O Passado dos Personagens - Lee e Hayley (Parte 1)

A mulher quase tropeçou assim que abriu a
porta da saída nos fundos, não parava de rir e devia estar um pouco bêbada, a
julgar pelas bochechas coradas e as pernas entrelaçadas feito cordas sem dono. A
mão apertava com força os braços musculosos do lutador, como se desejasse nunca
larga-lo; o rosto do homem era marcado por uma dúzia de socos que levara, mas
nem de perto representava a quantidade de pancadas que seu adversário recebera.
A vitória foi garantida naquela noite, Wendy
ria e gritava alto sem se importar com o horário, pois o berro da torcida fez
seu coração saltar. A ruela dava num beco sem movimento, uma saída secreta, se
ele decidisse aparecer no meio dos holofotes ninguém mais poderia tirá-lo do
meio da multidão agitada. Mas ali, naquele instante, ele era somente dela.
Wendy tentou encostar a cabeça no ombro do
homem, mas era baixa demais, então se contentou em simplesmente poder sentir o
calor de seu atleta favorito conforme caminhavam juntos sob a luz bruxuleante
das ruas ao anoitecer.
— Você foi incrível hoje — a mulher
o elogiou. Seus cabelos loiros que demoraram horas para serem preparados já se
desmanchavam junto da maquiagem borrada no rosto, mas ela continuava bela,
notavelmente mais velha e madura do que ele, embora menos castigada pela idade.
O lutador nada respondeu, ajeitou
seu gorro e continuou seguindo o caminho de volta em silêncio, tinha de
esquivar-se dos fãs que o cercariam caso não fosse discreto. Wendy ergueu as
duas mãos e começou a fazer planos, imersa em uma realidade distante e utópica.
— Você ainda está no início de
carreira, mas se vencer só mais uma luta já terá o cinturão! O Cinturão
Púrpuro, consegue entender a importância disso? Guerreiros de toda província de
Bodoni participam desse campeonato, com toda certeza você será chamado para
competir no Sellureville, o maior torneio de todos, e será o mais jovem campeão
a conquistar tal façanha! Já consigo ver as manchetes: Peter Lee, o Canhão de
Vidro.
Fazia-lhe bem imaginar-se no topo.
Pessoas de todos os cantos do reino o aplaudiriam, como se ele fosse o rei;
diziam as más línguas que o prêmio do Sellureville variava a cada ano — sonhos,
milagres, utopias. O torneio era tão surreal e encoberto que para muitos não
passava de uma lenda, mas os que saíram vitoriosos mudaram não apenas a si
próprios, mas o mundo. Ouvir Wendy fazer tantos planos parecia justamente o que
era: a vida dela, não a sua. Eram os sonhos e desejos dela. Não ligava
muito de ser uma ferramenta, contanto que estivesse feliz consigo próprio e
realizado. Ainda era jovem e conquistaria muito, quem poderia detê-lo?
— ...eu também andei conversando com algumas amigas sobre comprar uma linda casa em Myriad para morarmos daqui alguns anos, fica na Ilha-S com a vista mais
linda para o oceano, uma mistura do natural e do moderno, o lugar perfeito para cuidarmos de nossos dois filhos: Jonathan e Michael, já pensei até nos nomes! — Wendy só parou de falar para respirar fundo e expirar o
ar de volta. — É como num sonho...
O lutador parou de repente, e não
foi porque algum fã o interceptou. O movimento no local era nulo, apenas alguns
postes de luz iluminavam a calçada suja de fora do estágio, sendo que um deles não
parava de piscar; tratava-se de um beco frio e perigoso, porém, ao lado dele,
Wendy jamais teria o que temer.
Sempre estaria
segura.
— Eu acho que devíamos terminar.
Wendy piscou e riu alto, ainda
devia estar bêbada. Levou a mão ao rosto de Lee e deu-lhe um beijo suave perto
da bochecha.
— Terminar aquilo que começamos
ontem, não é? Você não tem jeito mesmo, adoro esse jeitão sensual de homem
misturado com a empolgação de um menino. Ao chegarmos em casa vou te fazer uma
surpresa, e...
— Você não entendeu, Wendy —
respondeu Peter Lee, afastando a mão dela. — Eu quero terminar o nosso namoro.
A mulher afastou-se, claramente
ofendida. Não estava pronta para um soco daqueles.
— Quem é a vadia?
— Não, Wendy, não tem nada a ver
com outras mulheres — Lee olhou para os lados para ver se alguém ouvia a
conversa. Daqui a pouco ela começaria a armar o maior barroco, era só questão
de tempo. — O problema não é você, sou eu. Estou prestes a enfrentar a luta da
minha vida, preciso pegar sério nos treinos e não quero atrapalhá-la em sua própria
vida. Não serei capaz de dar-lhe toda atenção que você merece, e no final...
— Pode parar por aí, mocinho — ela
ergueu o indicador no rosto do rapaz, e mesmo sendo quase vinte centímetros
menores, conseguiu colocar mais medo do que qualquer outro lutador que ele já
havia enfrentado. — Pare agora mesmo com essas desculpas esfarrapadas, eu não
sou nenhuma menininha da escola para você me desmerecer desse jeito. Se for
para enfrentarmos o que está por vir, que seja juntos. E para sempre.
Aquela palavra o assustou à beça. “Para sempre”. Quanto tempo será que
durava?
Em uma reação imprecisa, acabou
virando o rosto e dando a entender que não tinha vontade nenhuma de
compartilhar seu para sempre com
alguém como Wendy, por mais madura, formosa e divertida que ela fosse — sem contar as
lindas pernas. Decidiu simplesmente virar e dar as costas para esta mulher, o que não foi uma boa ideia. Wendy segurou seu braço e o puxou de volta como uma mãe que repreende o filho.
— Ainda não terminamos aqui.
— Me deixa em paz, cacete! — Lee reagiu de forma grosseira, empurrando Wendy para longe.
E ela não gostou nem um pouco daquela atitude.
— Ainda não terminamos aqui.
— Me deixa em paz, cacete! — Lee reagiu de forma grosseira, empurrando Wendy para longe.
E ela não gostou nem um pouco daquela atitude.
Por um instante Lee se perguntou se ainda estaria no ringue, porque quando se deu conta via apenas
uma figura furiosa acertando-lhe tapas e socos confusos sem uma ordem certa. Ela cruzou as ruas pouco movimentadas batendo as pernas com força
no chão, o barulho dos saltos ecoava solitário, ela chegou a tropeçar em um
buraco e quase perdeu o equilíbrio, mas não parou de andar e sequer olhou para
trás.
Talvez fosse melhor mandar uma
mensagem mais tarde, concluiu. Ainda a amava, ou pelo menos sentia (deviam ser
as pernas. Lindas pernas!).
Lee passou pela vitrine de uma loja
onde pôde ver seu reflexo. Seu nariz sangrava um pouco e o olho esquerdo roxo, estaria
assim desde o final da luta ou Wendy poderia considerar seriamente participar
do próximo torneio também? Retirou os óculos escuros do bolso e colocou-os,
mesmo sendo noite. Não queria que ninguém o visse daquele jeito, muito menos
algum conhecido.
— Nunca levou jeito com as
mulheres, não é mesmo, filho?
O sujeito estivera ali, ouvindo a
conversa o tempo todo, sentado em um banco de pedra à espera do último trem que
passaria em alguns instantes. Ele vestia uma boina e tinha a barba mal cuidada mesclada
aos cabelos ruivos, a expressão cansada demonstrava alguém que vivera e passara
por muito, cheio de experiências a serem compartilhadas. Devia ter sido um
rapaz muito bonito no passado, mas a idade lhe trouxe rugas e preocupações, não
sentia mais a necessidade de estar sempre apresentável para as mulheres e agora
simplesmente colocava as roupas que lhe cabiam bem, geralmente em tons de
marrom e vermelho. Ainda carregava seu anel de casado.
Ele arrastou-se lentamente para o
lado e pediu para que o jovem se sentasse junto dele, mas Lee balançou a cabeça
de forma negativa, incrédulo quanto ao visitante indesejado.
— O que faz aqui, Hugh? Pensei que
tivesse dito que nunca veria uma luta minha — disse Peter Lee.
— Eu não preciso. Você já consegue
se cuidar muito bem sozinho, conheço bem o aluno que treinei durante os últimos
anos — respondeu o velho, entrelaçando suas mãos para aliviar-se de um frio
perpétuo que parecia assombrá-lo. — Mas, ei, que belo show você deu ali.
Dispensou a moça sem pensar duas vezes, mas que garanhão sem coração você é.
— Dá um tempo — Lee sentou-se,
cansado de ficar em pé, cansado de uma luta em que já apanhara bastante e se
estendia até mesmo para fora dos ringues. — A Wendy era para ser só uma amiga e
nós acabamos tendo um caso, agora ela vive pensando longe demais, enquanto
eu...
— Ainda está com os pés no chão — o
homem riu, cruzando os braços e ajeitando uma boina surrada que usava. — É
preciso tomar cuidado com essas mulheres mais velhas, filho. Seu encanto é tão
poderoso quanto magia, ao mesmo tempo elas são capazes de roubar o coração e
tudo que você tem com a perversidade de uma bruxa!
— Vou dar um tempo disso. Por
enquanto. Relacionamentos são um saco.
— Escute, filho. Nem sempre as
pessoas compreendem o nosso tempo. Você foi muito precoce, o que ia esperar de
uma mulher com seus quase trinta anos? Você tem quantos anos agora, dezoito,
dezenove? Ainda tem muito a aprender.
— Por que os velhos têm essa mania
de se achar mais experientes?
— Talvez porque todo o soco que
você tomou em sua vida já nos acertou há muito mais tempo, nós já nos
recuperamos e estamos prontos para mais. Você não se torna um adulto completo
se não apanhar do mundo até chorar e pedir para que ele pare. A vida é cruel, e
eu te ensinei isso.
— Tá, tá. Chega de filosofias — Lee
cruzou os braços e esticou uma das pernas, procurando um relógio para saber que
horas eram e quando o trem passaria. — Eu não escolhi ser
forte, a vida me obrigou. — Ele soltou um suspiro antes de
continuar. — Vai ficar aqui até quando?
— Até você criar coragem e admitir
que não tem onde dormir para seu velho mestre e pedir humildemente um lugar para passar a noite.
— Vá se ferrar. Eu não preciso
disso.
— Então espero que a senhorita
Wendy esteja preparando o seu espaço no sofá da sala, isso se já não tiver
convidado algum de seus rivais para ir fazer uma visitinha, e...
— Tá, tá! — Lee levantou-se, agora
irritado e impaciente. Andou de um lado para o outro, até concluir que não
tinha mesmo para onde ir. — Só me leva pra casa. Preciso de um banho e não
estou sentindo as minhas pernas...
O velho revelou um sorriso
vitorioso entre a barba mal aparada e suas rugas de cansaço. O trem chegou logo
em seguida.
i
Viu-se no ringue de olhos fechados. O barulho
estarrecedor da multidão não o incomodava mesmo. Quando abria os olhos, via uma
figura em roupão azul do outro lado, o olhar ameaçador e o sorriso de deboche
no rosto. Só mais uma vitória e o cinturão seria seu, derrubar Ronald Rollout seria
tarefa difícil, ele era agressivo e batia com força, embora nunca antes alguém
o tenha punido com pancadas na mesma intensidade. Na diagonal, Rollout gritava
ameaças vazias: “Eu vou bater tanto em
você que vou te matar, Peter Lee!”, e seus fãs iam à loucura. “Acaba com ele!”
Lee respirou fundo e olhou para os lados.
Nenhum sinal de Wendy em seu assento costumeiro. Hugh também devia estar
escondido em algum canto, só para não se fazer notar, pois jamais perdera uma
luta do discípulo. Pouco antes do início da disputa mais importante de sua vida
(até o momento), a dica mais valiosa que recebera do velho foi: “É por estar em segundo lugar que
nos esforçamos mais.”
Seu atual técnico deu-lhe alguns toques e
repetiu a estratégia, e Lee por fim levantou-se, pronto para enfrentar mais uma
batalha dentre tantas que estavam por vir.
Na multidão, gritos e aplausos misturados com
humilhações desafiadoras.
— No canto vermelho: o desafiante! —
disse o mestre de cerimônias. — Peter Lee, nossa mais nova celebridade,
filho do lendário Doni Lee que veio para mostrar que a determinação e sede por vitória está no sangue! Se ele sair vitorioso
na luta de hoje e conquistar o cinturão da Cidadela Púrpura, poderá competir no
maior torneio do reino, o Sellureville!
Sellureville sempre fora um nome
mágico para ele. Não se tratava apenas de sonhos ou ambições da família, queria ser o
melhor, o ser mais poderoso dentre todas as raças. A fama e o dinheiro viriam
como consequência, estava no auge da carreira; era jovem, atlético e poderoso;
um idiota trajado em azul era o único que o separava de dar mais um grande
salto
— Vem, garotão. Vem pro papai —
disse Ronald com uma risada torta. — Opa, esqueci que você não tem pai, só tem aquele
velhote idiota do Burnout que nada fez além de coloca-lo num ringue para
apanhar!
Aquilo era verdade. Hugh Burnout
sempre fora um pai de consideração desde que o verdadeiro morrera na guerra
quando Lee ainda era menino.
O gongo soou, e o primeiro a
avançar foi Rollout, de pernas firmes e sustentadas correu e deu-lhe um direto
firme no rosto. Lee esquivou-se com uma leveza surreal, acertando o estômago de
seu adversário com um upper
carregado. Rollout tentava proteger-se, mas era castigado por uma onda de
ataques, não conseguia proteger-se e nem desviar o foco de suas costelas. Os
olhos de Peter Lee transmitiam uma malícia cruel, e sua velocidade era absurda.
Ele era como uma máquina.
Houve apenas um assalto, e Ronald
caiu. Seus joelhos foram ao chão, Lee sentiu como se o atual campeão o
louvasse, e gostou da sensação. O árbitro começou a contagem, esticou as mãos
para o alto e o público vibrou. Rollout não prolongou o momento e logo estava
de pé.
— O que o faz continuar de pé? Por
que você continua lutando? — perguntou Rollout.
— Nada — Lee conseguiu dar-lhe uma
resposta breve.
— Nem mulheres, nem dinheiro, nem
fama?
— É só isso que sei fazer.
— Que perda de tempo — Ronald cuspiu no chão. — Você deveria ter ficado no exército e ajudado seu povo, mas agora está aqui apenas para se vangloriar, seu egoísta de merda!
— E não somos todos assim? —
provocou Lee. — Se a vida é um mar de solidão, somos os únicos responsáveis por
ela.
O segundo round começou. Ele
ouvia as pessoas gritarem seu nome, e a sensação o consumia. Ronald estava mais
cuidadoso e procurou manter distância, mas sempre que tentava aproximar-se era
surpreendido por pancadas de todos os lugares, como se seu adversário tivesse
quatro braços ao seu dispor. Ele nem começara a usar as pernas ainda, e diziam
que Peter Lee era habilidoso com elas (especialmente Wendy). A plateia foi
surpreendida quando um gancho acertou Lee no queixo, ele debruçou-se sobre as
cordas e vergou o corpo, mas não se permitiu ajoelhar no chão. Há pelo menos cinco lutas
ninguém sequer conseguia fazê-lo cair. O juiz os afastou, mas não precisou
iniciar a contagem; Peter Lee endireitou o topete no cabelo e mexeu a cabeça da
direita para a esquerda com um estalo.
— As pessoas te chamavam de Canhão
de Vidro quando começou a lutar, não é? Sabe bater, mas se apanhar, vai cair em
mil pedaços! Espere só até eu meter um soco no meio desse nariz perfeitinho.
Vou ser o primeiro a quebra-lo no meio, garoto.
— O que foi que você disse antes da
luta começar? — indagou Lee. — Ah, é. “Eu
vou matar você”, ou algo do tipo. Não pense que eu não ouvi.
Ronald Rollout ergueu os punhos e avançou mais uma vez. Lee abaixou a
guarda, estava claramente o provocando — abaixara os braços em frente ao campeão invicto
daquele ano! Quando Ronald avançou, encoberto por sua fúria, Lee recuou e acertou-lhe
na cara um chute tão forte que seu oponente saiu varrendo o chão com sangue e
suor. Ele ajoelhou-se no chão, e como se sussurrasse em seu ouvido, falou com a voz calma e tranquila:
— Você não disse que ia me matar? Onde está a sua coragem agora, seu imprestável?
Lee começou a golpeá-lo na cabeça com ferocidade, o juiz correu para impedi-lo de continuar, mas nem mesmo ele foi capaz de conter a fúria. Lee o empurrou para longe e começou a bater, bater e bater. Bateu tanto que três seguranças subiram no ringue para tirá-lo dali, e terminado seu show, ainda finalizou com um chute intenso na cara de seu adversário que praticamente estremeceu no chão, incapaz de reagir.
Agora sim, sentia-se vitorioso. Ergueu os braços e seus músculos saltaram, os flashes piscavam e o público vibrava. O juiz falava bobagens em seu ouvido de como ele poderia ser penalizado, mas nem prestou atenção no resto, pois já conseguira o que queria.
— Você não disse que ia me matar? Onde está a sua coragem agora, seu imprestável?
Lee começou a golpeá-lo na cabeça com ferocidade, o juiz correu para impedi-lo de continuar, mas nem mesmo ele foi capaz de conter a fúria. Lee o empurrou para longe e começou a bater, bater e bater. Bateu tanto que três seguranças subiram no ringue para tirá-lo dali, e terminado seu show, ainda finalizou com um chute intenso na cara de seu adversário que praticamente estremeceu no chão, incapaz de reagir.
Agora sim, sentia-se vitorioso. Ergueu os braços e seus músculos saltaram, os flashes piscavam e o público vibrava. O juiz falava bobagens em seu ouvido de como ele poderia ser penalizado, mas nem prestou atenção no resto, pois já conseguira o que queria.
Deu-se início à contagem. Dez. Nove. Oito. Sete. Seis. Cinco. Quatro. Três. Dois. Um. Viva o novo campeão!
Peter Lee ergueu os braços fortes e seus músculos saltaram, a multidão
entrou em êxtase, Wendy acabou se revelando escondida entre algumas amigas e
praticamente pulou em cima de seu herói. Ainda estava brava com ele, mas não
conseguia esconder que era apaixonada por aqueles ombros largos e o peitoral
definido do rapaz.
Peter Lee olhou para o Cinturão Púrpuro que logo lhe seria entregue.
Conquistara o título de campeão em sua região, tinha certeza que seria chamado
para o Sellureville e treinaria o dobro para se consagrar como o ser mais
poderoso dentre todas as raças, mesmo que tivesse que enfrentar monstros com
duas vezes seu tamanho.
De repente, um grito foi abafado. Dois paramédicos subiram no ringue e
foram verificar Ronald Rollout que continuava deitado, imóvel. Um deles retirou
o estetoscópio e verificou os batimentos cardíacos — nulos. A comemoração de Peter Lee fora interrompida.
Quando o outro paramédico verificou a cabeça, notou que o pescoço estava envergado
quase do avesso, quebrado. A respiração de Lee ficou mais pesada, ele olhou
para todas as direções e viu olhares de censura. Próximo à saída, Hugh Burnout
percebera que algo de muito estranho estava acontecendo.
— Vamos leva-lo ao hospital de recuperação
intensa — disse o paramédico.
No momento em que as equipes de
resgate chegaram, Lee conseguiu ouvir um deles dizer:
— Ele já está morto, não adianta.
— O que está acontecendo? — Peter
Lee disse, não escondendo uma risada abafada. — Eu nem bati tão forte, foi uma
luta como qualquer outra.
— Garoto — um dos médicos legistas
enfim levantou-se e dirigiu-se ao mais novo campeão —, é melhor você sumir
daqui agora mesmo.
Peter Lee olhou para Wendy que já
estava bem perto do ringue. Ela recuou dois passos, como se de repente estivesse
diante da maior ameaça de sua vida. A bancada foi reunida para iniciar uma
discussão sobre as possíveis punições, a plateia ainda não entendia
completamente o que estava acontecendo, e Peter Lee soube que jamais teria a
oportunidade de lutar outro torneio em sua vida. Jamais ganharia seu cinturão. Jamais
teria a chance de participar do Sellureville.
Desceu imediatamente do ringue para
conversar com o mestre de cerimônias. Muitas pessoas já se aglomeravam em volta
do estágio para alimentar sua curiosidade, Peter avistou Wendy do outro lado e
tentou alcança-la, mas ela continuava a se afastar desesperadamente.
— Wendy, espera! — gritou. — Não é
o que você está pensando!
— Saia de perto de mim! — a mulher respondeu,
empurrando as pessoas em seu caminho para sair dali o mais depressa possível. —
Você é um monstro! Não consegue perceber?
— Não me chame disso — Lee ergueu a
voz, e pareceu mais agressivo do que gostaria. — Nunca mais ouse falar assim
comigo!
— Ei, cara, deixa ela em paz! —
respondeu um sujeito que vinha chegando por trás em meio ao tumulto e nem percebeu quando o campeão acabou
por acertá-lo no rosto. Por simplesmente sentir raiva.
A bagunça tomou conta do saguão, o
mestre de cerimônia pedia calma enquanto a plateia levantava-se assustada de
seus lugares.
Wendy saiu pelos fundos por onde
somente a equipe técnica tinha acesso e Lee a seguiu. Eles estavam mais uma vez
no beco pouco movimentado onde terminaram seu namoro, a luz num dos postes continuava
piscando exatamente como naquele dia. Quando finalmente a alcançou, Wendy
reagiu de forma violenta, mas incapaz de livrar-se.
— Pare, pare! Está me machucando!
Lee percebeu que segurava o pulso dela
com tanta força que chegou a deixar uma marca vermelha. Nunca antes a agredira,
sequer levantara a mão contra uma mulher; e agora Wendy chorava de forma
alarmante como uma criança prestes a levar uma surra. O rapaz tentou abraça-la
de forma que ela continuou a bater no peito dele, sem conseguir afastar-se por
si só.
— Você é um monstro! E pensar que
um dia eu gostei de você!
— Me desculpe. Eu ainda amo você.
— Mentiroso
— ela berrou em resposta. — Você só diz isso porque precisa alimentar seu ego? Ou
por que já está com saudades de acordar ao meu lado na cama? Como você é
egoísta, Peter! Suma da minha vida, seu monstro seu coração, pois sei que você
não hesitaria em pisar sobre mim para continuar seguindo com sua vidinha
miserável rumo ao topo!
— Isso não é verdade — ele
respondeu com a voz abafada, mas não tinha forças para confrontar. — Retire já
o que disse.
— Nunca. Você é um monstro! Você
matou um homem e não sentiu nada!
— Eu não. Ele só... quebrou o pescoço
quando caiu.
— Monstro!
Lee acertou um soco na parede com
tanta força que ela se desfez, logo ao lado de onde estava a cabeça de Wendy. A
mulher conteve um grito e levou a mão à boca para conter os soluços.
— Você me mataria?
— O quê? — Lee arregalou os olhos. —
Claro que não. Não brinque com isso. Sou idiota, mas nem tanto.
Wendy parou de chorar. Ela o
encarou com a maquiagem toda borrada, e dessa vez Lee podia enxergar medo nela,
como se ele fosse a aberração e estivesse encurralando sua presa.
— Quando foi a última vez que se
olhou no espelho? — ela disse, antes de ajeitar a bolsa debaixo do braço e depois
distanciar-se até desaparecer.
Peter Lee não entendeu a pergunta a
princípio, mas virou-se para a mesma vitrine em que viu seu reflexo na última
vez em que tiveram uma briga. Por trás das marcas de expressão e das contusões,
ele prestou atenção em seus olhos, antes de um marrom escuro, e agora...
vermelhos.
— Não — sua voz chegou a vacilar. —
Não, não, não! Não
pode ser!
Lee apalpava seu próprio rosto,
prestes a arrancar os olhos fora, se pudesse.
— Não, minha nossa, não, por favor —
repetia compulsivamente. — Tudo menos isso.
— Olhos vermelhos. Eu devia ter
imaginado.
Lee virou-se no instante em que viu
Hugh Burnout parado próximo à porta, e provavelmente ele presenciara toda a
conversa mais uma vez. O velho estava com as mãos no bolso e caminhava
tranquilamente com seu jeitão despojado de quem não liga muito para o que os
outros dizem dele. Hugh ajeitou o casaco e foi ao lado de seu pupilo, examinando
o que havia de errado com ele.
— A maldição dos olhos vermelhos — presumiu Hugh. — Você é um deles agora.
— Isso não é possível, o que eu fiz
de tão errado? — praguejou Lee, prestes a chorar, mesmo com todo seu tamanho. —
Eu não sou tão terrível quanto pareço, foi só um acidente!
— O olho vermelho é uma marca dos desconcertados e
cruéis. São capazes de todas as atrocidades imagináveis, não percebeu se nos
últimos tempos você tem despertado um instinto agressivo; tornando-se
sanguinário e violento, muitas vezes só por prazer?
— Nunca!
— Eu
acredito que isto seja uma consequência de seus tempos no exército. Por mais
que você nunca tenha matado alguém, até hoje, há quem desperte tal maldição por
simplesmente desejar o mal. Você esteve muito tempo em contato com energias
negativas. A maldição escolhe.
Lee voltou a encarar-se na vitrine que deformava sua
face. Olhou para suas próprias mãos e viu que elas ainda estavam manchadas com
o sangue de Ronald Rollout. Quase fizera o mesmo com Wendy, e não poderia
suportar o peso de que um dia ferira a mulher que amava.
— Mestre
— ele falou com a voz fraca, e Hugh sorriu ao ser chamado assim depois de tanto
tempo. — O que eu faço agora?
Hugh
retirou sua boina e encarou o céu nublado.
— Filho,
posso me gabar por ser um homem vivido e cheio de experiência nessa vida... Mas,
pela primeira vez, tenho de admitir que eu não sei.
Lee caiu
de joelhos no chão, fechando os punhos com força e começando a socar o asfalto até
que abrisse um buraco nele. Seus punhos nus eram cobertos do vermelho que
espirrava tamanha a força que era usada, Hugh continuava a observá-lo,
pensativo e sem palavras de conforto conforme as lágrimas de seu discípulo
escorriam pelos mesmos olhos que o condenavam a uma vida longa e dolorosa.


































