Capítulo 1
“Nem sempre a vida segue como planejamos”, ouvira
certa vez. “Quando você for adulto
vai entender.”
O embalo foi
forte o bastante para acordar o garoto que descansava a cabeça em uma das
paredes gastas do vagão. Os trilhos enferrujados seguiam seu caminho contínuo
pelos quais a locomotiva de ferro era conduzida. Era por volta das sete da
manhã e todos repousavam em profundo silêncio. Enquanto os passageiros
aguardavam a chegada do trem ao seu destino, Ralph ainda fantasiava. A mente
estava perdida em cenas que passavam depressa na janela, abriu o vidro,
respirou fundo e fechou os olhos. Ainda não tinha certeza se teria consciência
e maturidade o suficiente para assumir as responsabilidades que batiam à sua
porta, mas estava disposto a tentar.
Há horas estava
sentado no mesmo lugar, o nervosismo em migrar para uma região desconhecida e iniciar
seu treinamento mitigava diante das palavras de sua mãe de que tudo daria
certo. Na primeira vez que saiu de casa para cursar os estudos, sua família lhe
alertara sobre a necessidade de encontrar amigos para seguir na jornada da
vida. Quando perguntou como faria para reconhecê-los, a resposta foi que era
impossível — então devia ser como cair de paraquedas perto de alguém. A
definição de amizade que tinha até então era a de que amigos surgiam de
repente, preenchendo um pedaço que faltasse no outro. Acreditava que quando
encontrasse as pessoas certas, saberia. Logo, sua ideia era de que amigos
trocavam peças uns com os outros. Cada pessoa tinha um quebra-cabeça incompleto
dentro de si, por isso devia viajar até completá-lo. Havia quem o completasse
antes do tempo, outros levavam anos para descobrir que usavam uma peça errada.
Alguns nunca conseguiam.
Ao seu lado, em
um dos bancos, estava apoiada uma espada de madeira como se fosse uma pessoa. Era
sua única companheira desde que aquela longa viagem começara.
— Aqui estamos. Nem
dá pra acreditar, parece que passou tão rápido — murmurou.
Ralph rumava para
a região de Myriad, uma das oito grandes províncias do Reino de Sellure. Vivera
toda a infância no Vale dos Ventos, um vilarejo centrado na zona rural de
Helvetica esquecido pelo tempo.
Durante toda a vida,
Ralph cultivou memórias felizes e acolhedoras. Não teve um passado triste ou
melancólico, nem precisava usar suas dificuldades como desculpa para seguir em
frente. Pensava com frequência
em seu lar. Era o tesouro mais precioso que carregava em suas memórias —
gostava dos campos verdes e dos grandes moinhos, mas ansiava pelo que Sellure
ainda tinha a lhe mostrar.
Despertou de
seus devaneios quando o trem oscilou sobre os trilhos desgastados. Devia ser antigo,
mas não o bastante para se tornar uma relíquia, uma vez que a tecnologia vinha
aos poucos se alastrando pela região. Acabara de completar quinze anos, a idade
em que os adolescentes deixavam suas famílias para começar os estudos e servir
sua nação, uma distinção inigualável.
Estava tão
ansioso. Sonhara com aquele momento a vida inteira, poderia ser a chance de
descobrir de uma vez por todas a resposta da grande pergunta que o passado era
incapaz de responder e o presente estava prestes a descobrir: o que o futuro me reserva?
Quando um velho
de uniforme borrado passou ao seu lado, Ralph apontou para a janela e
perguntou:
— Olá, caro
senhor, pode dizer se já estamos chegando?
O velho lançou
um olhar rápido para o garoto, mas manteve-se em silêncio e continuou com sua
faxina, como se não tivesse a permissão de falar com os visitantes. Porém,
vendo que ninguém os observava, chamou-o com um assovio baixo.
— Estaremos na
estação dentro de meia hora. Aproveite a paisagem, Myriad é uma das províncias
mais antigas e exóticas de nosso belo Reino de Sellure.
— Que boa
notícia, mal posso esperar para me inscrever e começar a treinar. Esperei por
isso o ano todo, ou melhor, talvez toda a vida — disse Ralph, contente.
Esse menino sorri bastante, o velho pensou consigo mesmo. Assistia pessoas entrar
e sair do trem todos os dias, embora nunca mais voltasse a vê-los.
O faxineiro retomou
a varredura dos corredores do vagão. Ralph apoiou-se na parte traseira de seu
assento e virou-se para estender a conversa.
— Desde muito
novo eu sonhava em ter uma aventura só minha, enfrentar os vilões, ser um guerreiro
honrado... Quero ajudar as pessoas como puder e me tornar um herói!
— E o que você
faria se descobrisse que na verdade a vida não é tão divertida quanto parece? —
o faxineiro retrucou num tom baixo.
Para sua surpresa,
Ralph sorriu e fez um cumprimento com a cabeça.
— Eu a farei ser
legal comigo.
O velhinho
também sorriu e por fim retomou seu trabalho.
i
O tempo se
arrastava, não havia nada para fazer no trem. Ninguém conversava e poucos
pareciam dispostos a fazer novas amizades naquele ambiente tão estranho. As
respirações desmotivadas e os suspiros pesarosos denunciavam uma marcha sem retorno. Ralph olhava cada passageiro, tentando entender o que se passava
em suas mentes. Alguns desviavam o olhar, outros fingiam que não era com eles.
Uma garota que não parava de roer as unhas chegou até mesmo a se incomodar.
— O que você
está olhando?
— Você parece
triste. — Era possível notar só pela forma como ela mexia as mãos.
— Só estou um
pouco assustada. — Ela desviou o olhar. — Ei, você tem uma espada de madeira
bem legal. Foi você quem fez?
— É presente de
um amigo. Ele ficaria feliz se soubesse que guardei até hoje — respondeu Ralph,
mas logo a garota se calou e ele teve de se conformar com o silêncio.
Um rapaz terminou
de beber seu refrigerante de cor azulada e jogou a garrafa no chão. Ralph
levantou para jogá-la no lixo quando o velho faxineiro passou e fez seu
trabalho. O garoto do refrigerante reclamou alto, como se tivesse a necessidade
de resmungar para alguém:
— Vai demorar
muito para essa lata velha chegar? Já estou ficando de saco cheio em ficar
enfurnado aqui. Que demora!
— Estamos indo
para a Vila das Pérolas, um dos principais centros de recrutamento de Sellure.
Paciência é uma virtude nos treinos que você fará parte — respondeu a menina.
— Não precisa
lembrar. Foi péssimo ter de deixar minha família e meus pertences em Helvetica.
Por ora só quero sair daqui, não aguento esse cheiro de gecko impregnado nas
poltronas, estão sentindo? — argumentou, chamando a atenção de Ralph que
despertou seus instintos ao ouvir alguém falar “gecko”.
— Irei
certificar-me de livrá-los do cheiro depois que vocês saírem — o faxineiro
falou num tom ríspido, mas o rapaz nem notou a ambiguidade da frase.
O burburinho
recomeçou. O assunto despertara o interesse mútuo.
— Você ouviu? — uma
moça comentou. — Há geckos por aqui também.
O jovem no banco
de trás se pronunciou:
— Tomara que
esses répteis façam uma passagem rápida pelo porto e não fiquem para bagunçar
tudo como sempre fazem.
— Será que estão
indo para a guerra? — disse outro, virando a cara para a janela. — Espero que
de lá não voltem.
Ralph sentiu-se constrangido.
Os geckos sempre tiveram uma rixa intensa com os humanos, falavam e se
comunicavam com a mesma língua e mesmo assim não conseguiam se
entender. Viviam debaixo do mesmo céu e estrelas, o que os tornava tão
diferentes? Há quem não acreditasse na amizade sincera entre um humano e um lagarto.
Uma última
cambaleada e precisou equilibrar-se em uma das paredes para não cair de seu
banco. Pegou a espada de madeira no chão e olhou para os lados, era possível
ver a Estação Pérola bem próxima do oceano, os trilhos desciam a colina para
enfim retomar seu caminho e desaparecer no horizonte.
Ralph imaginava o
que faria assim que chegasse a sua nova casa. Primeiro, entraria com o pé
direito em seu novo lar. Uma nova fase teria início e ele ainda não sabia se
estava preparado para algo tão importante.
Concluiu que
nunca estaria. Mas teria de encarar do mesmo jeito.
ii
O apito soou, todos
se levantaram ainda desordenados. Ralph esperou para não ter de enfrentar o
trânsito de passageiros ansiosos enquanto refletia: bem, minha vida antiga acaba agora. Pegou sua espada de madeira e estava
de pé para sair do trem quando o faxineiro o chamou:
— Ei, menino.
Não está esquecendo nada?
Ralph olhou para
os lados, pensando se de fato esquecera alguma coisa.
— Hm? Ah, desculpe,
que falta de atenção a minha.
Ele voltou e deu
um forte abraço no velho.
— Obrigado, meu
senhor, por não me deixar esquecer.
Era aquilo que
estava costumado a fazer quando ia para a escola e cumprimentava sua mãe. A
imagem dela ainda era nítida em sua mente: “Não está esquecendo nada?”, e Ralph jamais se esquecia de
abraçá-la, porque sempre havia motivos para agradecer.
O velho
continuou a encará-lo com uma feição estática de surpresa. Não sabia ao certo
por que Ralph fizera aquilo ou como devolver a bondade, mas por algum motivo ficou
feliz. Era o primeiro abraço que recebia em muito tempo.
Ralph tinha esse
estranho poder — contagiava as pessoas ao seu redor com felicidade. Transmitia
o bem-estar para aqueles a sua volta, até mesmo as pessoas mais frustradas não
conseguiam esconder um sorriso ao seu lado.
— Bem, hm, eu ia
dizer que estava esquecendo sua mochila.
— Nossa, que
cabeça a minha! — respondeu com a mão na testa, agradecendo pelo lembrete.
— Hah, hah. Estou
de olho em você, garoto. — E deu-lhe uma piscadela.
Ralph pegou sua
pequena mochila e foi embora. Até quando um jovem inocente como ele conseguiria
virar-se sozinho no mundo? A academia se provaria intensa. Quando entrasse no
exército sua situação não tenderia a melhorar e a vida não seria nem um pouco
mais amigável.
O velho retirou um
pequeno livreto do bolso, fez anotações e por fim o guardou. Do lado de fora do
trem, Ralph acenou para ele de um jeito meio desengonçado. O velho só pôde rir
ao concluir que aquela criança estava pronta para encarar a vida e o mundo à
sua própria maneira.
Cresça e torne-se grande, meu jovem, mas nunca deixe
de pensar como você pensa hoje. Com o coração, garoto, com o coração.