A academia da
Vila das Pérolas tinha história — primorosa e antiga —, diziam que grandes guerreiros
da raça humana caminharam por aqueles corredores. Era um porto usado para
transporte de mercadorias, o turismo havia sido abandonado depois que as
pérolas perderam seu valor comercial. Oitenta e cinco porcento da população era
formada por estudantes, os alunos consideravam a academia como uma continuação
do ensino fundamental, a diferença era que podiam ser convocados para a guerra
sem aviso prévio. Muitos clamavam pelo chamado, enquanto outros consideravam
uma desonra serem deixados para trás.
A torre
principal era rodeada por seis prédios diferentes, cada um deles representava
uma especialização: a espada trazia seu significado de honra e glória; o escudo,
a proteção; a lança era a agilidade; o machado pela força bruta; o arco e flecha
pela destreza e a mana como todas as energias que permeavam o mundo.
Assim que Ralph
chegou ao portão — onde sua cabeça ficara presa na noite passada —, pôde ver
toda a grandeza da academia e dessa vez sem limitações. A partir daquele ponto
estaria decidindo o tipo de treinamento que levaria para os próximos anos, se
seria um guerreiro disposto a defender sua nação, ou talvez um mago capaz de
manusear magia com esforço de sua mente.
Ralph notou que nenhum
dos outros alunos trazia os devidos equipamentos para uma batalha. Onde estavam
as espadas e escudos? Pensou que nunca mais precisaria de apostilas pesadas. Um
pensamento lhe percorreu — sua estimada professora, Srta. Clover, dissera certa
vez que os livros eram as armas mais poderosas que ele poderia ter em mãos. Não
discordava, pois ela os arremessava com muita força quando estava estressada, e
aquilo o fez rir.
Ralph adentrou o
saguão e passou por corredores repletos de salas que eram preenchidas por
alunos. Janelas de um estilo clássico medieval revelavam a idade do território,
como um castelo imponente do passado.
Chegou perto de
um balcão onde residia uma senhora de óculos coberta por papeladas. Ela
entregava os devidos documentos para os novatos.
— Oi, moça — Ralph
a chamou, o que era uma gentileza, pois a velha parecia ter pelo menos uns cem
anos. — Posso me inscrever?
— Dá para sentar
e esperar como todos os outros? Você não é especial.
Ralph concordou
e foi sentar-se. Por acordar cedo, seria um dos primeiros a ser atendido, mas
ainda odiava esperar em filas, sentia-se preso, quase torturado, cada minuto perdido
era uma tremedeira em suas pernas.
— Olá. Já decidiu
o que vai fazer? — perguntou para o rapaz ao seu lado, puxando conversa só para
não ficar parado.
“Não faço ideia”,
foi a resposta que mais recebeu. Era interessante notar como na verdade todos
aparentavam estar agoniados ou aflitos.
— Eu não queria
estar aqui — repetiu um deles assustado, uma gota de suor escorrendo pelo rosto
—, gostaria de ser dispensado. Eu só queria ir embora.
Quando chegou a
vez de Ralph, a feição de desânimo da secretária se intensificou por algum
motivo.
— Bom dia. Seja
bem-vindo ao Curso Preparatório Classe E da Academia da Vila das Pérolas. Qual
área pretende prestar? — a atendente perguntou de forma automática, logo acrescentando
como se já soubesse o que iria ouvir: — Se ainda não tiver decidido o que
fazer, pode deixar em branco ou marcar todas.
— Eu sou Ralph,
da Espada de Madeira!
A mulher ficou
sem reação, as pessoas sentadas na banqueta da fila começaram a rir. Atender
novatos confusos e cheios de dúvidas com as mesmas respostas há anos não era
uma tarefa interessante, mas vez ou outra aparecia algum louco para diverti-la.
A velha ajeitou
os óculos na ponta do nariz e voltou a escrever.
— Eu perguntei a
área que pretende seguir em seu ensino; se pretende tornar-se um espadachim,
guerreiro, mago, arqueiro, defensor, alquimista, especialista, o que quer que exista
nesse universo, não entendo nada mesmo... Já tenho seu nome escrito aqui
embaixo, só não precisa me fazer passar por essa situação novamente.
— Ah, desculpa.
Quero muito ser um soldado — Ralph respondeu. A velha mantinha o semblante
estressado enquanto esfregava as têmporas.
— Todos vocês
serão aprendizes Classe E antes de se tornarem soldados. Todos servirão alguém.
Seja mais específico.
— Pode colocar
“espadachim”, então.
A mulher arrancou
uma única folha do topo de sua pilha.
— É só preencher.
Tenha um excelente dia.
Com o papel em
mãos, foi até uma sala repleta de outros garotos que completavam o mesmo questionário
em silêncio. Era visível o quanto aquele ambiente o incomodava.
Ralph tinha um ar perdido, louco pra fugir dali, a coçadinha na cabeça, as
mãos, o olhar que nunca olha de fato. Tinha dificuldade em lidar com esse
bombardeio de informações do mundo externo.
Precisava apenas completar uma ficha básica de inscrição; pedia nome, origem, vocação,
habilidades especiais, perícias e mais um monte de outras questões que nem
soube dizer para o que serviam.
Ele era um
aprendiz Classe E, deveria seguir as letras do alfabeto D, C, B e A conforme
crescesse em seu patamar, mas não tinha tempo para aquelas coisas. Queria
chegar logo ao S, um nível que somente as lendas foram capazes.
— Olá, caro
companheiro de sala. Poderia emprestar-me esse objeto que você usa para
escrever? — Ralph perguntou de maneira gentil.
— Tô usando. Não
tá vendo?
Ralph fez um
aceno com a cabeça e concentrou-se em sua tarefa, mas logo voltou a atordoá-lo:
— Então poderia
emprestar-me qualquer coisa para que eu possa escrever minha ficha de
inscrição?
— Você veio aqui
para se inscrever e não trouxe nem os documentos básicos para isso? Em que
mundo vive?
— Existe mais de
um? A ideia de que podem existir outros mundos e que nossa existência aqui não
passa de algo insignificante dentro dos planos de uma entidade maior é
intrigante.
A velha na
secretaria pediu silêncio em voz alta. Ela ainda observava de longe, desconfiada.
Levantou-se de sua cadeira e bateu com força uma caneta na mesa do garoto.
Ralph soltou um murmúrio de alegria e agradeceu o gesto.
— Muito
obrigado, minha boa senhora! Que as entidades possam acompanhá-la em sua
demanda atrás daquilo que procura. Um dia você ficará orgulhosa de ajudar o
próximo.
— Preenche logo
a ficha. Não tenho o dia todo.
Ralph mexeu-se
contente em sua cadeira e olhou para o papel. Sua segunda missão era
interpretar tudo aquilo. Segurou a caneta e começou a rabiscar. Vez ou outra a
secretária olhava de relance para ver o que ele fazia, uma vez que se passara
quase meia hora e o garoto ainda não saíra de lá.
A secretária foi
em sua direção e apoiou-se na mesa.
— Está tendo
dificuldades — afirmou. Era óbvio que estava.
— Olha só o meu desenho,
não é legal?
— Muito
interessante. — Estava pouco interessada, mesmo que os dragões que ali estavam fossem
bem legais. — Agora me diga, está tendo dificuldades para preencher o quê?
Ralph olhou para
o papel de inscrição que estava desenhado até as bordas. “Tudo” seria uma boa
opção. Cenas de batalhas enfeitavam os cantos enquanto lagartos voadores
cuspiam fogo contra as palavras. Era uma cena criativa, de fato o menino levava
jeito nos rabiscos e nas ideias.
Ralph forçou a
visão para enxergar o nome da secretária em seu crachá.
— Dona Lurdinha,
a senhora conhece os generais que lideraram suas raças para a vitória durante a
Guerra dos Heróis? Eles foram os guerreiros mais incríveis da história, os
únicos Classe S de seu tempo: Canas, o Descobridor do Mundo; General Defesa, a
Muralha Impenetrável; e o gecko mais poderoso que pisou nesta terra, Tokay, Asa
Negra. Foram eles que derrotaram Glaüner, o Dragão das Maldições, e o
aprisionaram em algum lugar misterioso de nosso reino para que ninguém nunca
mais o despertasse!
A velha passou a
mão em seus cabelos a ponto de arrancá-los. Os demais alunos na sala davam
risadas baixinhas, mas Ralph nem as ouviu ou então preferiu ignorar. Antes que
alguém perdesse o controle, surgiu um sinal de inteligência.
— Ah, sim, estou
com dúvida em algo. Veja, aqui está dizendo “qual a sua raça?”. Quero dizer, a minha, não a sua. E há
quatro opções a serem marcadas, pedindo para que eu assinale apenas uma.
A secretária
olhou para o jovem numa clara expressão debochada.
— Você está
falando sério? H-u-m-a-n-o — ela enfatizou cada sílaba.
— Mas eu não sou
humano — Ralph respondeu de forma breve, quase ofendido, fazendo os demais
agora rirem tão alto a ponto de a velha senhora bater na mesa e mandar todos
calarem a boca.
Ralph
continuou:
— Sou
meio-humano e meio-gecko — corrigiu.
Há quem acreditasse que os geckos adotavam crianças para
cozinhá-las num caldeirão e depois devorá-las como se fossem criaturas
folclóricas, mas o Senhor Tokero e a Dona Nakara tinham todos os traços que
uma família comum de velhinhos presos à rotina da vida no campo. Nakara perdera
os três filhotes há mais de vinte anos quando eles ainda não passavam de
ovinhos, por isso decidiu que nunca mais seria mãe. Ela encheu-se de orgulho
quando a oportunidade de cuidar de Ralph apareceu, apesar de ser velha e sua
memória não estar tão boa. Ainda assim, seu instinto materno nunca se esquecia
de preparar-lhe sanduíches de mortadela quando ele saía para brincar.
Ralph cultivava uma pequena chama em seu coração que o
confortava quando pensamentos sobre seus pais biológicos vinham à tona. Deviam
ter seus motivos para tê-lo deixado sozinho. Com quinze anos, não era tolo o
bastante para achar que pertencia à raça dos geckos, mas julgava-se parte deles
e o respeitava como sua única e verdadeira família. Quando fosse mais velho e
entendesse das coisas, registraria a si mesmo como meio-gecko (apesar de não
fazer ideia de onde começar).
Dona Lurdinha achava que a situação era pior do que
aparentava.
O garoto foi enviado para uma sala nos fundos que estava
vazia. Fazia um bom tempo que não lidavam com uma situação como aquela e, por
isso, teriam de rever o assunto com as autoridades.
Sobre a mesa estava um pequeno orbe azulado, do tamanho
de uma bola de beisebol. Era uma Esfera de Comunicação, o meio de contato mais
rápido do reino, um item raro e caro. Quando dois orbes se encostavam um no
outro uma única vez, eles se conectavam através de eletromagnetismo e podiam manter
contato através de sons e imagens mesmo a milhares de quilômetros de distância.
A mulher tocou o orbe e esperou a resposta de seus
superiores. Ralph a olhava desconfiado.
— Aqui é da Vila das Pérolas, estação de Myriad número
220-64-3. Temos um pequeno problema... Um mestiço. Não, não possui nada
visivelmente repugnante, só é um pouco esquisito. Parece que tem dificuldades
na leitura e falta de processamento audititivo... — dizia a mulher, logo
abaixando o tom de voz quando viu que Ralph a observava. — Ele disse que é
metade gecko.
A última palavra soou como um espirro. A resposta logo
veio. A atendente soltou a mão do orbe e a imagem se desfez. Voltou a atenção para
o rapaz e falou:
— Venha comigo.
— O que vamos fazer, dona Lurdinha? Nós vamos começar a
treinar juntos? Você será a minha mestra? A minha treinadora? A capitã de meu
batalhão?
— Nada disso. —
A atendente sentou-se em sua cadeira de forma confortável com um sorriso de
orelha a orelha, como se cantasse a vitória por uma luta vencida. Ela carimbou
a ficha desenhada de Ralph e entregou-lhe como uma carta de alforria. — Você acaba de ser dispensado. Obrigada
por vir até aqui, Ralph Token. Reúna seus pertences e pegue o próximo trem de
volta à Helvetica. O Reino de Sellure agradece a sua participação. — E desta
vez ela fez questão de encher a boca ao frisar: — Tenha um excelente dia.
Ralph ficou desolado,
não sabia qual reação tomar. Viu a senhora em sua frente carimbar um papel de
dispensa e mandá-lo embora, para o caminho oposto de seu sonho, para uma viagem
de trem de volta à sua cidade onde seus pais adotivos aguardavam orgulhosos o
seu regresso como uma figura importante e influente, ou ao menos feliz e
sucedida, alguém que venceu na vida.
Viram partir um
menino e esperavam retornar um grande homem. Agora, voltaria como um
fracassado.
— Mas que...
ódio! Amaldiçoados sejam os papéis carimbados e assinaturas — Ralph contestou, levantando-se
da mesa e sentindo um ódio profundo daquele lugar. Queria bater os pés com
força no chão, quem o ouvia do corredor até se assustava. A velha continuava
quieta. — Droga, droga, droga! Por que fez isso comigo, dona Lurdinha?
— Está jogando a
culpa em mim? Só estou fazendo meu trabalho, garoto.
— Mas é injusto.
— Se quiser
discutir sobre justiça, está no mundo errado.
— Por todas as
entidades divinas de Sellure, o que eu vou fazer agora?
— Por que não
vai embora e me deixa em paz?
Muitas palavras
estavam presas em sua garganta. Talvez fosse melhor não ter ficado brincando
com o papel de inscrição, bastasse ter pensado um pouco. Era melhor parar com
as brincadeiras. O garoto fechou a porta com força ao sair, ficou encarando seu
documento de dispensa do lado de fora, mas não se deixou abalar. Quando estava prestes
a sair, voltou para a sala da secretária e bateu na porta.
— Dá licença,
dona Lurdinha.
— Ainda está
aqui? — Ela falou desinteressada.
— Sim. Sei que a
senhora não tem nada a ver com essa decisão, então me desculpe por ter descontado
minha raiva em você. Minha família gecko me ensinou a abraçar as pessoas quando
fico feliz, confuso, ou até mesmo com raiva. — Ele foi até ela, deu-lhe um
abraço rápido e voltou para perto da porta. — Então desejo a você um bom dia,
saiba que não desistirei dos meus sonhos.
A secretária estava
boquiaberta. Quando Ralph deixou o lugar, ela guardou o lápis e observou a
curiosa figura que a arrancara da rotina. Não pôde esconder um sorriso de
relance nem a sensação tão estranha em seu peito.
— Tenha um bom
dia você também — murmurou antes de retornar ao trabalho.
Ralph saiu do
prédio principal da academia com o papel de dispensa em mãos. Amassou o papel e
jogou-o numa lata de lixo — o que teria causado um sério alarde caso um
instrutor o visse cometendo tal crime. Nenhuma força externa poderia modificar
o que estava dentro de seu coração.