O Passado dos Personagens - Auria (Parte 2)
A garota
observava o movimento ao seu redor, isolada no canto do salão segurando um copo
com suco de uva. Estava atenta às pessoas que passavam em sua frente,
conversavam e riam contentes de assuntos que ela não compreendia. Ouvia com
frequência elogios, bajulações e ficava apreensiva toda vez que era obrigada a
sorrir e cumprimentar gente com um beijinho no rosto como se fossem amigos
íntimos. Tentou tomar um pouco de suco, que acabou por escorrer e caiu em seu
vestido deixando uma mancha enorme que se espalhou. Para coroar o seu dia,
agora ela era a “garota de vestido manchado” da festa.
Era um casal composto por um homem elegante de cartola, barba bem feita e uma ilustre bengala com a cabeça de um corvo, a esposa por sua vez usava um longo vestido de pelos brancos e acessórios com joias preciosas. Eles se dirigiram à garota e o homem estendeu-lhe a mão para
cumprimentá-la.
— Você deve ser a Auria, correto? —
perguntou o cavalheiro. — A “pequena” irmãzinha de Lydia Mercer.
Auria media quase um metro e setenta aos
quatorze anos. E se havia algo que ela detestava, era deboche. Limitou-se a
revelar um sorriso forçado, para não parecer mal educada.
— É um prazer conhecê-la, querida —
respondeu a esposa com um aceno gentil, beijando-a dos dois lados da bochecha. —
Sua irmã nos proporcionou uma festa realmente incrível! Ela é uma mulher e
tanto, representa com grande estilo o sobrenome de sua família. Espero que você
possa se tornar algum dia como ela, docinho.
Auria procurou agradecer como pôde.
Quando o casal se distanciou, podia estar ficando louca, mas jurou ter ouvido: Viu só como ela é desastrada? E que aparência
precária.
Olhou para suas
vestes e reparou que nunca fora muito envolvida com moda, muito menos um
exemplo de graciosidade. Escolhera um vestidinho azul e sapatilhas, dando
destaque para seus longos cabelos negros e ondulados com uma presilha pouco
acima da orelha direita. Não imaginava que alguém em sã consciência perderia
tempo julgando sua aparência ao invés de cuidar do próprio nariz. Quando suas
irmãs disseram que seria uma festa de grande pompa, as duas ficaram divididas:
“Irmã
minha não pode se vestir feito uma garotinha de quatorze anos. Ela já é mulher
para escolher algo melhor do que isso!”, Lydia berrava em sua orelha,
sempre autoritária e mandona.
“Essa é
a questão. Ela TEM quatorze anos, Lydia, você mesma disse. Não tente fazê-la ficar que nem
você. Deixe-a ir como bem desejar, ela continuará linda de qualquer maneira”,
Diana respondia com tranquilidade, procurando consolá-la.
Auria só conseguia pensar na hora de ir
embora. No fim das contas, optou por um meio termo entre os dois estilos, para
que nenhuma de suas irmãs viesse torrar sua paciência no dia seguinte quando os
burburinhos começassem. O lápis e o rímel faziam seu olho arder, os brincos
pesavam e nem conseguiu imaginar como estaria de pé se realmente tivesse ido de
salto, porque aquilo já seria demais. Tomou uma golada de seu suco de uva para
terminá-lo logo e começou a andar pelo salão. Esgueirou-se entre convidados e
suas acompanhantes luxuosas, as mulheres que viam Auria passar por perto
soltavam um suspiro afeiçoado ao sussurrarem: “Veja só, ela já é uma mocinha!”
Uma orquestra contratada para tocar
música clássica enquanto políticos e pessoas importantes do alto escalão de
Constantia discutiam quais seriam os próximos passos a serem tomados na guerra.
Eram tempos pacíficos, embora houvesse uma ameaça crescente no sul, um fantasma
conhecido apenas como Peste Negra que realizava pequenos ataques a grupos de
viajantes desatentos, nada de grande urgência.
Auria passou por uma mesa com quatro
homens quando ouviu alguém chamá-la. Eles bebiam um vinho da melhor safra cultivado
em Perpetua e fumavam charutos soltando baforadas fedidas na cara dos
convidados enquanto discutiam política.
— Ei, só um minuto — disse um deles. — Você
é a irmã mais nova da Lydia e da Diana, não é?
Auria fez que sim com a cabeça.
— Sim, senhor.
— Pode me chamar de Lloyd. Nome meio
estranho, um pouco incomum por essas bandas, sei disso. Escreve-se com dois L,
Y no meio e D mudo no final. — O sujeito respondeu de uma maneira que soou mais
gentil do que ela teria esperado. — Acredito que sua irmã fez um teste semana
passada para tentar uma vaga como ajudante de escritório em meu batalhão, ela
mandou muito bem.
— Isso é ótimo. Espero que ela consiga a
vaga. Diana é muito esforçada.
— E você está com quantos anos agora? Dezoito,
dezenove?
— Quatorze.
— Eita. — A expressão no rosto de Lloyd
foi impagável. — Achei que você fosse a irmã do meio. Quando completar quinze anos
então, poderá iniciar seus treinamentos conosco, maravilha! Tem vontade de ingressar
no exército também? Posso conseguir uma vaga para você.
Auria deu de ombros, indiferente.
— Ainda não sei o que quero fazer.
— Não me diga que pretende seguir o mesmo
caminho que a Lydia? — O general olhou para os lados e chegou bem perto do
rosto da menina, fazendo-a corar. — Eu sei que ela trabalha na mídia e todo o
reino literalmente a idolatra, sua
irmã é uma celebridade! Mas, com todo respeito, nós dois sabemos como ela é... difícil de lidar.
Auria riu, talvez porque também
concordasse.
— Oh, por Araya, eu nem deveria estar
falando uma coisa dessas para a irmãzinha mais nova dela!
— Não esquenta, a Lydia consegue ser
insuportável quando quer — Auria também riu e ergueu os ombros. — Coisa de irmãos
mais velhos. São sempre uns idiotas.
— Eu sou o mais velho da minha família.
— Ah. Desculpe.
— Sem problemas, às vezes eu bato no meu
caçula quando ele enche o saco mesmo. Pense bem no seu futuro, acredito que haja
muito potencial por trás desses ombros encolhidos — continuou Lloyd, ouvindo um
chamado de seu superior que o obrigou a encerrar a conversa. — E a propósito, gostei do vestido.
Auria não soube dizer se ele estava só
sendo irônico ou tentando ser engraçado.
— Boa sorte em sua jornada, seja ela qual
decida seguir. Estaremos esperando.
Auria ainda estava com o copo vazio em
sua mão para conter o nervosismo, porque nunca sabia o que fazer com suas mãos.
Sentiu alguém segurá-la pelo braço outra vez, será que ninguém ali respeitava
os limites de espaço? Se fosse Lydia, já esperava uma bronca daquelas sem
motivos aparentes, mas ficou surpresa ao encontrar Diana com o semblante que
lhe transmitia tanta tranquilidade e segurança.
— Te encontrei — Diana sorriu, ajeitando
seu cabelo para trás. — Estava conversando com quem?
A menina apontou para os homens do governo
sentados na mesa. Diana acenou para eles e pediu que ela a seguisse.
As duas caminharam para fora do salão
onde a música e as conversas sobre negócios não incomodassem ninguém. Ela guiou
Auria por um belo jardim até uma tenda com cortinas brancas e bancos de madeira
refinados. As irmãs se sentaram e Diana retirou o copo de vidro das mãos da
menina, sem fazer alarde ou culpá-la por um acidente comum feito aquele.
— Você está tão nervosa que não consegue
nem largar o copo — disse a mais velha. Com um paninho úmido retirado de sua
bolsa, o borrão fora parcialmente ocultado. — O que aconteceu?
— Eu só quero ir embora — respondeu Auria
com a voz distraída. Ela continuava evitando contato visual. — Vai demorar muito?
— Bem, a Lydia é a anfitriã, ela terá que
ficar até o final da festa e isso pode levar algumas horas — Diana soltou um
longo suspiro. — Quer que eu te leve para casa?
Auria fez que sim com a cabeça. Sua irmã
chamou a carruagem que as levaria de volta, o mais difícil seria explicar à
dona da festa porque as duas não estariam mais lá para socializar com as
visitas que estavam ansiosas por conhecer a família Mercer.
Quando a carruagem chegou, um enorme
sorriso formou-se no rosto de Auria ao reconhecer o cocheiro.
— Qual o destino dessas duas lindas
senhoritas?
— Tellum! — disse a garota, pulando na
parte da frente para abraçá-lo.
— Vamos para casa. Eu preciso arrancar
esse vestido — disse Auria, já tirando o salto alto e os brincos. — Você cuidou
de mim por tanto tempo que nem sinto mais vergonha de você, Tellum, mesmo sendo
um homem.
— Senhorita Auria, sua única preocupação
quanto à minha pessoa é quando você arranjar um namorado. Sinto que vou
assustar todo garoto que tentar aproximar-se da senhorita — respondeu o
segurança, revelando um canivete. — E se alguém vier a perturbá-la outra vez, por
favor, avise-me.
Auria riu e finalmente pôde relaxar,
esticou as pernas para cima do apoio na carruagem e não deu a mínima se estava
de vestido ou não. Elas estavam de partida quando Diana foi surpreendida por um
chamado agudo que a fez revirar os olhos.
— Eu não acredito no que estou vendo!
Lydia estava deslumbrante com seu vestido
de gala, seus cabelos estavam tingidos de loiro e a maquiagem impecável, seu
rosto não tinha falhas, mas estava tão carregado que vê-la sem nada poderia
assustar até mesmo o mais corajoso dos monstros. Seus acessórios brilhavam como
diamantes e ela desfilava no jardim de pedras entrepostas como uma modelo pela
passarela. Auria tentou esconder-se, porque não queria ficar na festa até a
manhã seguinte rodeada de pessoas que não gostava e ouvindo tormentas incessantes:
“nossa como você cresceu!”, “já arrumou um namoradinho?”, e “por que não tenta
agir mais como as suas irmãs?”.
Lydia caminhou até elas e seu olho mágico
imediatamente identificou a mancha no vestido.
— Que coisa mais horrível — ela encheu a boca para dizer. — Volte agora mesmo para
casa e troque já isso.
Auria suspirou, aliviada.
— Vamos demorar um pouco — respondeu Diana.
— A Auria não está passando muito bem, vou dar alguns remédios e volto assim
que puder. Se não melhorar, ficarei com ela em casa.
— Ótimo. Faça isso, estou atolada de
coisas para fazer! Não sei se repararam, mas Lorde Raito está na festa e essa é
a chance perfeita de fisgar o coração dele.
— Você já não está tentando chamar a
atenção desse cara há um tempão? — Auria perguntou. — Por que tentar
desesperadamente conquistar o coração de alguém que não gosta de você?
— Ora, e uma Mercer algum dia já desistiu
de seus objetivos? Nós sempre conseguimos o que queremos! — disse Lydia com uma
risada. — Agora, se me derem licença, meus convidados me aguardam. — Ela beijou
o rosto de Auria, e pelo menos isso ela sempre fazia com carinho. — Cuidem-se, minhas
queridas. Sua irmãzona precisa trabalhar.
A carruagem zarpou, guiada por quatro
cavalos e Tellum que as levou para casa em menos de vinte minutos. Auria não
tirou os olhos da janela, Diana observava cada detalhe de acordo com suas
expressões corporais, pois se desejava trabalhar com pessoas e soldados no
exército, precisava entender e compreender da melhor maneira suas reações para
arquivar os melhores resultados no batalhão. Vinha estudando duro psicologia e
estratégia para se destacar nas provas classificatórias, e pôde se gabar ao
conquistar a primeira posição em sua turma.
— Algo ainda a aflige e não é só uma
mancha no seu vestido — afirmou Diana.
Auria continuou olhando pela janela.
— Eu não quero fazer quinze anos.
— Todos nós passamos por essa idade, mas
é só um número — Diana riu. — Você quer uma festa igual às outras garotas? Se
quiser, acho que a Lydia consegue pagar com a poupança do papai e da mamãe.
— Céus, nunca! Só de pensar em colocar
aqueles vestidos pomposos e ter que escolher música, doce, amigos para
dançar... Acho que nem tenho tanto amigo assim. Eu não quero crescer e ter que
assumir tantas responsabilidades, tudo tem sido tão difícil...
— É uma data marcante, pois representa
uma transição para a vida adulta. Você terá a responsabilidade de escolher como
contribuir para o reino e nossa raça. Você é tão inteligente, Auria, aposto que
enfrentará todos os desafios com facilidade e logo estará ao nosso lado.
— E se eu não quiser ser que nem vocês?
Diana surpreendeu-se com sua tonalidade.
— Bem, você não precisa. Ou melhor, você
não é. Em seu devido tempo você encontrará seu próprio caminho, sua aventura. Ninguém a está obrigando a entrar para o exército ou tornar-se um ídolo da
mídia. Você é uma Mercer, está em seu sangue ser uma pessoa incrível.
— Eu não queria precisar de um futuro
brilhante para ser reconhecida — disse a menina, constrangida —, mas parece que
todos sempre me conhecerão como “a irmã mais nova dos Mercer”. Todos estão
esperando algo grande vindo de uma Mercer. Querem que eu continue o legado.
Diana saiu de seu assento e sentou-se ao
seu lado, tocou-lhe o rosto e a deitou em seu peito de forma suave. Auria
fechou os olhos e começou a chorar, estava assustada e perdida, muitos jovens
passavam por uma crise aos quinze por terem de ser obrigatoriamente
encaminhados para um centro de treinamento antes de servir o reino.
— Nós estamos aqui — disse Diana,
acariciando seus cabelos. — E vamos te ajudar no que for preciso, sempre.
— Mas quando eu fizer quinze anos ninguém
pode me ajudar, eu vou estar sozinha — Auria disse com a voz trêmula, manchando
o vestido de sua irmã com lágrimas. — Eu vou ficar sozinha para sempre...
— Não vai. Eu estarei sempre aqui para
protegê-la, ouviu? Eu e a Lydia. Nós te amamos muito, nunca se esqueça disso.
— E tem eu também, se é que isso serve de
consolo — riu Tellum no banco dianteiro, o que fez as duas rirem e quebrou o
clima de tensão. Auria pulou em seus ombros para abraçá-lo, beijando seu rosto
para deixar ali marcas de batom propositais.
— Isso faz toda a diferença, Tellum!
i
Auria arrumava o armário em seu quarto à
procura das roupas que levaria na viagem. Ainda faltavam alguns meses para que
fosse encaminhada para o centro de treinamento em Century, a Vila das Pérolas,
mas Lydia já a obrigara a deixar tudo organizada para que não houvesse imprevistos.
Ela não era um dos melhores exemplos de organização, todos seus pertences costumavam
ficar jogados pelo quarto e as roupas formavam pilhas sobre pilhas sobre a
mesa, o sofá e até a cama até que não houvesse mais onde sentar. Seus pertences
ficavam todos enfiados no armário que ela nunca permitia ninguém mexer, somente
Auria sabia se localizar em sua própria bagunça. Ocasionalmente sua irmã
ordenava que as empregadas fizessem uma limpeza e este era o único vislumbre de
organização que um dia tivera.
Passara os últimos trinta minutos
procurando uma jaqueta preta que estava debaixo de uma montanha de roupas
passadas. Retirá-la dali seria um desafio e tanto. Ao tentar puxá-la, uma
enxurrada de roupas sujas despejou sobre ela. Auria empurrou tudo de volta para
o mesmo lugar quando notou algo perdido — havia uma boneca ali, uma companhia
que ela esquecera completamente da existência havia pelo menos dez anos.
— Oi, Rafaela — disse Auria meio sem
jeito, como se conversasse com um estranho.
Loira, corpo escultural, olhos azuis e o clássico
sorriso no rosto. Por algum motivo lembrou-se de Lydia, era como se sua irmã
tivesse saído diretamente de uma fábrica que a moldara exatamente como deveria
ser. Lembrou-se de quando eram crianças e ela também tinha os cabelos escuros
como um véu negro, mas agora ela ia todas as semanas no cabelereiro para ter
certeza de que nenhum fio preto apareceria.
Ao mesmo tempo em que a boneca era bela e
atraente, Auria começou a imaginar o quanto ela devia sofrer por sempre
precisar manter aquela cara de simpática mesmo quando se sentia triste ou
emburrada. Qualquer um que a comprasse seria recebido pelo belo sorriso, mas e
se ela não tivesse vontade de sorrir? Julgara que as pessoas que conhecera na
festa também eram pessoas artificiais, mas e se elas estivessem apenas
escondendo sua tristeza atrás de um sorriso?
Surpreendeu-se quando ouviu alguém bater
na porta. Auria escondeu a boneca no meio das roupas sujas e a empurrou para
dentro do armário, torcendo para que Lydia não visse a bagunça e gritasse de
pavor. Para sua sorte, era apenas Diana.
— Oi. Está ocupada?
— Não — disse Auria, precisando conter o
armário com os braços antes que ele explodisse.
Diana ergueu uma das sobrancelhas, bastou
alguns segundos para que o armário inteiro abrisse e desabasse pilhas e mais
pilhas de roupas, sapatos, acessórios, brinquedos velhos e utensílios em cima
da garota. Diana riu e trancou a porta para que ninguém as perturbasse nas
horas seguintes.
— Deixe-me ajudá-la com isso, irmãzinha.
Diana sentou-se no chão ao lado da irmã e
começou a dobrar uma peça de roupa de cada vez com calma e paciência, colocando
as sujas para lavar e separando as demais por cor, formato e degradê. Era assim
que ela vinha ganhando a atenção de seus superiores, desde que fora aceita vinha
se destacando por seu jeito metódico e a facilidade de lidar com pessoas. Enquanto
muitos surtavam durante as provas e testes, era o momento que Diana mais se
destacava com eficiência por saber trabalhar sob pressão.
A montanha de pertences foi diminuindo
até que elas encontraram a boneca perdida, o que fez Auria corar. Nenhuma
garota de quatorze anos ainda brincaria com bonecas.
— I-isso não é meu, só pra avisar — ela ainda
tentou arrumar uma desculpa. — Só peguei para doar. Vou me desfazer de tudo.
Diana riu e acariciou os cabelos da
boneca.
— Poxa, mas é a Rafaela, você não largava
dela quando tinha uns três anos... Sabe, como eu nunca gostei da maneira
tradicional como as meninas da minha escola se divertiam, eu costumava dizer
que as minhas bonecas eram as vilãs da história.
— Como assim?
— Olhe só para elas... Esse sorriso
maligno no rosto. É como se elas estivessem o tempo todo planejando uma
vingança contra seus donos.
— Eu estava pensando justamente nisso!
As duas riram e Diana engrossou a voz,
fingindo ser uma temível vilã:
— “Eu vou atacá-la com meus poderes de
maquiagem artificial e fazê-la menstruar três vezes por semana, todos os dias
da sua vida! Muh-hah, hah, hah!” — disse ela, fazendo cócegas na irmã. — Vai
querer guardar a boneca?
Auria riu do comentário e abraçou sua
irmã com carinho.
— Sim, ela parece a Lydia. Eu sei que
nossa irmã é uma boa pessoa. Eu tenho sido dura com
ela... A Ly também enfrenta dificuldades, ainda a ouço chorar de noite quando
sente falta de nossos pais. Acho que eu costumava pensar que quando crescesse
todos meus medos desapareceriam de forma milagrosa, mas depois de refletir um
tempo, eu descobri que os adultos não têm controle de nada também, mas fingem
que está tudo bem.
— Isso foi... profundo. E quando você
chegou a essa conclusão?
— Na madrugada passada. Tive uma crise de
ansiedade e não consegui dormir.
— Oh, interessante. Fico feliz que
crescer já não lhe pareça uma tarefa tão assustadora. Em breve você estará
iniciando os estudos na Vila das Pérolas e, quando voltar, aposto que será uma
pessoa transformada!
— Será? — Auria indagou desconfiada. —
Ainda não faço ideia aonde eu pertenço. Eu me espelho muito em você, Dia. Você
tem um namorado, uma carreira profissional em ascensão, sabe falar sobre tudo!
Se eu fosse um pouquinho mais parecida com você, as coisas seriam mais fáceis,
mas acho que eu sempre serei a “diferentona” da família.
Diana apenas acenou com a cabeça, mas não
respondeu àquela questão.
— Sabe o que eu mais adoro sobre esse mundo?
Ele está em constante mudança. Algumas coisas para melhor, outras para pior. E
as pessoas também estão mudando, mas de forma positiva. Eu me lembro quando eu
tinha a sua idade, e eu também me sentia muito perdida, sempre procurando aonde
eu pertencia...
— E você encontrou?
— Sim. Descobri que eu jamais pertenci a
lugar algum, que posso estar cercada de riquezas e luxo, mas são as pessoas que
fazem um lar. Quando você estiver pronta, eu a levarei para conhecer esse
lugar.
— É por isso que você ainda não nos
apresentou o seu namorado? — perguntou a mais nova. — Vocês já estão juntos há
tanto tempo, ele parece ser um cara tão legal! Vamos lá, Dia, prometo não fazer
você passar vergonha.
— Por enquanto não vai dar... — disse Diana, seguida de um longo suspiro. — Ele é cheio de problemas, sabe? Pelo menos, vi
que você está cuidando bem da jaqueta que nós demos.
— Sim, ela é quentinha e aconchegante.
Apesar de ser um modelo masculino, ele
servia perfeitamente no corpo de Auria que era muito alta para sua idade. O
couro preto era legítimo e a costura realçava bem seu quadril e os ombros.
Diana acariciou os cabelos de sua irmã e desejou-lhe toda a sorte do mundo na
nova fase que se iniciava.
— Lembre-se que sempre iremos protegê-la
onde estiver.
ii
Lydia voltava para casa à tardinha,
suas visitas ocasionais ao Palácio das Safiras a enchiam de expectativa e confiança de que um dia
poderia viver debaixo do mesmo teto compartilhado pelo Rei e a alta sociedade de
Constantia. Se pegasse um cliente dos bons — ou terminasse casando com algum
ricaço dando sopa na região — suas chances de se mudar para lá aumentavam de
forma considerável, entretanto, nada lhe tirava da cabeça que as pessoas não
gostavam dali.
— Comi aquela puta das Mercer
semana passada.
Lydia parou de andar. Um grupo de
rapazes conversava no parque, sendo que ela pôde reconhecer um de seus clientes
entre eles.
— Porra, mandou bem! — elogiou o
outro. — Ela é gostosa?
— Pra caralho — confirmou o outro. —
Tem uns peitões que enchem a boca, toda modeladinha, e faz um boquete como
ninguém que dá até gosto. Mas, sabe como é, ela já deve ter dado para a cidade
inteira.
Lydia ajeitou sua bolsa e
atravessou o parque enquanto ouvia os colegas rirem do comentário. Ao vê-la
passar, o rapaz acenou e soltou um longo assovio para chamar sua atenção. A socialite correspondeu com uma piscadela e um aceno gentil, afinal, para ela o cliente era o que havia de mais sagrado em seu trabalho.
— Te espero semana que vem — disse
a mulher, disfarçando-se por trás de seu melhor sorriso —, e se quiser, pode
trazer seus amigos para que eles vejam se tudo que você disse é verdade mesmo.
Ela despediu-se em meio às
bajulações histéricas de três sujeitos patéticos e previsíveis que surtavam feito animais no cio como os demais.
Ao chegar em casa, sentiu-se
completamente exausta e com a mente abalada. Arrancou os sapatos e arrastou as
pernas até a cozinha de onde saía um cheirinho maravilhoso de comida
caseira. Ao chegar lá, Tellum preparava a janta vestido em seu avental enquanto
Diana e Auria riam sem parar de uma de suas histórias hilárias dos tempos de
academia.
Lydia parou diante daquela cena e
suas pernas enfim cederam. Auria correu para socorrê-la, confusa e assustada pelo fato de que sua irmã nunca permitia que ninguém a visse chorar. Lydia sentia-se envergonhada e aturdida, com tantos
pensamentos maliciosos e negatividade acumulando-se sobre suas costas e a
responsabilidade de sustentar sua família e garantir um espaço entre a alta
sociedade.
— Calma, Ly... o que houve? —
perguntou Diana, acariciando seus cabelos.
— Alguém a fez chorar? — perguntou Tellum com a panela quente em mãos. — Se tiver acontecido, basta me informar o nome do bastardo que farei uma visita cautelosa a casa dele amanhã. Não se preocupe, não deixarei evidências.
— Calma, Tellum, tá tudo bem... eu só tive um dia ruim. Vocês sabem que são a coisa mais importante na minha vida, não é?
— Alguém a fez chorar? — perguntou Tellum com a panela quente em mãos. — Se tiver acontecido, basta me informar o nome do bastardo que farei uma visita cautelosa a casa dele amanhã. Não se preocupe, não deixarei evidências.
— Calma, Tellum, tá tudo bem... eu só tive um dia ruim. Vocês sabem que são a coisa mais importante na minha vida, não é?
— Claro, nós somos sua família —
respondeu Auria, que mesmo não sendo tão acostumada a abraçar, permitiu-se
acolher nos braços dela. — Eu não entendi direito o que aconteceu, mas... tem alguma forma que
eu possa ajudar?
— Só de ficarmos assim já é o
suficiente — respondeu Lydia com a voz carinhosa. — O que acham de um
banho de banheira depois da janta? Podíamos dormir nós três juntas no quarto, faremos aquela festa do pijama que prometi ano passado e nunca cumpri!
Ao fim da noite, Lydia já estava de
volta ao seu estado habitual, dando ordens e impondo sua vontade como a boa
irmã mais velha que era.
NOTAS DO AUTOR
Não é exagero dizer que esse é um dos capítulos mais antigos que tenho escrito para Matéria. Como mencionei na Parte 1, essa cena ficou guardada durante uns 5 anos porque eu simplesmente não sentia que ele fazia jus à personagem. No Capítulo 4 de Espada de Madeira, Lloyd e Raito conversam sobre suas primeiras impressões ao chegarem à Vila das Pérolas, e o mais velho dos King pergunta:
"Você só pode estar brincando. Pela graça de Araya, é ela mesmo. A mais nova, não? Eu me lembro dela como uma garotinha de vestido manchado na festa, isso já deve ter uns três anos. Essas mulheres amadurecem muito rápido..." — Lloyd King, Capítulo 4.
Com o Livro 2 se aproximando, senti que já era de contar a história de Auria e suas irmãs, pois a família Mercer sempre foi de grande influência no reino. A própria Auria teve uma evolução enorme nesses últimos anos e isso me fez compreendê-la melhor do que nunca.
Para os curiosos, esse capítulo também conta com um pequeno easter egg. Sabia que o nome da boneca Rafaela vem dos meus gibis antigos? O nome original de Auria seria Aleafar, nada mais do que Rafaela de trás para frente. E não me perguntem quem é Rafaela.
YOOO CANAS <3
ResponderExcluirNINGUÉM ME AVISOU DESSA GRATA SURPRESA DA PARTE 2 DESSE ESPECIAL <3
E que pulo, é hora da Auria de 14 anos, cheia de inseguranças, medos e dúvidas. E mais uma vez, eu me enxergo na Auria uahsuashuauh
É legal enxergar uma Auria com as irmãs, ela consegue ser um pouco diferente da Auria com o Ralph e a galera, talvez seja a idade ou a intimidade, mas eu senti que ela é mais aberta com elas. Isso me faz refletir que as vezes meus irmãos são um tanto estranhos pra mim e eu sou a isoladona dos 3 hausuashuashu
LLOYD ESTÁ AQUI E ISSO FOI UMA GRATA SURPRESA! Adorei o diálogo com a Auria e em como vc conectou isso ao livro 1! Foi legal que eu senti toda a tensão que a menina estava na festa, mas fiquei super aliviada a ver um rostinho gentil como o do Lloyd, parece que aquece o coração. Canas consegue sempre nos colocar dentro de suas histórias <3
TELLUM MERECE SER PROTEGIDO! Essa figura masculina na vida dessas irmãs é super importante, imagina a Auria tendo que lidar no exercito sem ter sido criada com uma presença masculina na vida dela? Certeza que era seria beeeem mais receosa sobre os homens. São detalhes tão pequenos que fazem toda a diferença
O QUARTO BAGUNÇADO SOU EU, PARA DE ME ESPIONAR! huashuahushu Pior que eu admito empilhar roupas dentro do armário e sempre derrubar algumas peças quando abro ele hausuhasuhuh
RAFAELA, MINHA LINDA BONECA <3
A visão da Diana sobre bonecas é tão assustadora quanto pensar que Toy Story é real hausahusuhashu Di inventou Annabelle e eu posso provar
E esse último trecho que veio pra dar um tapa na cara de cada leitor? Quando você me mandou eu fiquei "mano, O CANAS CONSEGUE ESCREVER SOBRE TUDO" e claramente, eu me surpreendi. A Lydia merece ser protegida!
AGORA EU QUERO A PARTE 3 COM URGÊNCIA! QUERO VER TELLUM, QUERO VER AURIA NO COMEÇO DO EXERCITO, QUERO VER O QUE ACONTECE COM A RAFAELA AHSUAUHSHU
Obrigada pelo capítulo, Canas <3 Auria merece todo amor do mundo <3
See ya
DESCULPA NÃO AVISAR, SEMPRE TENHO MEDO DE INCOMODAR! D: Mas Star já aproveitou e fez divulgação no grupo por mim, obrigadinho ♥
ExcluirEu acho engraçado que sempre que penso na Auria ela está com o cabelo curtinho, não consigo imaginá-la com 14 anos, acho que seria bem parecida com a Diana kkk Eu gosto da forma como você se enxerga em muitas das atitudes da Auria, ela teve uma evolução tremenda desde que decidi que ela seria uma das protagonistas no livro. Estou tão acostumado a sempre ver a galera trabalhar presenças femininas poderosas, mas o problema é que mesmo nessa tentativa de inovar eles caem na mesmice; a figura feminina é quase que como uma divindade, inabalável e perfeita, sem defeito algum. Quanto mais o tempo passa, mais eu descubro que as fraquezas da Auria é o que a tornam forte, que ela está disposta a se tornar essa figura de respeito e que conferir a sua escalada ao topo vale muito mais a pena do que apenas introduzir a figura feminina fortona e badass como se esse fosse o único padrão "ideal".
Lloyd mesmo com suas poucas aparições traz uma sensação de aconchego <3 (apesar do elemento dele ser gelo kkk *piadinha boba*). Eu adoro quando meus personagens secundários conseguem ganhar seu carinho e atenção! Gostei da sua visão do Tellum, eu mesmo não tinha percebido direito a importância dele na vida das garotas. Ele foi realmente a única figura masculina no desenvolvimento das irmãs, a Auria era a mais novinha quando perdeu os pais e tinha tudo para se assustar com a presença masculina quando entrasse na academia.
APOSTO QUE SUAS ROUPAS TAMBÉM ESTÃO SE ACUMULANDO SOBRE ALGUM MÓVEL, E AÍ JÁ VIROU PRATICAMENTE SEU ARMÁRIO 2 KKKKKK Eu me baseio muito no meu relacionamento com minhas irmãs para escrever sobre a Diana e a Lydia, claro que com tudo levado ao extremo e liberdade criativa, mas gosto dessa coisa de que as três só possuem umas às outras então elas acabam se cuidando. Foi muito gratificante terminar de escrever um capítulo que ficou empacado por tantos anos, a cena final foi a minha favorita dese especial! Essas duas últimas semanas foram muito produtivas e agradeço sua companhia na hora de escrever :3 Obrigado outra vez pelo comentário maravilhoso e sempre me motivar a continuar dando meu melhor!
I want to grab those guys at the chapter and just hurt them man. poor Lydia did nOOTT deserve any of that! Another powerful and emotional chapter here man, now I finally see where her jacket came from, and the refrence to the boyfriend is damn well done and great now that I know who they are.
ResponderExcluirLydia and Diana are very important figures on Book 2! I really like those lost chapters because it shows us a little more about the Mercer family and how they are seen by the world.
ExcluirOh, now that you know Raegar everything makes sense! It's funny how she hid it from her sisters for seven years. I'm glad you're keeping up with these chapters dude, the last one is a bit harsh, but it says a lot about how Auria sees relationships and other subjects. This is like a Prologue for Book 2 and 3, and much more to come! :D
Aye and it shoes!
ExcluirSEVEN YEARS?! Holy cow that's impressive to do ahahahaha. No kidding...wow.