Capítulo 19.5 - Proteja-me [Cenas Deletadas]
Onde a cena se encaixava?
Entre os Capítulos 19 e 20, o grupo tirou um tempo para descansar na cidade de Bausonne fazendo os preparativos para seguirem em jornada. Este era para ter sido o fechamento do arco da busca pelas Pérolas Sagradas antes dos personagens partirem pra a Ilha-S.
Sobre o que falava?
Após a captura de Tootie, conhecemos uma nova antagonista que atende pelo nome de Mysteria e que sente um tremendo ódio de todas as maldades cometidas contra sua raça no Reino de Sellure. Este capítulo explorava as consequências da morte do irmão de Lesten em sua vida, o arrependimento de Bill e a relação de obediência de Tootie em busca de uma mestra.
Qual o motivo de ter sido excluído do livro?
Combinadas a Parte 1 e 2 totalizavam quase 8000 palavras, um corte necessário para a versão final do livro. O feedback para essas duas partes foi extremamente precário e o arco foi considerado um filler.
Proteja-me (Parte 2)
As Histórias Perdidas - Cenas Deletadas
Estava sozinha, mas já se acostumara àquela sensação
desde que era criança. Vivia largada pelas ruas de Bausonne, invisível aos
olhos dos transeuntes, o máximo que conseguia arrancar eram suspiros e olhares
de pena, mas ninguém nunca se importara de verdade a ponto de ajudar. Para todas
as direções que olhasse só via seu reflexo — alguns distorcidos, outros tão perfeitos
que pareciam ser reais —, Tootie esticou o braço e, para surpresa,
uma mulher projetou-se em sua frente. As duas eram tão parecidas que poderiam
ser confundidas com mãe e filha, mas talvez a figura não passasse de uma
idealização de como Tootie queria ser quando crescesse: corpo voluptuoso, longos
cabelos negros, adereços e joias que a fazia assemelhar-se a uma rainha. Um
sorriso esperançoso formou-se entre seus lábios de menina.
— Senhorita Cléo, é você mesmo? — perguntou Tootie. —
Você voltou para mim?
— Claro que
não, bobinha — respondeu a voz. — Ninguém deseja você por perto, não consegue
enxergar? Você é uma criaturinha deprimente que segue qualquer um que te dê um
pouco de carinho como um animalzinho sem dono. Não é a toa que eu a deixei para
morrer sozinha. E quer saber de uma coisa? Eu não suportava mais estar perto de você. Espero que o mundo esqueça
sua existência.
Tootie despertou ofegante, tentou livrar-se desesperadamente
daqueles pensamentos até concluir que estava em um local desconhecido, uma sala
úmida de piso frio e paredes estreitas. Pelo barulho vindo do outro lado da
parede, a chuva parecia engrossas anunciando a chegada de uma tempestade iminente.
Ainda não tinha pistas de onde estava, talvez um depósito? Juntou as duas mãos
e tentou reunir um pouco de areia caso estivesse perto da praia, mas não havia
o suficiente nem para ativar a parte mais remota de seus poderes através da
mana.
Ouviu-se o barulho de um portão de ferro sendo
aberto. Tootie não conseguia enxergar direito na penumbra, mas pôde reconhecer
um vulto que caminhava em sua direção, apoiando-se sobre um dos joelhos para
encarar mais de perto a garotinha suja e indefesa largada no chão de pedra.
— Você sabe por que está aqui?
Tootie mordeu um dos lábios, mas não respondeu. Sua
anfitriã parecia ser amigável, mas com certeza não tinha boas intenções por trancafiá-la
em um cárcere como se fosse algum espécime raro.
— Eu preciso descobrir uma coisa. Se me permite...
A figura em sua frente tocou na alça de seu vestido,
o que fez Tootie recuar corada. passara por aquilo antes. Começou a se debater
assustada, mas suas costas ficaram expostas por breves que permitiram que sua
captora visse o que procurava: uma tatuagem misteriosa próxima à asa esquerda
com formato circular. A mulher levantou-se, satisfeita com seus resultados.
— É o que eu imaginava. Então você também foi uma
das experiências.
Tootie precisou conter o choro, estava assustada e
aflita. Se houve uma época de sua vida em que mais sentira medo, então aquela
tatuagem era responsável por trazer de volta suas piores lembranças, uma
cicatriz presa ao seu corpo para que nunca esquecesse.
Tomada por uma onda de ternura, a mulher de manto
ajoelhou-se ao lado de Tootie e a envolveu com os dois braços num sinal de
compaixão.
— Calma, não precisa ficar com medo. — A mulher
revelou próximo ao seu abdômen uma cicatriz
semelhante. — Está vendo? Eu sou como você. Eu também fui uma experiência.
Tootie limpou os olhos, mas mal conseguia organizar
as palavras.
— Por que você me trouxe para cá? Eu não quero estar
aqui — lamentou a menina.
— Desculpe-me, mas eu imaginei que você poderia
reagir mal caso eu mantivesse uma aproximação mais casual. Não era minha
intenção desestabilizá-la assim — disse a mulher. — Pode me chamar de Mysteria.
Eu sou uma tótines, como você.
— O que... quer de mim? — Tootie ainda sentia sua
cabeça latejar e não entendia exatamente como havia ido parar ali. Mysteria
sorriu involuntariamente e segurou na mão da garota, seus dedos se entrelaçaram
como se uma ligação muito forte as envolvesse.
— Nós sofremos muito no passado, não é? Isso nos faz
iguais. Acha que poderíamos ser amigas?
Aquela frase de Mysteria parecia ter sido dita pela
própria mulher que considerara sua única mãe, a Srta. Cleópatra. Por
incontáveis anos, Tootie procurara uma figura materna que a acolhesse, sentia a
necessidade de ser protegida.
A conversa foi interrompida quando o portão voltou a
ser aberto e duas pessoas entraram na cela às pressas, atravessando o corredor
para a enfermaria. Um deles berrava de dor por conta de seu braço ensanguentado
devido a mordidas que se assemelhavam as de um tubarão. Um terceiro homem
aproximou-se trazendo a seguinte mensagem:
— Senhorita Mysteria, nós pegamos um deles!
— Tragam-no agora mesmo — ordenou.
Foram necessários quatro monstros para arrastarem
ainda que com dificuldade o gecko que se debatia ferozmente. Lesten tinha as
mãos e os pés acorrentados e portava uma focinheira, ele se contorcia com a
força de um crocodilo selvagem e nem mesmo quatro criaturas com o dobro de seu
tamanho conseguiam contê-lo. Tootie assustou-se ao ver seu amigo naquela
situação e rogou para que o soltassem.
— Por favor, parem com isso! Ele está sofrendo!
— Não se preocupe, não é minha intenção tirar a vida
de ninguém — confirmou Mysteria. — Só pensei em trazê-lo porque assim seria
mais fácil para você nos entregar a Pérola Sagrada que você protege, guardiã.
— Do que está falando? Eu nem a tenho mais! — Tootie
desesperou-se.
Mysteria sofreu uma súbita mudança de comportamento
e puxou a menina pelo cabelo.
— Como assim? O que você fez com a droga da pérola,
sua merdinha?
Tootie assustou-se com tamanha agressividade, sentiu
a peruca ser arrancada de sua cabeça, depois caiu de joelhos no chão e
encolheu-se para que não fosse mais abusada. Mysteria procurou respirar fundo e
manter a compostura, havia uma lacuna em seu plano que precisava ser
contornada.
— Estávamos tão perto de encontrar... conte-me o que
fez com aquele artefato, menina.
— E-eu não a tenho mais... Nunca sequer soube o que
as pérolas fazem, mas por favor, deixem o meu amigo em paz... — rogou Tootie.
Mysteria ordenou que seus homens soltassem Lesten que
caiu no chão como um saco de areia, incapaz de mover-se. Ela fitou Tootie em
toda sua agonia e dessa vez não sentiu pena.
— Vocês, da tão estimada Ordem do Selamento,
realmente não fazem ideia do quão importante era sua função... É decadente ver
como tratam um tesouro imensurável, eu teria desempenhado o mesmo papel com
muito mais eficiência — disse Mysteria em seu monólogo, pois suas visitas não
estavam em condições de ouvir. — Vocês devem estar se perguntando por que estou
aqui. Bem, vocês não eram os únicos a tentarem reunir esses artefatos, é
verdade mesmo que eles realizam desejos?
Lesten grunhiu alto, mas era impossível entender o
que ele tinha a dizer.
Mysteria caminhou em direção do lagarto,
observando-o com atenção por debaixo de seu manto. Seus olhos de ametista
enfeitiçavam os de coração fraco, mas não ele. As pupilas do gecko estavam
dilatadas, sua íris biconvexa chamuscava como as de um dragão e por uma fração
de segundos foi ela quem se encantou.
— Você daria um excelente serviçal. Por que não se
junta à minha causa? Quando eu tiver meus desejos realizados, eu farei de você
o meu criado mais fiel. O mundo cairá de joelhos aos seus pés.
Um descuido foi o que bastou para que Lesten puxasse
as duas correntes que prendiam seus braços e derrubar os homens que o prendiam.
Por ser ágil, ninguém conseguiu apanhá-lo enquanto se esgueirava pelas paredes
e preparava o ataque. Com um salto veloz, avançou contra Mysteria mesmo
desarmado, ainda tinha a força para arrancar a pele do rosto dela com as
próprias garras, mas colidiu com uma barreira mágica criada de última hora e
foi direto ao chão.
— Geckos são mesmo desprezíveis. Impossível fazê-los
mudar de ideia ou trair seus ideais. No mundo novo que pretendo criar, não
servirão nem para ingerir o lixo que gerarmos — disse Mysteria com a voz
carregada de malícia, pisando na cabeça do lagarto com seu sapato diversas
vezes até ver o sangue verde jorrar.
Lesten não conseguia mover-se, uma força invisível o
imobilizava paralisando apenas seus músculos e obrigando sua mente a continuar
funcionando.
— Sua verdadeira punição começa em breve, lagarto —
ordenou Mysteria. — Sumam com o corpo mais tarde.
— Não! —
gritou Tootie. — Por favor, ele é meu amigo! Leve-me em seu lugar!
Mysteria devolveu-lhe um olhar repleto de
significados.
— Acho que encontrei um novo uso para você,
garotinha. Por que não tentava me fazer mudar de ideia?
Tootie aproximou-se da mulher e ajoelhou em sua
frente, oferecendo-se para cumprir toda e qualquer tarefa que lhe designassem.
Lesten era obrigado a ver tudo sem se mexer, queria ajudá-la, mas não conseguia
salvar nem a si mesmo. Os homens que o capturaram começaram a chutá-lo no
rosto, no abdômen, em todos os lugares que lhe causassem dor. Lesten grunhiu e
se envergou como um animal abatido, arrependido de não ter treinado mais, de
ter saído naquela viagem, de ter sido incapaz de proteger as pessoas que
confiaram nele.
Tudo escureceu. Uma alucinação tomou conta de sua
mente, levando suas dores para outra realidade. Lesten estava agachado com as
mãos na cabeça, temia que os valentões voltassem para roubar sua comida no
intervalo, mas concluiu que na verdade era ele quem fazia essas coisas. Quando
abriu os olhos, pensou ter se visto num espelho.
Ei, irmão,
disse o reflexo. Lembra-se de mim? Você
me deixou para morrer.
— É mentira — Lesten murmurou, fechando os olhos e
esperando a hora em que despertasse daquele pesadelo. Seria melhor continuar no
escuro a ter de encarar aquelas lembranças mais uma vez. — Eu tentei. Eu fiz de
tudo.
Você fez tudo
errado, Lesten, como sempre. Como consegue ser tão imprestável? Que péssimo
irmão eu fui arranjar, é por isso que ninguém gosta de você, nem aqueles que
você considera seus amigos, nem a sua própria família. E eu nunca vou te
perdoar por isso. Nunca.
i
Não poderia descansar enquanto todos seus amigos
estivessem em segurança. Bausonne estava deserta, os habitantes locais se
escondiam da tempestade dentro de suas casas, pois sabiam que não poderiam
enfrentar a mãe natureza em sua fúria. Os pingos desciam como canivetes, as
embarcações do cais dançavam conforme o ritmo das águas turbulentas, o vento
envergava as árvores e o mar invadia a cidade com ondas de até cinco metros. As
tempestades em Century eram súbitas e imprevisíveis, mas não havia a opção de
esperá-la passar, o resgate era urgente.
— Quais as ordens? — perguntou Auria com prontidão.
— Eu tenho um plano — falou Ralph. — Vocês duas
acham que conseguem dar conta da porta de entrada?
— Eu adoro receber visitas — respondeu Elma.
Facade informou-lhes a direção do cais ao leste da
cidade. Havia suspeitas do envolvimento de piratas há pelo menos um ano, mas
ninguém tinha o interesse de comprovar. O local era utilizado para transporte
de mercadorias para a Ilha-S, alimentando uma guerra civil que vinha ganhando
força na região. Independente de quais fossem suas atividades por debaixo dos
panos, estava na hora de interrompê-las.
Antes que começassem a busca, Ralph deu-se conta de que
uma sombra esguia o acompanhava.
— Não pense que estou fazendo isso por vocês ou
essas pérolas idiotas — falou Bill.
— Você deveria desculpar-se com ela, e não comigo —
Ralph retrucou, pois não descansaria até que Tootie estivesse segura no Castelo
da Fachada.
A função de Auria e Elma era chamar a atenção na
entrada para que Ralph e Bill tivessem passagem livre rumo ao esconderijo
inimigo pelos fundos. Havia um soldado trajado em armadura que fazia a
vigilância, escondendo-se debaixo de um container
para não ser pego pela chuva. As duas se aproximaram como quem busca abrigo,
Auria envolvia seus braços em sinal de frio e Elma também estava toda
descabelada.
— Ah, que bom que encontramos esse lugarzinho para
nos escondermos! — disse Auria, como se encenasse uma peça. — Espero que essa
chuva passe logo.
— Desculpe-me, senhoritas, mas vocês não podem ficar
aqui — disse o soldado. — Esta é uma zona privada, sou pago para manter todos
longe.
— Vai mesmo dispensar duas lindas moças nessa
tempestade? — indagou Elma, lançando uma piscadela. — Vamos lá, querido, é só
por alguns minutos.
O soldado ameaçou pegar sua lança e Elma não esperou
para acertar-lhe um soco na garganta, fazendo-o cair ofegante no chão. Ela
entendia de armaduras, sabia bem onde não recebiam defesa apropriada. Outros
três homens ouviram o barulho e deixaram suas posições no interior da
construção, Auria levou a mão até sua bainha e esqueceu-se completamente de que
não tinha mais Melodia para defender-se e, para piorar, também estava sem sua
jaqueta, uma vez que Elma estava trabalhando em melhorias para ela.
— Acho que nós deveríamos ter nos preparado melhor —
disse Auria.
— Querida, toda mulher sempre sai de casa prevenida.
Elma movimentou seu indicador e diversas peças de
armadura começaram a se deslocar, alocando-se no corpo de Auria com proteção
reforçada, desde as manoplas, ombreiras e o peitoral de aço até um elmo feito
sob sua medida. Era como controlar uma máquina indestrutível, nada a atingiria
enquanto estivesse ali dentro, espadas não causavam mais do que arranhões e
flechas eram repelidas como as picadas de um inseto. Estava imbatível. Enquanto
sua verdadeira armadura não ficasse pronta, teria emprestado alguns dos
equipamentos de Elma para transformá-la em uma guerreira de verdade.
Auria olhou para trás no aguardo de uma confirmação
e a artesã fez um cumprimento com a cabeça.
— Vai em frente, gata. Arrasa.
Do outro lado, Ralph esgueirava-se pelas passagens
estreitas dos esgotos de Bausonne enquanto Bill andava mais a frente, pois
conhecia bem aquelas rotas. Nenhum deles dizia nada, estavam preocupados demais
com seus amigos para discutirem. Muita água suja escorria pelos canos a ponto
de cobrir seus joelhos, as paredes eram escorregadias e era preciso apoiar-se
nelas para não cair devido a força da enxurrada.
Uma escada enferrujada quase oculta atrás de um cano
foi usada para atingir a superfície, a água aumentava de nível
consideravelmente, precisavam ser rápidos. Após se livrarem dos corredores
fétidos, uma bifurcação formou-se entre portas e paredes de concreto. O barulho
do vento lá fora era quase inaudível, por um instante só ouviam a respiração um
do outro ficando cada vez mais densa.
— Você não é o único que quer ser herói nessa
história, garoto — Bill disse de repente, indo pelo lado esquerdo e esperando
que não fosse seguido. — Vá salvar o lagarto, que eu salvo a Tootie.
— Nós estamos aqui como uma equipe, você não vai
resolver nada sozinho.
Bill virou-se para ele, seus olhos cinzentos como
chumbo escondidos por debaixo de panos. Estava claro que ele não mudaria de
ideia.
— Deixe-me consertar meus próprios erros.
Ralph admitiu que aquele era um pensamento nobre,
por isso concordou em ir atrás de Lesten sozinho. O gatuno seguiu o caminho
oposto que percorria corredores largos e vazios, mas todo cuidado era pouco.
Começou a planejar seu ataque surpresa, por isso deixou os esgotos em direção
de uma tubulação de ar. Após alguns minutos arrastando-se debruçado, pôde enxergar
Tootie virada de costas ao lado de uma figura misteriosa sentada sobre uma
cadeira, oculta por seu manto.
Desceu do teto com a faca em mãos. Estava para
atingi-la pelas costas quando deu de cara com uma parede invisível e percebeu
que fora pego em uma armadilha.
— Tootie! Princesa! — Bill gritava do outro lado,
batendo com as duas mãos contra a barreira que não parecia ceder.
A mulher de manto virou-se para ele com um semblante
comovente, mas seu sorriso transformou-se em uma risada sarcástica que caçoava
de suas atitudes precipitadas.
— Estou tão feliz por você, querida, você fez tantos
amigos! Conte-me, quem é este garoto? Ele também é uma experiência? Ele está em
posse de uma das Pérolas Sagradas?
— O que você está fazendo ao lado dela? Fuja daí! —
gritou Bill.
— Não posso. Eu me preocupo demais com vocês — falou
Tootie, a expressão estática. — Por favor, vá embora. Não se preocupe, estarei
em segurança ao lado da Srta. Mysteria.
— Sou eu quem deveria protegê-la!
— Coisa que você não foi capaz — respondeu Mysteria,
compreensiva. — Então, você realmente é um dos guardiões da Ordem. Céus, mais
parecem um bando de crianças brincando de esconde-esconde. Onde está a sua
marca? Talvez eu deva agradecê-lo, porque foi graças a sua informação que descobri
que as Pérolas Sagradas estavam nos arredores. Oito anos, vocês se mantiveram
escondidos por oito anos... Os tótines deveriam manter-se unidos, somos
melhores que essas raças inferiores e imperfeitas.
— Eu também sou um tótines e mesmo assim não saio
por aí falando mal dos outros — argumentou Bill. — Pelo menos, não tanto... aprendi
a conviver com isso. Sei que sofremos muito naqueles tempos horríveis, mas não
dá para colocar culpa em toda uma nação. Que a história não volte a se repetir.
— Ora, meu pequeno ladrãozinho... Por que não
fazemos um novo acordo? Dê-me as Pérolas Sagradas que liberto sua amiga.
— Se eu conseguisse reunir todas, com certeza não daria
para você — retrucou Bill.
— Oh, é claro que não. Você jamais as reuniria
porque não é forte o bastante.
Mysteria voltou-se para Tootie e segurou a mão dela,
chegando bem perto do rosto da menina e mordiscando sua orelha enquanto lançava
um olhar provocativo para o outro lado da barreira invisível.
— Eu adorei o presente. Obrigada por trazê-la até
mim.
Bill fechou o punho e gritou com ainda mais força. Atirou
uma bomba de fumaça e desapareceu, deixando-as sozinhas. Mysteria balançou a
cabeça com pesar e falou para sua criada:
— Está vendo? Nunca se esqueça daqueles que
realmente querem seu bem. Amigos cuidam e protegem, essa gente toda não passa de interesseiros no que você tem a oferecer, por isso os tótines estão melhores
sozinhos.
ii
Ralph continuava sua busca pelos corredores quando
alcançou um depósito de mercadorias pirata. Havia mantimentos para alimentar um
batalhão além de armas e equipamentos que ele nunca vira antes. O jovem notou
que o chão estava estranhamente escorregadio, o que o levava a crer que: a)
eles tinham um bom faxineiro, b) não deveria estar pisando ali, ou c) algo
devia ter sido limpo há pouco tempo. Ralph seguiu até uma sala sem iluminação
onde jogavam os resíduos e encontrou sangue verde entre as frestas do piso de
concreto. Dentro de uma lata de lixo, seu amigo lagarto estava praticamente
desacordado, lutando para continuar respirando.
— Lesten! Vamos lá, campeão, aguente firme!
Ralph o retirou dali, colocando-o no chão com dificuldade.
Chamava seu nome e tentava mantê-lo acordado até que recebeu o primeiro sinal
de sensatez.
— E-eu não consegui proteger a Chanel... — o lagarto
murmurou arrasado, preferindo ficar de olhos fechados a encarar a realidade. —
Eu não consigo proteger ninguém... Por quê? Por que eu sou um fudido
imprestável?
— Não diga bobagens — Ralph tentou apoiá-lo em seu
ombro, mas Lesten não cooperava, preferia continuar estirado no chão feito o
lixo que era. O rapaz sentou-se ao lado do amigo arfando de cansaço, mas estava
longe de desistir. — Você é o gecko mais maneiro que eu conheço, não tem
problema cometer alguns deslizes vez ou outra... nós gostamos de você
exatamente do jeito que é.
— Eu não quero que as pessoas gostem de mim.
Os dois se entreolharam. Um turbilhão de pensamentos
percorreu a mente do garoto, mas ele os resumiu em poucas palavras:
— Tudo bem. Você ainda é meu melhor amigo.
Ralph o ergueu mais uma vez, mas quando o colocou de
pé Lesten perdeu o equilíbrio e os dois foram direto ao chão. O garoto tentava
arrastá-lo e praticamente rogava para que tivesse forças para seguir em frente mais
uma vez.
— Vamos lá, amigão... Se não quiser fazer por você,
faça por seus amigos!
Sua mente não estava em seu melhor estado. Estava
machucado e ferido, mas nada se comparava ao que aquela mulher fizera dentro de
sua cabeça. Era cruel trazer de volta lembranças que não deveriam ser retiradas
do escuro, muitas noites não conseguira dormir por causa das consequências da
guerra até que concluiu que nunca mais viveria sem ela. A culpa estava
impregnada em cada canto de sua memória, a responsabilidade não cumprida, o
arrependimento.
— Você não sabe a minha história — Lesten murmurou
baixinho, mas quando o puxou para mais perto ergueu a voz e gritou o mais alto
que pôde. — Tá vendo essa
cicatriz? É pra eu me olhar no espelho todos os dias e nunca me esquecer do que
eu fiz de errado, todos nós temos arrependimentos e não há nada que possamos
fazer para mudar essa realidade!
— Pare de dizer bobagens!
— Pare você
de se importar comigo! Pare de tentar ser
meu amigo!
Ralph o socou. Sua mão tremia. Lesten piscou com os
olhos arregalados, pois esperava aquilo de qualquer um, menos dele.
— Cala a boca. — O garoto respirava com dificuldade.
O soco doera mais nele. — Cala a boca. Estou cansado de socar os meus amigos
hoje, mas vocês estão merecendo. Eu preciso que você seja forte agora, por
aqueles que ainda confiam ou já confiaram em nós. Não podemos decepcioná-los.
Lesten não sentia vontade de rir e nem chorar, mas
compreendeu a mensagem, revelando um sorriso torto e com dentes quebrados que
pelo menos eram substituídos bem rápido nos geckos.
Alguém precisava dele — seus amigos precisavam do velho Lesten de volta.
— É a primeira vez que te vejo tão bravo
— É, eu sei. Não conta pra ninguém, mas às vezes
acontece.
Lesten apoiava-se num dos ombros de seu amigo quando
eles saíam da sala. Ao passarem pelo depósito de armamentos, várias lanças
estavam alocadas na parede, mas uma em especial era marcada por uma fita
vermelha surrada na ponta.
— Ali... eu preciso dela.
Assim como Lignum era especial, era nítido que
aquela lança tinha algum valor sentimental. Lesten prendeu a fita vermelha com
mais força e respirou fundo.
— E aí, irmão... Pronto para mais uma luta?
Através de seu olfato, Lesten pôde situar-se pelo
cheiro salgado do mar até encontrar a saída. A chuva continuava intensa, o
rapaz deixou-o confortável sobre um caixote e brandiu Lignum, indicando que
continuaria sua busca.
— O Bill e a Tootie ainda não voltaram. Preciso
encontrá-los.
— Ruivo, toma cuidado com essa mulher... A magia
dela atinge a sua mente, eu nunca vi nada parecido...
Ralph agradeceu o conselho e seguiu com pressa pelos
corredores. Mysteria o aguardava em sua sala no centro do depósito, mas não havia sinal de Tootie.
— Vejam só,
trouxeram um preá para brincar comigo.
— Eu nem sei o que
é um preá, mas deve ser um bicho bacana. Eu sou o Ralph, da Espada de Madeira.
A mulher teve que
rir do comentário, mas logo se recompôs.
— Você é tão adorável. Eu adoraria tê-lo como meu bobo da corte, você me faria rir todos os
dias.
Ralph retirou uma
sacola de sua mochila e a atirou no chão. Mysteria o encarou pasma, pois não
estava esperando que realmente fosse conseguir o que buscava de maneira tão simples.
— Você só pode
estar brincando.
— Só temos três até
agora — Ralph explicou. — Não precisa conferir, estão todas aí. Você sequestrou
a nossa amiga, esse é o pagamento para tê-la de volta.
Mysteria caminhou
até a sacola e a abriu apreensiva, as pérolas realmente estavam ali. Olhou bem
para Ralph e não compreendeu sua atitude. Quem era ele, e o que buscava? Se
queria tanto assim resgatar seus amigos, seria mesmo capaz de sacrificar seus
maiores sonhos em prol deles?
— Eu sempre pensei
que esse mundo estivesse apodrecido — perguntou Mysteria. —
Você se lembra dos tempos em que as pessoas ainda eram boas? Os cavaleiros
tinham honra. As promessas eram cumpridas, e os votos jamais se rompiam. Cada
dia que passa eu sinto que estamos mergulhando em um abismo de maldade
irrecuperável, e nesse exato momento, diante de um gesto de bondade,
fico sem palavras.
— Eu entendo — respondeu Ralph. — Entendo de
verdade. Nós dois estamos tentando lutar por um mundo melhor, deveríamos unir
nossas forças.
— Isso será impossível — corrigiu Mysteria. — Eu tenho certeza que existe
maldade em você, assim como ela também habita em mim. Ninguém é inocente
nessa história, em algum momento você será corrompido pela vida, parecemos
limpos por fora, mas estamos podres por dentro. Meu plano era utilizar os
poderes do Mago para restaurar a ordem, livrar-me somente daqueles que fossem
ruins, mas aí ninguém teria salvação — Mysteria esticou os braços e de suas
mãos uma energia transparente materializou-se como se fossem estrelas
pontiagudas — Acho que seria melhor se o sol simplesmente explodisse logo e todos
morressem ao mesmo tempo. É, este seria um bom desejo.
Com sua espada de
madeira, Ralph avançou contra Mysteria e esquivou-se dos projéteis. A
feiticeira gerou uma barreira mágica na tentativa de prendê-lo, ele mergulhou
Lignum e estilhaçou a parede como se fosse feita de vidro. A mulher assustou-se
com as lascas e tropeçou, indo direto ao chão.
— C-como ele
consegue destruir meus feitiços invisíveis? — Mysteria bradou, pasma.
— Essa é a
anti-matéria — Ralph apresentou sua espada mágica. — Em uma luta de ferro
contra ferro, eu não poderia machucar ninguém. Ela acerta diretamente na
energia espiritual do indivíduo, esse é o verdadeiro poder da Lignum.
Num ato de
desespero, Mysteria fez uso de seus poderes mais obscuros. Ela criou um espelho
na mente do garoto, confundindo lembranças e as tornando um tormento. Esticou
a mão na direção do rapaz num gesto teatral, mas Ralph continuou parado — como uma
criança entusiasmada espera a apresentação final — mas nada acontecia.
— E-eu não entendo. Meus poderes não funcionam com
você.
— Ah, então você
estava tentando atingir a minha mente — Ralph concluiu. — Que maneiro.
— Parece que suas
lembranças não são afetadas.
— Não mesmo. E você
nem vai conseguir.
— Por quê?
— Sei lá. Porque eu
não quero
Ralph colocou a
ponta de sua espada na garganta da mulher e Mysteria riu da cena.
— Uma espada
mágica, imune a magias da mente... você é mesmo intrigante, pergunto-me até se
não descende da raça dos tótines, pois você é certamente especial.
— Eu sou apenas um
garoto comum da zona rural de Helvetica.
— E agora? — perguntou Mysteria em tom desafiador. — Vai bater em uma mulher
com essa espada de madeira?
Para sua surpresa, um golpe foi desferido com força
contra sua nuca. Bill fizera o favor de apaga-la por alguns instantes, estava
acostumado a tal tarefa. Ele pegou de volta a sacola contendo as três pérolas e
a arremessou para Ralph. Não iria mais envolver-se com aqueles artefatos, Tootie
estava ao seu lado, e aquilo era tudo que importava.
— Acho que posso te
perdoar agora — disse Ralph.
— Meu ego é inflado
demais para agradecer — respondeu Bill, voltando-se para Tootie. — Mas quanto a
você, minhas eternas desculpas! Eu prometi que nunca a deixaria, pode ter
certeza que irei recompensá-la pelo resto da minha vida!
— Não tem problema —
disse Tootie, exausta e abalada depois de um dia tão conturbada. — Eu sabia que
vocês viriam... e devo ser idiota por isso, mas confiar em vocês é a única
escolha que tenho.
— Ouch, isso doeu — falou Bill. — Não voltarei a repetir o mesmo erro...
Bill e Tootie deixaram o depósito, mas quando Ralph
estava para sair, viu que Mysteria levantava-se. A mulher retirou o manto do
rosto e seus cabelos púrpuros caíram sobre seu rosto.
— Garoto, posso
fazer uma única pergunta?
— À vontade, dona.
— Você acha que
está fazendo a coisa certa?
— O que é certo
para você às vezes é errado para o outro, por mais óbvio que pareça — respondeu
Ralph, erguendo os ombros. — Eu acredito sinceramente que seus ideais eram
nobres, mas não vamos generalizar, todos merecem uma segunda chance.
Ralph esticou a mão
em sua direção para ajudá-la a levantar-se, mas Mysteria recusou o gesto.
— Faça bom uso de
seu desejo, moleque, porque no fim dessa história você também não passará de um
bobo da corte de um espetáculo que não esperava fazer parte.
— Eu não pretendo realizar nenhum pedido meu, se
quiser saber. No fim das contas, se o Mago realmente realiza desejos ou não,
não importa. Todos nós devemos lutar por um mundo melhor, todos os dias, e se
não fizermos nada, não são pérolas ou
magia que fará. Você pode sentar, reclamar e colocar a culpa nos outros o
quanto quiser, mas pelo menos eu estarei fazendo a minha parte. E você?
O jovem acenou para ela com a mão e deixou a
construção, indo para o encontro de seus amigos. A chuva foi passageira, e
apesar do estrago deixado em Bausonne o litoral foi tomado por uma calmaria
como nunca antes vista quando a tempestade cessou. Gaivotas já planavam pelo
céu livre de nuvens, nenhuma onda perturbava a costa e seus amigos estavam
sentados entre os escombros conversando como se acabassem de sair de uma festa.
— Nossa, lagartixa,
parece que você foi atropelado duas vezes e depois ainda passaram por cima para
ter certeza de que estava morto — falou Auria.
— Essa é a minha
cara mesmo, tu já devia estar acostumada — respondeu Lesten, sem ideias para
retrucar na mesma moeda. A guerreira o envolveu num dos braços e lhe deu alguns
cascudos, escondendo toda a preocupação e angústia que sentira em sua ausência.
— Sem você minha
vida perde a graça, sabia?
Lesten deu um sorriso torto, cheio de si. Foi então
que reparou Tootie, olhando-o envergonhada. Devia estar esperando algum tipo de
punição por ter sido desatenta e acabado desencadeando todo aquele conflito.
— Ei, Chanel. — Para
sua surpresa, Lesten revelou o pequeno ursinho de Dinorros com a cabeça
rasgada. — Eu encontrei perdido
enquanto tentava te achar, mas acabei estragando no caminho, pra variar.
— V-você guardou —
a garota pegou o ursinho no colo, seus olhos quase se encheram de lágrimas ao
lembrar-se que por pouco não o perdera para sempre. — Nunca mais vou
abandoná-lo. Obrigada, senhor lagarto! Obrigada a todos vocês!
Pela primeira vez,
todos souberam lutar e defender o próximo. Não importava quais desafios
surgissem, estariam prontos para enfrentá-los.
Ralph deitou-se na
areia da praia esticando as pernas, cercado de entulhos, amontoados de lixo e
dois ou três peixes mortos.
— Que dia, hein —
disse o garoto com um sorriso no rosto.
Lesten só pôde
confirmar com a cabeça, suspirando aliviado.
— Que dia.
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