eu serei a protetora dos sonhos das pessoas."



     

    sexta-feira, 22 de maio de 2020

    O Passado dos Personagens - Auria (Parte 2)





    A garota observava o movimento ao seu redor, isolada no canto do salão segurando um copo com suco de uva. Estava atenta às pessoas que passavam em sua frente, conversavam e riam contentes de assuntos que ela não compreendia. Ouvia com frequência elogios, bajulações e ficava apreensiva toda vez que era obrigada a sorrir e cumprimentar gente com um beijinho no rosto como se fossem amigos íntimos. Tentou tomar um pouco de suco, que acabou por escorrer e caiu em seu vestido deixando uma mancha enorme que se espalhou. Para coroar o seu dia, agora ela era a “garota de vestido manchado” da festa.
     Era um casal composto por um homem elegante de cartola, barba bem feita e uma ilustre bengala com a cabeça de um corvo, a esposa por sua vez usava um longo vestido de pelos brancos e acessórios com joias preciosas. Eles se dirigiram à garota e o homem estendeu-lhe a mão para cumprimentá-la.
    — Você deve ser a Auria, correto? — perguntou o cavalheiro. — A “pequena” irmãzinha de Lydia Mercer.
    Auria media quase um metro e setenta aos quatorze anos. E se havia algo que ela detestava, era deboche. Limitou-se a revelar um sorriso forçado, para não parecer mal educada.
    — É um prazer conhecê-la, querida — respondeu a esposa com um aceno gentil, beijando-a dos dois lados da bochecha. — Sua irmã nos proporcionou uma festa realmente incrível! Ela é uma mulher e tanto, representa com grande estilo o sobrenome de sua família. Espero que você possa se tornar algum dia como ela, docinho.
    Auria procurou agradecer como pôde. Quando o casal se distanciou, podia estar ficando louca, mas jurou ter ouvido: Viu só como ela é desastrada? E que aparência precária.
    Olhou para suas vestes e reparou que nunca fora muito envolvida com moda, muito menos um exemplo de graciosidade. Escolhera um vestidinho azul e sapatilhas, dando destaque para seus longos cabelos negros e ondulados com uma presilha pouco acima da orelha direita. Não imaginava que alguém em sã consciência perderia tempo julgando sua aparência ao invés de cuidar do próprio nariz. Quando suas irmãs disseram que seria uma festa de grande pompa, as duas ficaram divididas:
    “Irmã minha não pode se vestir feito uma garotinha de quatorze anos. Ela já é mulher para escolher algo melhor do que isso!”, Lydia berrava em sua orelha, sempre autoritária e mandona.
    “Essa é a questão. Ela TEM quatorze anos, Lydia, você mesma disse. Não tente fazê-la ficar que nem você. Deixe-a ir como bem desejar, ela continuará linda de qualquer maneira”, Diana respondia com tranquilidade, procurando consolá-la.
    Auria só conseguia pensar na hora de ir embora. No fim das contas, optou por um meio termo entre os dois estilos, para que nenhuma de suas irmãs viesse torrar sua paciência no dia seguinte quando os burburinhos começassem. O lápis e o rímel faziam seu olho arder, os brincos pesavam e nem conseguiu imaginar como estaria de pé se realmente tivesse ido de salto, porque aquilo já seria demais. Tomou uma golada de seu suco de uva para terminá-lo logo e começou a andar pelo salão. Esgueirou-se entre convidados e suas acompanhantes luxuosas, as mulheres que viam Auria passar por perto soltavam um suspiro afeiçoado ao sussurrarem: “Veja só, ela já é uma mocinha!”
    Uma orquestra contratada para tocar música clássica enquanto políticos e pessoas importantes do alto escalão de Constantia discutiam quais seriam os próximos passos a serem tomados na guerra. Eram tempos pacíficos, embora houvesse uma ameaça crescente no sul, um fantasma conhecido apenas como Peste Negra que realizava pequenos ataques a grupos de viajantes desatentos, nada de grande urgência.
    Auria passou por uma mesa com quatro homens quando ouviu alguém chamá-la. Eles bebiam um vinho da melhor safra cultivado em Perpetua e fumavam charutos soltando baforadas fedidas na cara dos convidados enquanto discutiam política.
    — Ei, só um minuto — disse um deles. — Você é a irmã mais nova da Lydia e da Diana, não é?
    Auria fez que sim com a cabeça.
    — Sim, senhor.
    — Pode me chamar de Lloyd. Nome meio estranho, um pouco incomum por essas bandas, sei disso. Escreve-se com dois L, Y no meio e D mudo no final. — O sujeito respondeu de uma maneira que soou mais gentil do que ela teria esperado. — Acredito que sua irmã fez um teste semana passada para tentar uma vaga como ajudante de escritório em meu batalhão, ela mandou muito bem.
    — Isso é ótimo. Espero que ela consiga a vaga. Diana é muito esforçada.
    — E você está com quantos anos agora? Dezoito, dezenove?
    — Quatorze.
    — Eita. — A expressão no rosto de Lloyd foi impagável. — Achei que você fosse a irmã do meio. Quando completar quinze anos então, poderá iniciar seus treinamentos conosco, maravilha! Tem vontade de ingressar no exército também? Posso conseguir uma vaga para você.
    Auria deu de ombros, indiferente.
    — Ainda não sei o que quero fazer.
    — Não me diga que pretende seguir o mesmo caminho que a Lydia? — O general olhou para os lados e chegou bem perto do rosto da menina, fazendo-a corar. — Eu sei que ela trabalha na mídia e todo o reino literalmente a idolatra, sua irmã é uma celebridade! Mas, com todo respeito, nós dois sabemos como ela é... difícil de lidar.
    Auria riu, talvez porque também concordasse.
    — Oh, por Araya, eu nem deveria estar falando uma coisa dessas para a irmãzinha mais nova dela!
    — Não esquenta, a Lydia consegue ser insuportável quando quer — Auria também riu e ergueu os ombros. — Coisa de irmãos mais velhos. São sempre uns idiotas.
    — Eu sou o mais velho da minha família.
    — Ah. Desculpe.
    — Sem problemas, às vezes eu bato no meu caçula quando ele enche o saco mesmo. Pense bem no seu futuro, acredito que haja muito potencial por trás desses ombros encolhidos — continuou Lloyd, ouvindo um chamado de seu superior que o obrigou a encerrar a conversa. — E a propósito, gostei do vestido.
    Auria não soube dizer se ele estava só sendo irônico ou tentando ser engraçado.
    — Boa sorte em sua jornada, seja ela qual decida seguir. Estaremos esperando.
    Auria ainda estava com o copo vazio em sua mão para conter o nervosismo, porque nunca sabia o que fazer com suas mãos. Sentiu alguém segurá-la pelo braço outra vez, será que ninguém ali respeitava os limites de espaço? Se fosse Lydia, já esperava uma bronca daquelas sem motivos aparentes, mas ficou surpresa ao encontrar Diana com o semblante que lhe transmitia tanta tranquilidade e segurança.
    — Te encontrei — Diana sorriu, ajeitando seu cabelo para trás. — Estava conversando com quem?
    A menina apontou para os homens do governo sentados na mesa. Diana acenou para eles e pediu que ela a seguisse.
    As duas caminharam para fora do salão onde a música e as conversas sobre negócios não incomodassem ninguém. Ela guiou Auria por um belo jardim até uma tenda com cortinas brancas e bancos de madeira refinados. As irmãs se sentaram e Diana retirou o copo de vidro das mãos da menina, sem fazer alarde ou culpá-la por um acidente comum feito aquele.
    — Você está tão nervosa que não consegue nem largar o copo — disse a mais velha. Com um paninho úmido retirado de sua bolsa, o borrão fora parcialmente ocultado. — O que aconteceu?
    — Eu só quero ir embora — respondeu Auria com a voz distraída. Ela continuava evitando contato visual. — Vai demorar muito?
    — Bem, a Lydia é a anfitriã, ela terá que ficar até o final da festa e isso pode levar algumas horas — Diana soltou um longo suspiro. — Quer que eu te leve para casa?
    Auria fez que sim com a cabeça. Sua irmã chamou a carruagem que as levaria de volta, o mais difícil seria explicar à dona da festa porque as duas não estariam mais lá para socializar com as visitas que estavam ansiosas por conhecer a família Mercer.
    Quando a carruagem chegou, um enorme sorriso formou-se no rosto de Auria ao reconhecer o cocheiro.
    — Qual o destino dessas duas lindas senhoritas?
    — Tellum! — disse a garota, pulando na parte da frente para abraçá-lo.
    — Vamos para casa. Eu preciso arrancar esse vestido — disse Auria, já tirando o salto alto e os brincos. — Você cuidou de mim por tanto tempo que nem sinto mais vergonha de você, Tellum, mesmo sendo um homem.
    — Senhorita Auria, sua única preocupação quanto à minha pessoa é quando você arranjar um namorado. Sinto que vou assustar todo garoto que tentar aproximar-se da senhorita — respondeu o segurança, revelando um canivete. — E se alguém vier a perturbá-la outra vez, por favor, avise-me.
    Auria riu e finalmente pôde relaxar, esticou as pernas para cima do apoio na carruagem e não deu a mínima se estava de vestido ou não. Elas estavam de partida quando Diana foi surpreendida por um chamado agudo que a fez revirar os olhos.
    — Eu não acredito no que estou vendo!
    Lydia estava deslumbrante com seu vestido de gala, seus cabelos estavam tingidos de loiro e a maquiagem impecável, seu rosto não tinha falhas, mas estava tão carregado que vê-la sem nada poderia assustar até mesmo o mais corajoso dos monstros. Seus acessórios brilhavam como diamantes e ela desfilava no jardim de pedras entrepostas como uma modelo pela passarela. Auria tentou esconder-se, porque não queria ficar na festa até a manhã seguinte rodeada de pessoas que não gostava e ouvindo tormentas incessantes: “nossa como você cresceu!”, “já arrumou um namoradinho?”, e “por que não tenta agir mais como as suas irmãs?”.
    Lydia caminhou até elas e seu olho mágico imediatamente identificou a mancha no vestido.
    — Que coisa mais horrível — ela encheu a boca para dizer. — Volte agora mesmo para casa e troque já isso.
    Auria suspirou, aliviada.
    — Vamos demorar um pouco — respondeu Diana. — A Auria não está passando muito bem, vou dar alguns remédios e volto assim que puder. Se não melhorar, ficarei com ela em casa.
    — Ótimo. Faça isso, estou atolada de coisas para fazer! Não sei se repararam, mas Lorde Raito está na festa e essa é a chance perfeita de fisgar o coração dele.
    — Você já não está tentando chamar a atenção desse cara há um tempão? — Auria perguntou. — Por que tentar desesperadamente conquistar o coração de alguém que não gosta de você?
    — Ora, e uma Mercer algum dia já desistiu de seus objetivos? Nós sempre conseguimos o que queremos! — disse Lydia com uma risada. — Agora, se me derem licença, meus convidados me aguardam. — Ela beijou o rosto de Auria, e pelo menos isso ela sempre fazia com carinho. — Cuidem-se, minhas queridas. Sua irmãzona precisa trabalhar.
    A carruagem zarpou, guiada por quatro cavalos e Tellum que as levou para casa em menos de vinte minutos. Auria não tirou os olhos da janela, Diana observava cada detalhe de acordo com suas expressões corporais, pois se desejava trabalhar com pessoas e soldados no exército, precisava entender e compreender da melhor maneira suas reações para arquivar os melhores resultados no batalhão. Vinha estudando duro psicologia e estratégia para se destacar nas provas classificatórias, e pôde se gabar ao conquistar a primeira posição em sua turma.
    — Algo ainda a aflige e não é só uma mancha no seu vestido — afirmou Diana.
    Auria continuou olhando pela janela.
    — Eu não quero fazer quinze anos.
    — Todos nós passamos por essa idade, mas é só um número — Diana riu. — Você quer uma festa igual às outras garotas? Se quiser, acho que a Lydia consegue pagar com a poupança do papai e da mamãe.
    — Céus, nunca! Só de pensar em colocar aqueles vestidos pomposos e ter que escolher música, doce, amigos para dançar... Acho que nem tenho tanto amigo assim. Eu não quero crescer e ter que assumir tantas responsabilidades, tudo tem sido tão difícil...
    — É uma data marcante, pois representa uma transição para a vida adulta. Você terá a responsabilidade de escolher como contribuir para o reino e nossa raça. Você é tão inteligente, Auria, aposto que enfrentará todos os desafios com facilidade e logo estará ao nosso lado.
    — E se eu não quiser ser que nem vocês?
    Diana surpreendeu-se com sua tonalidade.
    — Bem, você não precisa. Ou melhor, você não é. Em seu devido tempo você encontrará seu próprio caminho, sua aventura. Ninguém a está obrigando a entrar para o exército ou tornar-se um ídolo da mídia. Você é uma Mercer, está em seu sangue ser uma pessoa incrível.
    — Eu não queria precisar de um futuro brilhante para ser reconhecida — disse a menina, constrangida —, mas parece que todos sempre me conhecerão como “a irmã mais nova dos Mercer”. Todos estão esperando algo grande vindo de uma Mercer. Querem que eu continue o legado.
    Diana saiu de seu assento e sentou-se ao seu lado, tocou-lhe o rosto e a deitou em seu peito de forma suave. Auria fechou os olhos e começou a chorar, estava assustada e perdida, muitos jovens passavam por uma crise aos quinze por terem de ser obrigatoriamente encaminhados para um centro de treinamento antes de servir o reino.
    — Nós estamos aqui — disse Diana, acariciando seus cabelos. — E vamos te ajudar no que for preciso, sempre.
    — Mas quando eu fizer quinze anos ninguém pode me ajudar, eu vou estar sozinha — Auria disse com a voz trêmula, manchando o vestido de sua irmã com lágrimas. — Eu vou ficar sozinha para sempre...
    — Não vai. Eu estarei sempre aqui para protegê-la, ouviu? Eu e a Lydia. Nós te amamos muito, nunca se esqueça disso.
    — E tem eu também, se é que isso serve de consolo — riu Tellum no banco dianteiro, o que fez as duas rirem e quebrou o clima de tensão. Auria pulou em seus ombros para abraçá-lo, beijando seu rosto para deixar ali marcas de batom propositais.
    — Isso faz toda a diferença, Tellum!

    i

    Auria arrumava o armário em seu quarto à procura das roupas que levaria na viagem. Ainda faltavam alguns meses para que fosse encaminhada para o centro de treinamento em Century, a Vila das Pérolas, mas Lydia já a obrigara a deixar tudo organizada para que não houvesse imprevistos. Ela não era um dos melhores exemplos de organização, todos seus pertences costumavam ficar jogados pelo quarto e as roupas formavam pilhas sobre pilhas sobre a mesa, o sofá e até a cama até que não houvesse mais onde sentar. Seus pertences ficavam todos enfiados no armário que ela nunca permitia ninguém mexer, somente Auria sabia se localizar em sua própria bagunça. Ocasionalmente sua irmã ordenava que as empregadas fizessem uma limpeza e este era o único vislumbre de organização que um dia tivera.
    Passara os últimos trinta minutos procurando uma jaqueta preta que estava debaixo de uma montanha de roupas passadas. Retirá-la dali seria um desafio e tanto. Ao tentar puxá-la, uma enxurrada de roupas sujas despejou sobre ela. Auria empurrou tudo de volta para o mesmo lugar quando notou algo perdido — havia uma boneca ali, uma companhia que ela esquecera completamente da existência havia pelo menos dez anos.
    — Oi, Rafaela — disse Auria meio sem jeito, como se conversasse com um estranho.
    Loira, corpo escultural, olhos azuis e o clássico sorriso no rosto. Por algum motivo lembrou-se de Lydia, era como se sua irmã tivesse saído diretamente de uma fábrica que a moldara exatamente como deveria ser. Lembrou-se de quando eram crianças e ela também tinha os cabelos escuros como um véu negro, mas agora ela ia todas as semanas no cabelereiro para ter certeza de que nenhum fio preto apareceria.
    Ao mesmo tempo em que a boneca era bela e atraente, Auria começou a imaginar o quanto ela devia sofrer por sempre precisar manter aquela cara de simpática mesmo quando se sentia triste ou emburrada. Qualquer um que a comprasse seria recebido pelo belo sorriso, mas e se ela não tivesse vontade de sorrir? Julgara que as pessoas que conhecera na festa também eram pessoas artificiais, mas e se elas estivessem apenas escondendo sua tristeza atrás de um sorriso?
    Surpreendeu-se quando ouviu alguém bater na porta. Auria escondeu a boneca no meio das roupas sujas e a empurrou para dentro do armário, torcendo para que Lydia não visse a bagunça e gritasse de pavor. Para sua sorte, era apenas Diana.
    — Oi. Está ocupada?
    — Não — disse Auria, precisando conter o armário com os braços antes que ele explodisse.
    Diana ergueu uma das sobrancelhas, bastou alguns segundos para que o armário inteiro abrisse e desabasse pilhas e mais pilhas de roupas, sapatos, acessórios, brinquedos velhos e utensílios em cima da garota. Diana riu e trancou a porta para que ninguém as perturbasse nas horas seguintes.
    — Deixe-me ajudá-la com isso, irmãzinha.
    Diana sentou-se no chão ao lado da irmã e começou a dobrar uma peça de roupa de cada vez com calma e paciência, colocando as sujas para lavar e separando as demais por cor, formato e degradê. Era assim que ela vinha ganhando a atenção de seus superiores, desde que fora aceita vinha se destacando por seu jeito metódico e a facilidade de lidar com pessoas. Enquanto muitos surtavam durante as provas e testes, era o momento que Diana mais se destacava com eficiência por saber trabalhar sob pressão.
    A montanha de pertences foi diminuindo até que elas encontraram a boneca perdida, o que fez Auria corar. Nenhuma garota de quatorze anos ainda brincaria com bonecas.
    — I-isso não é meu, só pra avisar — ela ainda tentou arrumar uma desculpa. — Só peguei para doar. Vou me desfazer de tudo.
    Diana riu e acariciou os cabelos da boneca.
    — Poxa, mas é a Rafaela, você não largava dela quando tinha uns três anos... Sabe, como eu nunca gostei da maneira tradicional como as meninas da minha escola se divertiam, eu costumava dizer que as minhas bonecas eram as vilãs da história.
    — Como assim?
    — Olhe só para elas... Esse sorriso maligno no rosto. É como se elas estivessem o tempo todo planejando uma vingança contra seus donos.
    — Eu estava pensando justamente nisso!
    As duas riram e Diana engrossou a voz, fingindo ser uma temível vilã:
    — “Eu vou atacá-la com meus poderes de maquiagem artificial e fazê-la menstruar três vezes por semana, todos os dias da sua vida! Muh-hah, hah, hah!” — disse ela, fazendo cócegas na irmã. — Vai querer guardar a boneca?
    Auria riu do comentário e abraçou sua irmã com carinho.
    — Sim, ela parece a Lydia. Eu sei que nossa irmã é uma boa pessoa. Eu tenho sido dura com ela... A Ly também enfrenta dificuldades, ainda a ouço chorar de noite quando sente falta de nossos pais. Acho que eu costumava pensar que quando crescesse todos meus medos desapareceriam de forma milagrosa, mas depois de refletir um tempo, eu descobri que os adultos não têm controle de nada também, mas fingem que está tudo bem.
    — Isso foi... profundo. E quando você chegou a essa conclusão?
    — Na madrugada passada. Tive uma crise de ansiedade e não consegui dormir.
    — Oh, interessante. Fico feliz que crescer já não lhe pareça uma tarefa tão assustadora. Em breve você estará iniciando os estudos na Vila das Pérolas e, quando voltar, aposto que será uma pessoa transformada!
    — Será? — Auria indagou desconfiada. — Ainda não faço ideia aonde eu pertenço. Eu me espelho muito em você, Dia. Você tem um namorado, uma carreira profissional em ascensão, sabe falar sobre tudo! Se eu fosse um pouquinho mais parecida com você, as coisas seriam mais fáceis, mas acho que eu sempre serei a “diferentona” da família.
    Diana apenas acenou com a cabeça, mas não respondeu àquela questão.
    — Sabe o que eu mais adoro sobre esse mundo? Ele está em constante mudança. Algumas coisas para melhor, outras para pior. E as pessoas também estão mudando, mas de forma positiva. Eu me lembro quando eu tinha a sua idade, e eu também me sentia muito perdida, sempre procurando aonde eu pertencia...
    — E você encontrou?
    — Sim. Descobri que eu jamais pertenci a lugar algum, que posso estar cercada de riquezas e luxo, mas são as pessoas que fazem um lar. Quando você estiver pronta, eu a levarei para conhecer esse lugar.
    — É por isso que você ainda não nos apresentou o seu namorado? — perguntou a mais nova. — Vocês já estão juntos há tanto tempo, ele parece ser um cara tão legal! Vamos lá, Dia, prometo não fazer você passar vergonha.
    — Por enquanto não vai dar... — disse Diana, seguida de um longo suspiro. — Ele é cheio de problemas, sabe? Pelo menos, vi que você está cuidando bem da jaqueta que nós demos.
    — Sim, ela é quentinha e aconchegante.
    Apesar de ser um modelo masculino, ele servia perfeitamente no corpo de Auria que era muito alta para sua idade. O couro preto era legítimo e a costura realçava bem seu quadril e os ombros. Diana acariciou os cabelos de sua irmã e desejou-lhe toda a sorte do mundo na nova fase que se iniciava.
    — Lembre-se que sempre iremos protegê-la onde estiver.


    ii

    Lydia voltava para casa à tardinha, suas visitas ocasionais ao Palácio das Safiras a enchiam de expectativa e confiança de que um dia poderia viver debaixo do mesmo teto compartilhado pelo Rei e a alta sociedade de Constantia. Se pegasse um cliente dos bons — ou terminasse casando com algum ricaço dando sopa na região — suas chances de se mudar para lá aumentavam de forma considerável, entretanto, nada lhe tirava da cabeça que as pessoas não gostavam dali.
    — Comi aquela puta das Mercer semana passada.
    Lydia parou de andar. Um grupo de rapazes conversava no parque, sendo que ela pôde reconhecer um de seus clientes entre eles.
    — Porra, mandou bem! — elogiou o outro. — Ela é gostosa?
    — Pra caralho — confirmou o outro. — Tem uns peitões que enchem a boca, toda modeladinha, e faz um boquete como ninguém que dá até gosto. Mas, sabe como é, ela já deve ter dado para a cidade inteira.
    Lydia ajeitou sua bolsa e atravessou o parque enquanto ouvia os colegas rirem do comentário. Ao vê-la passar, o rapaz acenou e soltou um longo assovio para chamar sua atenção. A socialite correspondeu com uma piscadela e um aceno gentil, afinal, para ela o cliente era o que havia de mais sagrado em seu trabalho.
    — Te espero semana que vem — disse a mulher, disfarçando-se por trás de seu melhor sorriso —, e se quiser, pode trazer seus amigos para que eles vejam se tudo que você disse é verdade mesmo.
    Ela despediu-se em meio às bajulações histéricas de três sujeitos patéticos e previsíveis que surtavam feito animais no cio como os demais.
    Ao chegar em casa, sentiu-se completamente exausta e com a mente abalada. Arrancou os sapatos e arrastou as pernas até a cozinha de onde saía um cheirinho maravilhoso de comida caseira. Ao chegar lá, Tellum preparava a janta vestido em seu avental enquanto Diana e Auria riam sem parar de uma de suas histórias hilárias dos tempos de academia.
    Lydia parou diante daquela cena e suas pernas enfim cederam. Auria correu para socorrê-la, confusa e assustada pelo fato de que sua irmã nunca permitia que ninguém a visse chorar. Lydia sentia-se envergonhada e aturdida, com tantos pensamentos maliciosos e negatividade acumulando-se sobre suas costas e a responsabilidade de sustentar sua família e garantir um espaço entre a alta sociedade.
    — Calma, Ly... o que houve? — perguntou Diana, acariciando seus cabelos.
            — Alguém a fez chorar? — perguntou Tellum com a panela quente em mãos. — Se tiver acontecido, basta me informar o nome do bastardo que farei uma visita cautelosa a casa dele amanhã. Não se preocupe, não deixarei evidências.
           — Calma, Tellum, tá tudo bem... eu só tive um dia ruim. Vocês sabem que são a coisa mais importante na minha vida, não é?
     — Claro, nós somos sua família — respondeu Auria, que mesmo não sendo tão acostumada a abraçar, permitiu-se acolher nos braços dela. — Eu não entendi direito o  que aconteceu, mas... tem alguma forma que eu possa ajudar?
    — Só de ficarmos assim já é o suficiente — respondeu Lydia com a voz carinhosa. — O que acham de um banho de banheira depois da janta? Podíamos dormir nós três juntas no quarto, faremos aquela festa do pijama que prometi ano passado e nunca cumpri!
    Ao fim da noite, Lydia já estava de volta ao seu estado habitual, dando ordens e impondo sua vontade como a boa irmã mais velha que era.


     

    NOTAS DO AUTOR

    Não é exagero dizer que esse é um dos capítulos mais antigos que tenho escrito para Matéria. Como mencionei na Parte 1, essa cena ficou guardada durante uns 5 anos porque eu simplesmente não sentia que ele fazia jus à personagem. No Capítulo 4 de Espada de Madeira, Lloyd e Raito conversam sobre suas primeiras impressões ao chegarem à Vila das Pérolas, e o mais velho dos King pergunta:

    "Você só pode estar brincando. Pela graça de Araya, é ela mesmo. A mais nova, não? Eu me lembro dela como uma garotinha de vestido manchado na festa, isso já deve ter uns três anos. Essas mulheres amadurecem muito rápido..." — Lloyd King, Capítulo 4.
    Com o Livro 2 se aproximando, senti que já era de contar a história de Auria e suas irmãs, pois a família Mercer sempre foi de grande influência no reino. A própria Auria teve uma evolução enorme nesses últimos anos e isso me fez compreendê-la melhor do que nunca.

    Para os curiosos, esse capítulo também conta com um pequeno easter egg. Sabia que o nome da boneca Rafaela vem dos meus gibis antigos? O nome original de Auria seria Aleafar, nada mais do que Rafaela de trás para frente. E não me perguntem quem é Rafaela.

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