O Passado dos Personagens - Auria (Parte 1)
Naquela noite Auria sonhou
que era resgatada por um lindo príncipe em seu cavalo branco — ele era forte e bonito, trajava armadura cintilante e
capa vermelha, igual às ilustrações dos livros de contos de fada que sua mãe
lera semana passada. Lydia adorava realçar o fato de que já tinha idade para
namorar, embora ainda se encantasse com a ideia de que algum dia aquele mesmo príncipe
também viria buscá-la. Diana, por sua vez, nunca aceitava o desfecho da
narrativa.
— E se ela
morresse de tédio até lá? Ela tinha tempo de sobra para bolar um plano — disse
Diana, cheia de revolta. — E por que os príncipes são todos iguais? Mamãe, será
que você não encontra algum livro onde o príncipe seja um gecko, um monstro ou
até uma garota?
— Você sempre encontra defeito em tudo, Dia — contestou Lydia
enquanto apoiava a cabeça sobre um amontoado de travesseiros confortáveis. — Se
for para esperar um príncipe bonitão que nem esse — ela soltou um longo suspiro
apaixonado —, eu faria qualquer coisa!
Lydia era a mais velha entre as irmãs Mercer, tinha onze anos
e já se considerava uma menininha; embora não conseguisse esconder seu lado
sonhador, nunca se cansaria de esperar pelo seu cavaleiro de armadura cintilante.
A pequena Auria chamou a atenção das duas para que parassem
de fazer barulho.
— Continua a história, mamãe.
— Por hoje é só — respondeu a Srta. Floria Mercer. — Vocês
não acham que já estão muito grandinhas para continuarem ouvindo contos de
fadas?
As três gritaram “não” ao
mesmo tempo, em alto e bom tom. Até mesmo os criados na mansão puderam ouvir as
risadas de uma família concreta e feliz.
Aquela alegria durou até o ano 108, quando as tropas da Coroa
de Ferro atacaram a capital de Cortina Escarlate. Desde a queda dos Três
Soberanos, pequenos resquícios da guerra perduraram e prolongaram a disputa por
território para além do tempo previsto. Os maiores guerreiros do mundo estavam
mortos ou debilitados, as cidades próximas ainda se recuperavam da destruição,
do fogo e das cinzas; porém, Cortina Escarlate permanecera intocada até então.
Por situar-se no extremo leste da província de Myriad, o único meio de se
alcançar a cidade era através do Estreito Etifil que tinha uma das mais
eficientes guarnições em toda Sellure. Com astúcia e anos de preparo, o inimigo
aproximou-se pelo mar, destruindo os portos que abasteciam a cidade e
cercando-a para que não houvesse saída.
A família Mercer financiara a guerra durante muito tempo
através de ouro, materiais e sua influência, mas não imaginavam que algum dia a
batalha chegaria até seus portões. O Cavaleiro Negro deixava um rastro de
destruição por onde passasse, alastrando-se como uma praga que a tudo consome —
Cortina Escarlate estava em sua mira há anos, ele vinha coberto de ira e o
desejo por vingança.
Auria pôde ouvir gritos e tumulto de sua janela, mas uma das
governantas apressou-se em fechá-la. No quarto ao lado, Lydia tentava colocar o
maior número de roupas e acessórios de valor em sua mala — já enchera três, mas
não havia colocado nem metade do que gostaria. Diana separara apenas uma
mochila com o essencial — mapas, bússola, cantis de água e até mesmo um
canivete que ganhara de Tellum e tinha de esconder para que seus pais não lhe
arrancassem dela.
— Meninas, vamos, depressa! — Sua mãe apressou-as da escada.
Ela correu para o salão de entrada com outras duas serviçais, seus longos
cabelos negros estavam despenteados e as olheiras não conseguiam ser apagadas
pela maquiagem reforçada.
Um estrondo foi ouvido na porta e o teto estremeceu. Tellum
atravessou o corredor apressado para dar a notícia.
— Precisamos ser rápidos — disse o chefe da segurança das
Mercer, quase sem fôlego. — Os portões da cidade já foram penetrados. Em menos
de duas horas a cidade estará coberta.
Auria começou a chorar.
Diana segurou sua mão e percebeu que uma criança de três anos jamais
compreenderia pelo que elas estavam passando, ambas estavam muito assustadas e
aquele trauma as acompanharia até o fim da vida, mas procurou ser forte por ela.
— Vou ter que deixar meus brinquedos? — lamentou Auria.
— Auria, querida, a gente compra tudo de novo — respondeu sua
mãe do outro quarto. — Só se apresse e colabore, tábem? O papai já vai chegar e
nos levar para um lugar seguro.
As serviçais Kamily e Kiera guiaram as três meninas até a
porta de entrada onde a Srta. Floria conversava com Tellum. A expressão de espanto
em seu rosto denunciava um choque tremendo, como se ela tivesse sido atingida
em cheio por uma flecha em seu ponto fraco.
— Onde está Dalson? — questionou a mulher. — Onde está o meu
marido?
— Senhorita Mercer, procure manter a calma — repetiu Tellum. —
Sir Dalson está combatendo o inimigo e cumprindo seu dever. Cabe a mim levá-las
para fora da capital, há uma embarcação no sul que levará as crianças para a
Ilha dos Geckos, eles percorrerão uma rota segura até Constantia. — O capitão
distanciou seu olhar e avistou as três garotinhas que ouviam a conversa no topo
da escada. — Nós precisamos protegê-las a todo custo.
A Srta. Floria respirou fundo enquanto massageava as
têmporas.
— Céus, isso só irá realçar minhas linhas de expressão —
disse ela com um sorriso travesso. — Tellum, leve-me até meu marido, esta é
minha ordem. Eu preciso salvá-lo.
— Ele já esperava que dissesse isso — continuou Tellum —, mas
Dalson pediu que se lembrasse de seu dever como mãe, não como esposa dessa vez.
No momento, seus três maiores tesouros estão sob sua proteção.
Floria sabia que suas filhas estavam ouvindo, por isso
chamou-as e pediu que descessem depressa. Era chegada a hora de deixar para
trás os confortos de Cortina Escarlate rumo ao desconhecido.
Os boatos que se espalhavam na cidade eram de que a cavalaria
real já estava a caminho, os reforços da Fortaleza Azul contavam com o poderio
militar mais influente e bem preparado do reino, guiado pelo próprio Rei e seus
generais. Entretanto, o povo Myridiano temia que fosse tarde demais até que
eles chegassem.
O céu estava coberto por nuvens de fumaça preta e salpicado
de vermelho, como se uma essência maligna assombrasse até mesmo o ar que se
respira. Floria deixou a casa pelos fundos, em uma manhã normal teria alcançado
o portão principal em vinte minutos, mas a cidade estava um caos tremendo com
multidões que se aglomeravam entre empurrões e xingamentos para decidir quem
ficaria para trás.
Diana tentava não demonstrar que estava morrendo de medo, mas
seus olhos sempre tão expressivos denunciavam certa tensão. Auria abraçou com
mais força a saia de sua mãe e chorou baixinho.
— Mamãe, o que está acontecendo?
Floria passou a mão em seus cabelos ondulados e sorriu,
demonstrando serenidade ao tocar o rosto da garotinha e limpar suas lágrimas.
— Estamos indo procurar um novo lugar pra morarmos... Você
trouxe a Rafaela?
Auria abriu sua mochila e retirou dali sua boneca favorita.
— Nós vamos encontrar uma casinha nova para a Rafaela, então
você tem que protegê-la e ter muita paciência, ouviu? Ela é uma Mercer, como
nós.
— E as Mercer nunca podem ser derrotadas! — Lydia repetiu o
lema de sua família.
Auria acenou com a cabeça e prometeu não chorar mais. Tellum
as guiou por passagens e ruelas estreitas longe do tumulto, pois sua prioridade
era manter todos a salvo e impedir que se separassem a qualquer custo.
— Para onde estamos indo? — perguntou Diana.
— Para o porto — disse o capitão da guarda com o olhar
disperso.
— Tellum, mas o inimigo está vindo pela água, será que não
cairemos em uma armadilha? — reclamou a irmã do meio.
— Devo discordar, Srta. Diana. O portão da cidade é um alvo
iminente, o Cavaleiro Negro e seu exército está tirando a vida de qualquer um
que tente entrar ou sair. Ele está contando com o caos e a desordem para que a
cidade sucumba a seus pés. As pessoas tendem a cometer erros idiotas quando
estão sob pressão, o desespero e o medo são armas perigosas nessas circunstâncias.
Diana sempre escutava os conselhos de Tellum com atenção,
pois além de chefiar a guarda em sua casa, ele era também o estrategista e
braço direito de seu pai.
Foi possível ouvir o que parecia ser o som de tambores, a
terra tremia com o avanço dos exércitos de Rudsi que se aproximavam mesmo à
distância. Kiera precisou carregar Auria no colo já que a criança não conseguia
acompanhar o ritmo dos demais, Diana tentava correr quando tropeçou em um monte
de entulhos e foi de cara no chão de barro.
— Eu odeio esses sapatos chiques! — reclamou Diana,
arrancando-os ali mesmo.
Tellum aproximou-se e ofereceu-se para carregá-la em suas
costas, mas a menina recusou.
— Não, eu... preciso aprender a caminhar com minhas próprias
pernas.
Tellum acenou
compreensiva, pois respeitava a decisão da garota. De seu peito ele retirou uma
medalha prata com a fita azul e prendeu-a no vestido preto de Diana.
— Essa é a primeira medalha que ganhei no exército. Ela não me
foi concedida por bravura, nem por tirar vidas, mas por excelência. “Sirva, e
guie nosso povo à vitória”, é o que está escrito ao redor dela. Guarde-a e
devolva-me quando tudo isso acabar, tudo bem?
Diana corou e concordou diversas vezes, jurando proteger
aquele tesouro com sua vida.
A família Mercer retomou sua fuga, o badalar do sino ecoava
como um prelúdio do desastre, era como se o céu estivesse prestes a cair e não
havia nada que pudessem fazer para impedir.
O centro estava um alvoroço completo — pobres e burgueses, as
quatro raças que viviam na capital tentavam sair ao mesmo tempo carregando
pertences e tesouros em suas carruagens, enquanto outros simplesmente lutavam por
uma sacola de pães.
Foi então que um grito estridente rompeu a muralha. A cidade
inteira se abaixou no instante que uma sombra negra cobriu a luz do sol. O que
parecia ser um enorme dragão acabara de cruzar o céu, sobrevoando bem alto e
estudando o território. Sua mera imagem causara terror e pânico naqueles de
coração fraco.
Mais um grito surgiu quando uma enorme pedra foi atirada de
uma das catapultas, colidindo contra a torre do templo de Araya que desmoronou
soterrando uma família de tótines. Os arqueiros puderam avistar os primeiros
sinais das criaturas horrendas que se aproximavam, um exército sem face criado
com o único propósito de lutar e destruir seus inimigos. Os Anons vinham
avançando, cavaleiros corrompidos cavalgavam em lobos gigantes e um monstruoso
Metarros pisoteava as pessoas como se fossem insetos insignificantes. A praça
principal fora completamente tomada.
Auria prometera que não iria mais chorar, mas agora ela transbordava
de lágrimas e soluçava alto, aqueles mesmos monstros assombrariam seus sonhos
mesmo depois de crescida.
— Mamãe, o papai vai ficar bem? — perguntou Lydia.
— Ele está
protegendo todos nós, querida. Fique tranquila — disse Floria.
— Eu sei, mas... quem é que vai protegê-lo?
As meninas olharam para cima quando o sol pareceu ser coberto
por uma peneira. Imaginaram tratar-se do monstruoso dragão, mas a sombra mais
parecia uma nuvem de pássaros pretos voando na direção do vento. Tellum foi o
primeiro a reconhecer o ataque e bradou com alarde:
— Escondam-se!
Os pássaros transformaram-se em flechas que passaram zunindo
pelas muralhas, acertando soldados e inocentes em seu caminho. Auria fechou os
olhos e tampou as orelhas, abrigando-se nos braços de Kiera que usou o próprio
corpo para protegê-la. Kamily começou a chorar desesperadamente ao ver sua irmã
morta com uma flecha atravessada em seu pescoço. As duas serviçais cuidavam da
família Mercer havia pelo menos treze anos, antes mesmo da chegada da
primogênita. Floria percebeu que precisava tirar suas crianças dali o quanto
antes.
— Tellum, ouça-me — disse a matriarca. — Durante todos esses
anos, eu confiei a segurança de minha família a você. Jure por tudo que há de
sagrado nessa boa terra que você irá cuidar delas por mim caso algo aconteça
comigo.
— A senhora sabe que eu daria a minha vida por elas —
respondeu Tellum com convicção. — Quando eu não tinha nada, os Mercer me adotaram
como se eu fosse um de vocês; arrancaram-me do lixo e deram-me dignidade,
compartilharam um espaço à sua mesa e deram do que comer. O que vocês fizeram
por mim, eu só poderia retribuir em outra vida.
Floria fez um aceno breve e voltou-se para a serviçal
sobrevivente:
— Quer vingar a sua irmã ou fugir e salvar sua própria vida?
A empregada tinha um semblante completamente diferente agora.
Kamily limpou o rosto sujo de vermelho e sacou uma adaga escondida que
carregava consigo.
— Só vou descansar quando encontrar esses vermes no Unferis!
Antes de partir em uma empreitada sem volta, Floria agachou
para ficar na altura de suas três filhas. As três desabaram a chorar, somente o
olhar severo de sua mãe teria intimidado um exército inteiro.
— Auria, Diana e Lydia. Cuidem uma da outra. Não me importa
se escolherem um marido ou terminarem solteiras, nem que mudem de casa ou
terminem perdendo contato com o passar dos anos; vocês jamais deixarão de serem
irmãs. Quero que zelem pelo próximo nas horas difíceis, que opinem e compartilhem
experiências para que as três cheguem muito longe e tornem-se mulheres
formidáveis quando se tornarem adultas. Vocês são Mercer e o futuro será
sempre brilhante.
Floria esticou os braços e as abraçou com carinho. Por um instante
foi como se o som da guerra fosse abafado, em meio àquele abraço elas já não
podiam mais ouvir os gritos de desespero e nenhum perigo teria rompido a magia
por trás daquele escudo protetor. Se
pudesse, nunca mais teriam saído daquele abraço que tanto lhes trouxera
conforto, mas o dever chamava.
— Eu e o papai estamos muito orgulhosos de vocês três. Sejam
corajosas. Mamãe ama tanto vocês que nem cabe no meu coração!
— Por que você está falando isso? — disse Lydia com a voz
entristecida. — Parece que nós nunca mais vamos nos ver...
— Você já é uma mocinha — respondeu Floria, acariciando seus
cabelos. — Como mais velha, tome conta dessas duas sapequinhas. É a sua
obrigação. Se não fizer isso, vou jogar uma maldição que fará o príncipe
encantado nunca mais querer sair com você.
Lydia arregalou os olhos e se recompôs, prometendo que iria
fazer de tudo para protegê-las.
Tellum pegou Auria no colo e correu na direção oposta, seguido
por Lydia e Diana que não parava de olhar para trás. Floria levantou-se por fim
e contemplou sua família uma última vez.
— Minhas pequenas pedras preciosas.
i
Assim que Floria alcançou a praça principal da capital, as
tropas de Cortina Escarlate já encontravam dificuldades em repelir o exército
dos sem face. Os Anons eram numerosos demais, e mesmo que desabassem aos montes
e deixassem para trás uma pilha de corpos feitos de madeira e palha, uma legião
dessas mesmas criaturas apoiava-se nos cadáveres para escalar as muralhas e
invadir a cidade. Sua resistência fraca era compensada por uma armadura rígida
e a sede insaciável de cumprir com seu objetivo. Se lhes fosse ordenado invadir
a cidade, eles não parariam até que não sobrasse nada — não sentiam medo para
recuar, não precisavam alimentar-se e nem conheciam compaixão, uma das criações
mais cruéis e ingênuas daquele mundo, podendo ser moldadas de acordo com as
necessidades daquele que os liderasse.
Floria avistou seu marido entre os combatentes, Dalson
erguia-se como líder absoluto portando o estandarte vermelho de sua cidade.
Enquanto aquela bandeira estivesse de pé, Cortina Escarlate resistiria.
— Querido! — Floria beijou-o de forma doce na testa ao
alcançá-lo. — Não importa o que você dissesse, eu viria para protegê-lo! Nem
mesmo diante da ordem do Rei ou da vontade das entidades divinas eu me
afastaria de você.
— Onde estão nossas filhas? — perguntou Dalson.
— Seguras e a salvo.
O homem revelou um sorriso discreto.
— Então podemos lutar com tudo que temos. Venha, minha
esposa, você é a inspiração que me faltava!
Floria sacou sua aljava e um arco dourado encrustado com
pedras prateadas, a famosa arma passada de geração em geração pela família
Mercer. Dalson brandiu sua espada e vestiu o capacete, quando olhou para o lado
e viu a mulher, perdeu-se completamente em sua beleza e sentiu sua motivação
crescer.
Um baque veio do portão. Os soldados se posicionaram com suas
lanças. Uma nova saraivada de flechas foi disparada, mas dessa vez eles estavam
bem protegidos com seus escudos. Kamily certificara-se de que sobreviveria
tempo o suficiente para saciar sua sede de vingança. Outra pancada irrompeu
pelo portão diante da força esmagadora de um exército que não conhecia limites.
Flechas com a ponta vermelha zuniram pelo vento e derrubaram toda a linha de
frente das marionetes sem face, mas outras logo as substituíram e elas
continuaram a correr num frenesi incontido.
Os soldados de Cortina Vermelha repeliram as três primeiras
ondas do exército do Cavaleiro Negro. A bandeira escarlate se agitava diante
das cortinas que ardiam em chamas e contornavam as muralhas da cidade. O
Metarros prostrou-se diante do portão, avançando com fúria e descontrole. Aquela
espécie ameaçada em extinção descendia dos antigos Dinorros, mas estava armado
para a guerra tinha a força para derrubar uma casa com suas patas gigantescas.
— Atirem! —
ordenou Floria.
Outra saraivada de flechas zuniu contra o inimigo, criando um
cobertor pontiagudo que penetrou fundo na pele espessa do Metarros, porém, a criatura
não parou de avançar. Com seus mais de oito metros, ele continuou a disparar
contra a linha de frente e romper escudos, abrindo uma fresta nas defesas do
batalhão dos Mercer.
— Você acha que irão lembrar-se de nossos nomes na história? —
perguntou Dalson.
— Querido, nós seremos lembrados de qualquer maneira. Somos
Mercer.
Floria atirou sua flecha dourada que penetrou fundo na
couraça do Metarros. O projétil encantado ia e voltava para sua senhora,
podendo ser disparado mil vezes. Diziam que a alma de um tótines habitava em
seu interior e a flecha não obedeceria nenhum outro mestre que não pertencesse
à família.
O monstro cambaleou antes de tombar para frente, uma trágica
fatalidade para uma espécie tão rara. Os soldados mal tiveram tempo de
comemorar, pois a chegada de um novo inimigo ofuscou as comemorações — ele revelou-se
diante da cidade inteira, monstruoso e assustador com sua clava de metal grossa
e espessa feita um tronco de árvore. Sua máscara deixava exposta apenas um
pequeno par de olhos vermelhos, muitos alegavam ser impossível matá-lo porque seu
coração lhe fora arrancado havia muito tempo. Ele era Vias Cruzadas, o líder
dos Anon e braço direito do Cavaleiro Negro na guerra, um Sem Rosto que a própria
morte provavelmente já se esquecera de levar.
Um único golpe de sua clava abriu uma cratera no chão, esmagando
um homem como se ele fosse feito de massinha. O monstro bateu as mãos enormes contra
o peito feito um gorila e avançou contra a barreira de soldados com ferocidade.
Cem lanças e espadas não puderam atravessar sua armadura, ele rompeu a linha
defensiva dos Myridianos, quebrando e destroçando tudo ao seu redor. Ao seu
lado havia também um assassino contratado vestindo chapéu coco, ele era ágil e
agia nas sombras, atacando desatentos, cortando gargantas e deixando para trás
corpos como um alerta de que o Cirurgião Letal fizera sua passagem por ali.
Dalson e Floria continuavam a combater a horda de monstros
que atravessavam pelo portão. Seus homens eram corajosos, mas não aguentariam
por muito tempo.
— Kamily, chame a atenção daquela besta! — ordenou Floria.
A serviçal colocou-se de frente ao general inimigo. O líder
dos Anon não deu indícios de que iria parar, Kamily retirou um selo de seu
avental e posicionou-o no chão de forma que um escudo mágico projetou-se em sua
frente, disparando uma explosão de energia que impediu a passagem de seus
inimigos momentaneamente. Vias Cruzadas ficou atordoado tempo o suficiente para
que Kamily escalasse sua clava, correndo sobre ela com a precisão de um artista
de circo. A serviçal enfiou sua adaga inúmeras vezes na máscara da criatura que
urrou de dor, incapaz de arrancar aquele parasita indesejado de suas costas
— Cuidado! — gritou
Floria apavorada.
Vias agarrou o corpo da empregada e o arremessou contra uma
parede. Kamily colidiu com força e sentiu seus ossos se partirem, não houve
tempo sequer para que ela fosse resgatada, pois o assassino de chapéu coco se
alastrou por trás dela e a apunhalou com um único golpe mortal, cortando sua
garganta na sequência. Kamily tossiu sangue e seus olhos perderam foco, ela
sorriu satisfeita, pois em breve se juntaria a sua irmã.
— Eu detesto essas armas pequenas, nunca as vemos chegando
até que seja feito um estrago — disse Somenar enquanto verificava a qualidade
da adaga roubada de Kamily. — Ora essa, de que estou falando? São as minhas
preferidas!
Somenar provou o sangue com a ponta da língua, voltando a
atenção a Floria Mercer e seu marido que se recompunham do choque em perder uma
amiga tão antiga.
Dalson sentiu seu coração bater mais depressa. Sua mulher
estava exausta, embora ainda exalasse coragem e determinação. Quanto maior o
desafio, mais uma Mercer se impunha perante ele.
— Mulher — chamou Dalson.
— O que foi? — ela perguntou, aturdida.
— Você sabe que eu te amo, não é?
— Tem que ser agora? Você sabe como fico quando o ouço falar
assim comigo!
Em seus olhos, Floria ainda era a menininha que corria de
saia e lhe trazia pão na janela. Os anos passaram e seu amor por ela não mudava.
Os anos pareciam lhe fazer bem, com a idade vinha também novas
responsabilidades e marquinhas de expressão; Floria podia estar descabelada e
imunda que seu marido sempre a acharia a mulher mais maravilhosa do reino.
— Eu não acredito no que estou vendo. É a família Mercer! —
berrou Somenar. — Isso não é romântico, Vias? Vir para a guerra com sua pessoa
amada e morrer do lado dela?
— Vias não gosta de romance — respondeu o monstro com a voz gutural.
— Pois eu amo. O
sabor é sempre — o assassino lambeu os beiços e limpou o sangue da adaga em seu
jaleco escuro — diferenciado.
Floria não era o tipo de mulher que levava ameaças para casa.
Ela sacou a flecha dourada e disparou-a em direção de Somenar que só sentiu o
vento passar na altura de seu bigode. O tiro de alerta atingira Vias em cheio no
ombro, aquele fora o disparo mais rápido que vira em sua vida.
— Uau. Minha nossa. Isso foi incrível — admitiu Somenar com
uma risada histérica. — Vias, meu bom amigo, encontramos adversários a nossa
altura. Papai vai ficar tão orgulhoso!
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O barco que levaria as filhas dos Mercer em segurança para a
Ilha dos Geckos já estava atracado na costa, Tellum traçava um plano de busca
atrás de um refúgio secreto onde pudesse repousar até que a batalha em Cortina Escarlate
fosse decidida. A vida das crianças estava em suas mãos e ele faria o possível
para que elas crescessem longe de conflitos.
Auria abraçava sua boneca Rafaela, seu único consolo no
momento; Lydia esperava que a nova casa fosse perto de algum shopping ou que ao
menos tivesse uma banheira tão grande quanto a antiga; Diana ainda observava o
fogo e a fumaça subir da cidade onde vivera toda a infância. Cada uma das
meninas encarava a dificuldade à sua própria maneira, dada a circunstância e a
maturidade que a ocasião permitisse.
Tellum exalava tensão quando Diana sentou-se ao seu lado e
tocou sua mão, oferecendo-lhe um olhar cheio de esperança.
— Quando papai e mamãe voltarem, vou pedir para que eles deem
menos trabalho pra você — disse Diana. — Você está muito cansado, Tellum,
precisa dormir mais.
— Você tem razão, devo parecer mais velho do que sou —
respondeu o rapaz com um sorriso. — Não se preocupe, mesmo com todo o trabalho
e obrigações, prometo arranjar tempo para brincar de boneca com vocês.
— Eu não quero que você brinque de boneca, quero que você me
treine! — afirmou Diana com convicção. — Eu quero lutar como papai e mamãe para
defender as pessoas que precisam!
— Uau, ainda há pouco lembro-me de vê-la pedir brinquedos e
livros de aniversário, e de repente você está tão... crescida! — falou Tellum. —
Ouça, eu não preciso colocar uma arma em sua mão para treiná-la, mas prometo
que irei ensinar tudo que sei, aprimorar seus estudos e cuidar para que façam a
escolha certa. Vocês três serão formidáveis quando crescerem, cada uma com suas
respectivas habilidades e sua própria maneira de ajudar. Vocês podem ser
princesas, guerreiras ou heroínas, pois garanto que farão seus pais orgulhosos.
Neste instante, um pequeno raio percorreu o céu e aterrissou
no chão de terra como se fosse uma estrela cadente no céu escuro de fumaça e
cinzas. Lydia foi a primeira a levantar-se correndo para ver o que se tratava
aquela joia tão brilhante e percebeu se tratar de uma flecha dourada que ainda
tremeluzia como se tivesse vida própria.
— É da mamãe — disse Lydia para suas irmãs.
As três voltaram a atenção para a cidade. Aquele Amuleto
Sagrado era um presente que deveria ser herdado pelo primogênito caso algo de
grave lhe acontecesse, e Floria sabia que onde quer que elas estivessem, a flecha
encontraria seu novo dono.
Naquela época, Auria não compreendia porque suas irmãs desataram
a chorar compulsivamente. Ela apenas jurou que nunca mais pegaria em um arco e
flecha.
NOTAS DO AUTOR
Este especial foi escrito em meados de 2017, antes mesmo que o Livro 2 tivesse sido finalizado. É curioso pensar que todos os capítulos dO Passado dos Personagens já foram postados, mas alguma coisa me impedia de compartilhar o da Auria. A Parte 2 para vocês terem ideia foi escrita em 2015. Noite passada, dia 14 de Maio de 2020, eu reescrevi a Parte 3 completamente. Dessa vez o resultado ficou do meu agrado. Ufa!
Sendo separado em três partes, eu nunca me senti satisfeito com o peso emocional que esse especial teria na vida da Auria, tentei falar das dificuldades da infância dela e me vi constantemente falando sobre bullying, mas parei para pensar: "Será que era isso mesmo que a Auria faria? Será que ela sofreu porque alguém a maltratou?" No Livro 2, a Auria confiante e durona que conhecemos no primeiro livro muda da água para o vinho, conheceremos uma versão de nossa guerreira mais frágil e humana. E este especial não poderia sair em boa hora. Está na hora de voltarmos ao começo, quando sua cidade natal foi destruída e as Mercer se viram órfãs da guerra.
Este capítulo também conta com algumas aparições especiais que só darão as caras como antagonistas no Livro 2... Espero que gostem de conhecer um pouco mais da vida de Diana, Lydia e Auria ainda pequenas, tentarei manter um curto intervalo entre as postagens, e o que posso dizer por ora é que o desenvolvimento da parte gráfica de Matéria - Alma de Diamante, já teve início! Forte abraço.
Quem duvidou que esse especial iria existir se ferrou muito hahahahsga
ResponderExcluirYoo Canas, cá estou eu de volta nas terras de Sellure (eu estava devendo um comentário, coisa feia Star hahshahah)
A Auria de 3 anos deve ser muito MUST PROTECC bro, é tão fofinho ver esse lado mais inocente e infantil, a gente conhece a Auria porradeira adulta e acha que ela sempre foi assim.
Na verdade, acho que quem lê esse especial se sente mais próxima da nossa querida Alma de Diamante, é como se as peças se juntam-se aos poucos e formassem o que conhecemos da Auria.
A BONECA RAFAELA MANO, EITA QUE REFERÊNCIA MARAVILHOSA <3
É legal ver que a Diana e a Lydia sempre tiveram suas personalidades pré-prontas, a Di como uma excelente estrategista e a Ly sendo a Ly hahahaha Eu amo essa mulher. O que mostra pra gente que a Auria acaba realmente tomando todo aquele impacto da guerra. E pensar que o cavaleiro no cavalo branco é na verdade o Tellum.
E por falar em Tellum, eu adoro personagens guarda-costas. A gente sempre vê aquele rosto sério nas sombras de alguém, mas no final eles tem os melhores plots (principalmente para um romance, mas quem sou eu pra falar)
Tellum realmente me chamou a atenção e vou adorar saber mais dele.
MEU BEBÊ VIAS, NÃO;-; PQ FAZ ISSO COMIGO? Eu não mereço isso. Como vou proteger meu gigantão agora?
SOMENAR, MORRA IMEDIATAMENTE
Cara, esse especial é um prato cheio pra quem leu o livro 2, e pra quem não leu, recomendo ler e voltar aqui tão revoltado quanto eu hahshahsgah
Eu gostei em como você retratou a mortes do Dalson e Floria de forma sutil e inocente, talvez traumatize menos o leitor, ou não, esse especial está apenas começando hahshahshah (to rindo de nervoso)
MUST PROTECC AURIA
Obrigada pelo capítulo Canas, e desculpa por não estar tão presente por aqui </3
See ya
As terras de Sellure ficam mais iluminadas em sua presença, Srta. Estrela <3 Obrigado por todo o carinho e atenção que você colocou nesse comentário, eu adoro escrever os especiais do Passado dos Personagens e às vezes fico triste de precisar restringi-los ao blog por conta das limitações de um livro impresso, eu não poderia aumentar mais 100 páginas cheias de acontecimentos passados sem parecer uma bagunça total, ainda que cada uma dessas cenas carregue um valor emocional enorme para os respectivos personagens.
ExcluirEu acho engraçado que sempre imagino a Auria de cabelo curtinho. Será que consigo desenhá-la com essa idade? MUST TRY! Rafaela é aquela referência que só quem tá me acompanhando a vida inteira vai saber identificar kkkkkk Sdds, Aleafar.
Fico feliz que tenha ficado bem nítido mesmo com poucas conversas entre elas que cada uma das meninas já tinham sua personalidade bem definida, de certa forma essa é a introdução da Diana e a Lydia para alguns leitores, e a guerra as afetou de diferentes formas.
Como sempre, eu vivo fugindo de cenas de ação e mortes, faço um corte súbito porque não sei escrever esse tipo de coisa (falou o cara que matou meio mundo em Sinnoh kkkk), mas é verdade, eu prefiro esse tipo de transição sutil onde o leitor apenas compreende que alguém não vai mais voltar, sem precisar recorrer a exageros ou violência gratuita.
Ah, e esse Tellum é mesmo uma figura interessante, não sei se vai rolar a chance de formar um casal, mas a mão de shippar chega a tremer kkkkk Agora que alguns dos antagonistas já foram introduzidos acho que posso começar a postar a ficha deles também! Obrigadinho por dedicar seu tempo para vir comentar. Sinto sua falta por aqui, volte sempre puder :')
KID AUREA É TÃO FOFINHA
ResponderExcluirPEQUENA AURIA NOS SALVA DOS PERIGOS E AFLIÇÕES DA GUERRA!
Excluir*realizes I haven't been on the page for a while*
ResponderExcluir*goes and sees Auria's past*
What
the
FRICK?!
OMG. DUDE. I HAD NO IDEA. WHAT DID I READ
:V
*
Glad to see you here again, dude! Yeah, Auria's past is the one I took longer to write because it was much more personal and complex than the others, and many things here connects with what happens in Book 2. There is war, her sisters show up for the first time and many doubts began to show as she grow up alone without her parents. I hope you have a good time reading the other two parts! <3
ExcluirI am legit shook, WOOOW did I not expect this, and omg, she uses her armor powers to PROTECT THE PEOPLE CAUSE SHE COULDN'T PROTECT HER FAMILY OMG
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