segunda-feira, 2 de dezembro de 2019

O Passado da Ordem - Promessas (Parte 5)

Promessas
- Aedan -

Passava das três e quarenta da manhã quando Aedan finalmente conseguiu encontrar a passagem que levava até a Rua Pequena Brasa Nº 17, levou a mão ao bolso e localizou a chave da porta, mas por algum motivo a fechadura parecia menor do que o costume. Sua cabeça latejava e só conseguia pensar em despencar na cama de seu quarto, estava com uma tremenda azia devido à má alimentação — e, para piorar a combinação, uma noite inteira de bebedeira. A inauguração da danceteria Vulcão Vermelho só terminaria às sete da manhã, mas ele já estava em seu limite. Toda semana era a mesma coisa, de segunda a quinta estaria um lixo, embora sete dias fossem o suficiente para recuperar a disposição e poder sair de novo para se embebedar com os amigos. Que noite.
Uma luz solitária permanecia acesa na varanda dominada pela névoa da manhã. Uma culpa repentina o assolou — sua mãe sempre deixava a lâmpada acesa até que o filho estivesse seguro dentro de casa. Usou o peso do corpo para empurrar a porta, mas seu mundo começou a girar e a música ainda latejava em sua cabeça, por isso precisou apoiar-se no balcão da cozinha. Seu estômago revirou e acabou vomitando no carpete.
Aedan limpou a boca com a manga da camisa. Algo atraiu sua atenção para a sala escura. Um abajur de cerâmica iluminava o rosto de uma mulher de cabelos ondulados azuis que o observava com ares de reprovação. Isadora, sua mãe, não precisou dizer uma palavra sequer. Somente com o olhar ela conseguia transmitir um universo de palavras.
— Eu vou limpar — afirmou Aedan em voz alta, apesar de saber que não estava em condições.
— Fale baixo — ela o repreendeu. — Sua irmã está dormindo.
Aedan cambaleou até o sofá ao lado da mãe que repousava com seu roupão de dormir e pantufas. Nos seus braços estava uma criança de apenas dois anos que dormia tranquila, rodeada por tantos cobertores que mais parecia um casulo. Ela tinha os cabelos azuis como os de Isadora.
— Ela é muito parecida com você — murmurou Aedan.
— Graças a Araya não puxou seu pai — respondeu Isadora com um sorriso sincero. — Eu não aguentaria três tótines de fogo com o temperamento explosivo nessa casa. Por que não vai dormir, querido? Amanhã é um novo dia, você vai se sentir melhor.
— Você não está furiosa por eu ter voltado tarde e bêbado outra vez? — indagou o rapaz com desconfiança, como se estivesse apenas esperando o momento em que fosse desafiado.
Isadora sorriu de maneira doce, mas com indulgência.
— Aedan, você já tem dezenove anos e sabe o que é melhor para a sua vida. Saiba que estarei sempre aqui para aconselhar, mas a decisão final é somente sua.
Aedan nunca dissera aquilo em voz alta, mas amava e respeitava sua mãe mais do que tudo. Ela era como uma figura sagrada em sua casa, um porto seguro; se pudesse descrevê-la, diria que seus cabelos eram como as ondas do oceano e seu rosto era a névoa em um dia frio de inverno. Ela era os primeiros minutos do amanhecer, quando o orvalho ainda estava fresco e a terra cedia seu espaço para uma manhã terna e calorosa.
Mas é claro que ele nunca diria aquilo para ela em voz alta, por isso subiu para o seu quarto, pois na manhã seguinte pouco se lembraria do ocorrido.
A rotina se repetia. Aedan saía para festejar aos fins de semana, vivia histórias inusitadas e conhecia cada frequentador das festas mais badaladas da Ilha-S durante a alta temporada. Sua mãe tinha apreço algum pelo seu círculo de amizades, odiava especialmente um sujeito seis ou sete anos mais velho que seu filho chamado Brando, uma vez que fora ele o responsável por inserir Aedan naquele mundo de vícios e obsessões.
“Tome cuidado com as amizades que escolhe”, sua mãe lhe alertara tantas vezes. Às vezes sentia que ela se preocupava tanto que chegava até a sufocar.
“Tenho quase vinte anos”, Aedan respondera na ocasião. “O que ainda tenho a aprender sobre o mundo?”
Durante o verão, seu pai enviou uma carta alegando que voltaria para casa após três semanas distante. O velho Hugh Burnout parecia animado com os resultados de seus alunos inscritos nos torneios de luta — todo ano, membros de todas as raças participavam de campeonatos espalhados pelas oito capitais do reino em busca do título de campeão que lhes renderia um convite especial para disputar o famoso Sellureville, onde se elegia o guerreiro mais poderoso do mundo.
Para Aedan, não passava de um hobbie idiota. Com tanta coisa mais importante para se preocupar, seu pai escolhera focar a carreira como treinador, por isso passava muito tempo longe de casa à procura de novos talentos, principalmente na temporada das competições. Quando voltava para casa, eram sempre os mesmos assuntos — Hugh falava das habilidades em combate de seus alunos como se fossem seus próprios filhos.
— Aedan, tente ser mais compreensivo — pediu-lhe sua mãe em uma tarde qualquer. — Seu pai sempre fez de tudo para que você participasse do universo dele, mas você se recusa. Para ele é difícil estabelecer um contato, mas ele ainda é seu pai.
— Ele acha que sou um fracassado.
— Vocês dois são mais parecidos do que imagina — Isadora sorriu, massageando os ombros do filho enquanto conjurava um feitiço leve para aliviar sua tensão. — Tentam passar a impressão de que são homens experientes e dedicados, mas por dentro são apenas garotinhos inseguros. Seu pai tem trinta e sete anos, mas ainda não parou de crescer. Ele está apenas seguindo o coração e fazendo o que julga ser certo.
— Não é minha culpa que eu não quero seguir os sonhos dele — retrucou Aedan. — Onde é que ele estava quando precisamos dele?
— Seu pai tem muitas preocupações, mas jamais as descontaria em nós, pois sabe que isso não ajudaria em nada — disse Isadora com a voz mansa. — Ele faz isso por nós, querido.
— Nós não precisamos dele. Eu posso cuidar da gente — falou Aedan. — Meu amigo Brando conversou comigo outro dia e disse que há muitas oportunidades de trabalho na zona fria.
— Eu já lhe disse que não gosto desse sujeito...
— Ah, começou. Você nunca nem viu o cara e já sai julgando!
— Você sabe que sou uma feiticeira e posso pressentir as intenções das pessoas — respondeu sua mãe. — Aedan, eu só digo tudo isso para o seu bem, mas se precisar cair para aprender a levantar-se, lembre-se que sempre estarei aqui para ajudar.
Assim que Hugh voltou para casa, pouca coisa mudou. No primeiro dia, almoçou com sua família e passou a tarde toda brincando com Elice que adorava puxar sua barba e enfiar o bigode do homem no próprio nariz, o que fazia a garotinha rir de alegria. Isadora vinha sentindo-se estranha nos últimos meses, saía pouco de casa e não encontrava motivação para as atividades que tanto amava como pintar e cuidar do jardim, mas a presença de Hugh lhe trouxera um fôlego extra.
... mas nos dias que se seguiram, Hugh começou a faltar à hora da janta. Quando Aedan indagou os motivos, sua mãe se limitou a dizer:
— Seu pai está organizando uma festa para alguns de seus alunos que melhor se saíram nas competições, e quer saber da novidade? Você também recebeu um convite!
Aedan tentou não demonstrar animação, mas sabia que as festas do pai eram sempre badaladas e do mais alto nível. Talvez aquela fosse a chance de começar a se aproximar dele, participar do seu mundo. Tinha que dar uma chance ao seu velho.
Quando a noite da festa finalmente chegou, Aedan vestiu-se com elegância — calça jeans, camisa branca, sapatênis e relógio de marca —, não imaginava como as pessoas de fora das Cidades Cinzentas conseguiam viver sem as modernidades oferecidas pela ciência. Em sua concepção, as pessoas no resto do reino viviam como Neandertais, correndo pelo mato e caçando animais com suas lanças como se ainda vivessem em tempos primitivos. Aquele mundo não pertencia a ele.
O local escolhido foi o terraço de um prédio luxuoso em Magnar, os convidados estavam todos impecáveis; o Buffet caprichara na comida com petiscos e drinks requintados como o Flamboyant Passion, seu favorito; as caixas de som estavam no volume mais alto e duas tótines lindíssimas dançavam esbanjando charme no palco. Aquele era seu ambiente, onde mais se sentia confortável, a noite tinha tudo para ser incrível.
— Veja só quem chegou — disse Hugh com os braços estendidos. Seu pai, como sempre, estava vestido de um jeito tão cafona que parecia ter saído de um porão abandonado. — Que bom que veio, filho. Finalmente temos um momentinho para nós dois curtirmos juntos.
“É, enquanto a mamãe fica em casa cuidando da Elice”, pensou Aedan, mas preferiu não dizer em voz alta.
— Vem, quero te apresentar alguém — chamou seu pai.
Hugh o levou até um homem forte que estava de costas, ele devia ter quase dois metros e dava para enxergar cada músculo definido através da camisa colada, ele estava de óculos escuros mesmo sendo noite e tinha a barba aparada. Aedan o reconheceu na hora — o antigo número 1 do Sellureville, mas sua derrota na temporada passada resultara na perda do título.
— Dony Lee, quero te apresentar o meu filho.
— Tá brincando — retrucou o homem, estendendo a mão para o rapaz com um cumprimento tão forte que chegou a doer. — Você nunca me falou que tinha um filho desse tamanho! Estou louco para que o meu complete quinze logo e eu possa colocá-lo no seu treinamento. O Peter tem garra, Hugh, você precisa conhecê-lo.
Dony e Hugh conversavam como velhos amigos, riam alto e brindavam uma temporada de sucesso, mas Aedan perdeu-se no início da conversa.
Seu pai nunca falara sobre ele?
O choque daquela revelação fez com que Aedan se afastasse do barulho para pensar. Dirigiu-se a varanda e contemplou a maravilhosa vista da Ilha-S, da montanha mais alta em Magnar até a distante Blizar, as duas cidades cercadas por água até onde os olhos alcançassem.
— Filho, o que houve? — Hugh perguntou preocupado. — Você se afastou de repente. Não está se sentindo bem?
— Por que você nunca fala de mim para as pessoas? — questionou Aedan.
Hugh pareceu surpreso diante daquela pergunta que mais soava como uma acusação.
— Bem, eu... prefiro manter os assuntos familiares em casa.
— É, percebe-se. Você nos mantém tão bem escondidos que até se esquece de nos visitar.
— O que deu em você essa semana? — Hugh elevou o tom de voz, um temperamento que Aedan herdara na mesma intensidade. — Acha que não estou te dando atenção o suficiente, é isso?
— Você nunca ligou pra mim, pai, não precisa se preocupar com isso agora. É melhor voltar para sua festa, porque tem muita gente ansiosa em te conhecer. — Aedan deu-lhe as costas. — Eu vou pra casa, quero estar perto da minha família.
— E você acha que sua mãe está orgulhosa de você? — Hugh berrou, irritadiço. — Vive se embebedando, voltando tarde e dando trabalho! Ei, estou falando com você!
— Concentre-se no seu trabalho, pai. Eu tenho a minha vida também.
— Garoto, se você acha que treinar pessoas é só o que eu faço, está muito enganado. Essa é a superfície.
O rapaz já não lhe dava ouvidos. Hugh precisou controlar sua ira, pois machucava seu coração toda vez que as conversas com o filho terminavam em discussão. Por sorte a música estava alta, talvez ninguém mais os estivesse ouvindo. Talvez aquela fosse uma boa hora para contar-lhe a verdade.
— Filho, espere, eu...
— O que foi agora?
— Escute, fiz o possível para não envolver nossa família nesses assuntos, e sua mãe concordou com isso. Nós só queríamos que você tivesse uma vida normal longe dessas obrigações.
— Você nunca nem perguntou se era isso mesmo que eu queria — Aedan retrucou já impaciente. — E se eu quisesse seguir seus passos? Ser que nem você?
Hugh aquietou-se na mesma hora.
— Então você quer ser como eu? Bem, receio que de todas as besteiras que você já me contou, esta seja a maior delas. Você não está pronto para ouvir tudo que eu tenho a lhe contar.
— Olha aí, de novo achando que não sou maduro o suficiente para aceitar responsabilidades — respondeu Aedan. — Quer saber? Até prefiro que ninguém me veja nessa festa do seu lado, afinal, seria terrível para “a sua imagem”. Até a próxima vez, talvez no ano que vem, quem sabe.
— Peça para sua mãe lhe mostrar o que há dentro do baú no meu quarto — Hugh gritou de longe. — Se cuida, filho...
A curiosidade de Aedan o levou a seguir o caminho de casa, estava tarde e as ruas se encontravam desertas. Trinta minutos de caminhada o separavam do intrigante baú que nunca nem se dera conta da existência até hoje. Mas como detestava fazer as coisas a pé. Assim que arranjasse um emprego, a primeira coisa que faria seria comprar um carro.
O frio o atingiu com uma pancada certeira, bem que devia ter ouvido a mãe e trago uma blusa. Quando passou em frente à padaria do seu bairro, deparou-se com um grupo de amigos que fumavam do lado de fora e compartilhavam duas garrafas de cerveja.
— E aí, Cabeça Quente! — falou Brando. — Por que essa cara de frustração?
— Nada, é só o meu pai enchendo o saco de novo... — Aedan respondeu com as mãos no bolso, tentando desviar do assunto. — O que fazem aqui?
— Nada também, é isso que jovens fazem. Sentimos sua falta no rolê de hoje. Será que consegue acender uma fogueirinha aí pra gente, parceiro? — perguntou Brando com uma risada. — É que esse frio tá de rachar os ossos.
Aedan estalou os dedos e com o mínimo de esforço ateou fogo em um saco de lixo de forma que o grupo todo se pudesse se aglomerar ao redor.
— Você é o cara! Por isso sempre digo que é bom ter um tótines por perto — brincou Brando em meio a elogios exagerados. — Ei, lembra daquele trampo que mencionei há alguns dias? Tem um cientista muito interessado em encontrar tesouros na zona fria, e ele paga uma fortuna por isso, até oferece os equipamentos e gente capacitada para ajudar no serviço! Com uma grana dessas, você pode até comprar aquele carrão que tava de olho, o que me diz?
Aedan arqueou uma das sobrancelhas, claramente interessado.
— Que tipo de tesouros eles estão procurando na Zona de Gelo?
— Sei lá, minério, pedras preciosas... Ouvi dizer que a Ilha-S é um dos locais mais ricos para extração em todo o reino, é só olhar para o tanto de mato que cerca essa cidade, poderíamos progredir muito mais, mas o objetivo principal é encontrar uma pérola vermelha, já viu algo parecido?
Aedan fez que não com a cabeça.
— Dizem que ela está em algum lugar aqui da ilha... — continuou Brando. — Alguns a descrevem da cor do sangue, com um líquido estranho no seu interior, brilhante e enigmática. Eu vou começar a trabalhar na extração semana que vem, se tiver interesse, é só me dar um toque.
Aedan despediu-se de seus amigos e seguiu o caminho de casa. Ao entrar, preocupou-se com o fato de que a luz na varanda estava apagada, mas qual foi a sua surpresa ao entrar no quarto de Elice e descobrir que sua mãe dormia encolhida na cama da filha. Desde que Elice nascera, eram raras as ocasiões onde a via descansar de verdade, pois vivia exausta e com olheiras profundas de preocupação. Isadora estava na casa dos quarenta, mas ainda fazia inveja a muitas mulheres na vizinhança que diziam que ela usava algum feitiço de rejuvenescimento para esconder as rugas.
Aedan parou ao lado do berço de Elice e observou a garotinha de olhos fechados com a chupeta na boca. Apesar da diferença de quase dezessete anos que os separavam, tinha um carinho enorme por sua irmãzinha, mal podia esperar que ela crescesse logo e pudesse levá-la para a escola, brincar com jogos de tabuleiro e passear no parque. Jamais permitiria que Elice sentisse a falta de uma figura paterna — se necessário, ele mesmo assumiria tal posição —, queria oferecê-la tudo do bom e do melhor, faria com que Elice fosse a garota mais feliz em toda Sellure.
Como se sentisse os olhos repousando sobre ela, Elice despertou. Aedan fez sinal de silêncio com o indicador para que ela não acordasse sua mãe e pegou-a no colo.
— Ei, lindinha... — Aedan sussurrou na sua orelha. — Está com fome?
Elice fez que sim com a cabeça e seu irmão se dirigiu até a despensa para pegar algumas jujubas daquelas que a menina adorava.
— Prometo não contar pra mamãe que você dormiu sem escovar os dentes se for direto pra cama, tudo bem? — ele disse em um tom brincalhão, enchendo-a de beijos no pescoço. — Boa noite, minha princesinha.
Elice voltou para o quarto arrastando seu cobertor de estrelinhas brancas. As luzes permaneceram apagadas, era possível enxergar apenas a silhueta das coisas, Aedan aproveitou que o quarto dos pais estava desocupado e procurou pelo baú que Hugh mencionara. Encontrou-o escondido debaixo da escrivaninha — havia um cadeado de ferro contendo números, letras e símbolos, com certeza se tratava de um produto dos tótines.
Não precisou pensar muito para descobrir qual era a senha: “A-E-096113”, suas iniciais e o ano em que nasceram, respectivamente.
A combinação funcionou e o baú foi aberto. Seu pai era tão previsível.
Esperava que houvesse algum tipo de tesouro ali, mas enganou-se ao encontrar apenas livros, folhas e documentos organizados de maneira sistemática. A grande maioria se tratava de manuscritos com a caligrafia do próprio pai, havia também canetas, tinteiros e uma coleção de relógios; nunca suspeitara que Hugh investia seu tempo livre na carreira de escritor.
— “A Ordem do Selamento” — Aedan murmurou baixinho ao ler o título de um dos livros inacabados. Será que seu pai trabalhava para alguma organização secreta ou apenas gostava de uma boa fantasia?
Para a sua surpresa, no fundo no baú, um artefato misterioso emitia uma luz fraca. A descrição dada por Brando era compatível com aquele objeto circular de cor avermelhada, Aedan só não fazia ideia de que estava diante de uma das Pérolas Sagradas.

i

No dia e horário marcado, Aedan encontrou-se com Brando e atirou a pérola no colo do amigo que quase a derrubou no chão devido o susto.
— Não dá pra acreditar. Como foi que você...
— Perdida no meio das coisas do meu velho — Aedan respondeu. — Acho que nem ele tem noção do valor disso.
— Você não faz ideia, é como ganhar na loteria! O Doutor Erlenmeyer está comprando essas pérolas e paga uma fortuna tão alta que você poderia comprar essa ilha inteira para você! Cara, você precisa conhecê-lo, vão estirar um tapete vermelho só para te receber.
— Não faço questão — Aedan deu de ombros. — Vamos dividir metade-metade. Você acha o comprador e lida com as vendas, eu só quero ficar na minha e receber parte da grana.
Brando estendeu-lhe a mão.
— Foi um prazer fechar negócio com você, meu amigo.
Quando Aedan saiu, Brando chamou alguns comparsas e murmurou baixinho:
— Avisem que a Pérola Sagrada é real. Ele é mesmo filho de um dos membros da Ordem.

Em uma quinta-feira de Novembro, Aedan passava a noite brincando com Elice na sala empilhando bloquinhos para construir um castelo para a menina. Por algum milagre, Hugh estava junto deles sem perder horas trancado em seu escritório conversando com aquelas malditas Esferas de Comunicação enquanto tratava de negócios. Isadora aquecia o leite para a filha quando ouviu a campainha tocar. Os adultos estranharam, pois ninguém fizera encomenda alguma.
— Querida, pode pegar Elice no colo um pouco? — Hugh falou desconfiado. — Fique no quarto por alguns minutos, logo irei chamá-la.
Isadora concordou e fez conforme sugerido. Hugh aproximou-se sorrateiro e permaneceu ouvindo atrás da porta com discrição.
— Quem é? — ele perguntou.
— Entrega.
— Para quem?
— Hugh Burnout.
Hugh tocou de leve na maçaneta da porta e aqueceu-a com seu poder de fogo de tal maneira que ela afastasse qualquer carteiro incômodo, mas estava claro que as pessoas do outro lado não iriam embora tão cedo.
A porta foi arrombada e dois homens trajados em branco dispararam flechas em sua direção, os projéteis vararam pelo corpo de Hugh que se materializou como se fosse feito de chamas, ele agarrou o primeiro pela garganta e bateu sua cara na parede de concreto, enquanto o segundo levou uma pancada tão forte no abdômen que contraiu o corpo e foi finalizado com uma cotovelada.
Hugh podia estar fora de forma, mas os anos de treinamento com seus alunos lhe permitiam conhecer bem golpes físicos e como aplicá-los. A vida toda tentara ensinar tótines que eles não precisavam depender apenas de suas magias, se soubessem como usar os punhos, encontrariam vantagem tanto na força física quanto na mana.
Aedan ficou tão amedrontado com a invasão repentina que escondeu-se atrás do balcão da cozinha. Outros três homens vieram em seguida, eles usavam máscaras que mantinham sua identidade escondida. O primeiro investiu com um machado, mas Hugh o bloqueou com as próprias mãos e derreteu a arma, usando seu fogo para afugentar o segundo que tentou atacá-lo de lado. O terceiro e o maior deles atingiu Hugh em cheio com uma facada no braço, o guardião utilizou seus poderes para incinerar o invasor e assim proteger a sua família.
Ao perceber que seu pai estava em apuros, Aedan esforçou-se para vencer seu medo. Tentou finalizar um dos homens com um mata-leão por trás enquanto seu pai trocava socos com o outro. Ele bateu a cabeça do invasor na quina da mesa para desmaiá-lo e assim ter tempo para tirar sua família dali antes que outros viessem.
Hugh correu até a suíte principal. Assim que ele abriu a porta, sua esposa espantou-se com o estado do seu braço ensanguentado. Aedan correu para abraçar Elice que não parava de chorar.
— Eles descobriram — afirmou Hugh para a esposa.
— Fique quieto e sente-se aqui. Eu vou curar este machucado antes que ele piore — respondeu Isadora, procurando mantê-los tranquilos.
— E-eu só não entendo o motivo... Como? Como eles descobriram? Sempre fizemos o possível para viver com discrição aqui na Ilha-S — respondeu Hugh.
Isadora era uma tótines detentora da magia branca, por isso fora abençoada com o dom da cura. Hugh não demorou a sentir que seu braço estava melhor, mas não poderia abusar, ninguém fazia ideia de quantos mercenários poderiam chegar ou quem estaria atrás deles.
— O que está acontecendo aqui, pai? Quem eram esses homens?! — Aedan perguntou alarmado.
— Eles devem estar atrás de você, Hugh — respondeu Isadora. — É por causa da Ordem.
— Ordem? — Aedan indagou. — Eu sabia que essa merda ainda traria algo de ruim para a nossa família!
Hugh ergueu o filho pela gola da blusa, dominado pela ira.
— Para quem você contou sobre a Ordem? — Seu pai o confrontou, incapaz de controlar a sua ira. — Você abriu o meu baú aquele dia, não foi? E o que descobriu?
— E-eu não li os documentos, não tive tempo... — Aedan disse com a voz acuada.
Seu pai só o largou quando Elice tampou os ouvidos e chorou ainda mais alto, pois detestava vê-los brigando. Hugh correu para abraçá-la, ainda que não pudesse esconder o quão assustado estava.
— Agora que eles sabem que estou aqui, terei que desaparecer outra vez — Hugh murmurou para sua esposa. — É arriscado demais para vocês, toda vez que volto, coloco a vida de vocês em risco.
— Tá tudo bem, papai... você não fez nada de errado — disse Elice.
Será? Será que ele não tinha feito mesmo? Hugh ajoelhou-se e puxou o baú onde guardava seus pertences mais preciosos. Ao revirá-lo, notou que a Pérola Sagrada havia desaparecido.
 Aedan continuou parado, perplexo. Seu pai virou-se para ele com uma expressão que nunca vira antes.
— O que foi que você fez, moleque?
— E-eu...
— Você levou a pérola embora? — Hugh berrou com fúria. — Para quem? Com quem você conversou sobre esse assunto? Por Yllata, é por isso que sempre achei que você não estava pronto para assumir seu papel na Ordem! Você não tem responsabilidade, é imaturo!
— Ah, deve ser porque não tive ninguém em quem me espelhar! — Aedan também começou a se enfurecer.
— Por favor, parem de brigar! — implorou Elice aos prantos.
— Se é pra recuperar aquela droga de pérola, eu vou lá e a trago de volta, se isso fizer com que você passe a me olhar com o mínimo de dignidade.
— Você me decepcionou, garoto. E vai levar um bom tempo até que consiga ganhar esse respeito de volta.
— Eu não preciso da merda do seu respeito, nunca precisei. Se você não sair dessa casa, pode deixar que eu mesmo saio!
Hugh balançou a cabeça lentamente, desapontado. Aprontou seus pertences e deu um beijo no rosto de sua mulher, acariciando os cabelos de Elice.
— Eles vão voltar por minha causa. Eu preciso ir.
— Mas quanto tempo vai levar dessa vez...? — perguntou Isadora.
— Eu não sei... Muitos colegas meus estão desaparecendo. Eles estão caçando tótines como se fôssemos monstros selvagens, e há uma assassina perigosa envolvida. Enquanto eu estiver vivo, eles virão atrás de mim. Ninguém pode saber de nossa família, vocês precisarão permanecer invisíveis por um tempo.
Hugh ajeitou a tiara no formato de coroa na cabeça de Elice e beijou-a uma última vez.
— Minha princesinha.
E quando deixou a casa, passou reto por Aedan como se ele nem existisse.

ii

Meses se passaram sem sinal algum de Hugh. Isadora e seus filhos se mudaram para uma cabana isolada na região remota de Blizar até que a situação se estabilizasse, precisavam ficar longe dos holofotes e evitar chamar a atenção, mas Aedan afundava cada vez mais em seus problemas, ele ainda não desistira de recuperar a maldita Pérola Sagrada.
Seu rastro podia ser visto na neve enquanto ele abria caminho pelas difíceis rotas até sua casa. Detestava o frio, estava longe de todos seus amigos em Magnar, sua vida desabara de tal forma que só poderia culpar uma única pessoa — seu pai, ou a si próprio? Sempre ouvira sua mãe dizer o quanto os dois eram parecidos, mas temia que algum dia também cometesse os mesmos erros.
Certa noite, Aedan tentou entrar escondido pela porta dos fundos, mas a luz do abajur na sala permanecia acesa, denunciando que sua mãe ficara acordada para esperá-lo. Aedan cobriu o rosto ao vê-la.
— Por favor, não me olhe...
Isadora segurou a mão do filho com delicadeza. O olho esquerdo dele estava roxo, devia ter apanhado na rua após arranjar alguma confusão. Ela não fez questão alguma de saber os detalhes.
— Venha, eu sei o que fazer para que se sinta melhor.
Sua mãe o conhecia bem até demais, ela encheu a banheira de água quente, pois sabia que Aedan adorava frequentar as casas de banho no vulcão de Magnar sempre que estava irritado. Assim que ele entrou, a água ferveu ainda mais por conta de seus poderes estarem descompensados, a fumaça chegou a embaçar o espelho. Isadora estava enrolada em seu roupão, mas ofereceu-se para limpar os machucados dele.
— Brando disse que já vendeu a pérola — Aedan lamentou, furioso. — Eu não quero mais o dinheiro dele. Não acredito que fui tão idiota assim ao ponto de entregar o tesouro do papai.
— Você não fazia ideia, querido. Nós devíamos ter lhe contado sobre a Ordem muito antes, mas seu pai e eu achávamos que não estava preparado — disse sua mãe. — Nós queríamos que você trilhasse o seu próprio caminho e não precisasse ficar preso às responsabilidades de uma Ordem antiga. Essas Pérolas Sagradas são como maldições, somos incumbidos de protegê-las. Seu pai fez de tudo para que você não se tornasse prisioneiro dela.
— E se ele nunca mais voltar, mãe?
— Então seremos só nós três. Eu sei que ele vai voltar, porque seu pai me fez uma promessa há muito tempo.
Aedan a encarou com os olhos inchados, esperando para ouvir.
— Ele tinha medo de ser pai, eu concordei em ceder parte de mim para cuidar dos nossos filhos enquanto ele lutaria para que o mundo se tornasse um lugar mais seguro para vocês. Ele prometeu que cuidaria de nós para o resto da vida, e seu pai não é de quebrar promessas.

Com o passar dos meses, a Ilha-S pouco a pouco passou a ser dominada por forasteiros, a história de que uma pérola com o valor exorbitante fora encontrada levou muitas companhias a tentarem a sorte na região, ver seu lar ser destruído acabava com Isadora por dentro.
Sua mãe adoeceu por volta de Fevereiro, quando a neve começou a derreter. Cada dia que passava, ela parecia ser sugada como tinta aquarela em uma folha espessa. Ela se tornara uma paisagem cinzenta.
— Querido, pode ficar de olho na Elice?
— Mãe, você não pode sair, está muito debilitada...
— Eu escutei um chamado da natureza... acho que é seu pai.
— Mãe, você está delirando...
— É, você tem razão... preciso cuidar das  minhas crianças, essa foi a minha promessa...
Mas Hugh também não cumprira sua parte da promessa.
Um dia, Aedan acordou de madrugada porque Elice alegou não encontrar sua mãe no quarto. Ele a pegou no colo e os dois desceram para a sala. Um forte vento frio soprava, a porta fora deixada aberta, não havia sinais de arrombamento.
— Elice, não saia daqui — Aedan falou apreensivo.
Saiu correndo pelas rua mal iluminada, apenas um poste solitário oferecia consolo. Quanto mais ele corria pela rua na madrugada, mais assustado ficava. Perguntou para os vizinhos, procurou rastros, não havia sinal dela. Com os primeiros minutos do amanhecer, a névoa se desfez, as ondas cessaram e ela parecia nunca ter existido. Aedan levou a mão à cabeça em sinal de desespero.
— Por favor, não me deixe... eu não consigo sozinho.
Quando retornou para sua casa, Elice estava enrolada em seus cobertores na varanda com os pés descalços, mas ela parecia sequer se incomodar com a neve fina que ainda cobria a terra.
— Irmãozão, você não está com frio? Vem aqui que eu te esquento.
Aedan a pegou no colo e beijou sua testa, lutando contra as lágrimas que teimavam em cair.
— Eu prometo que vou cuidar de você, Elice, eu nunca vou permitir que nada de ruim aconteça... é uma promessa.

   

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