Gênero: Romance;
Tema: Ralph e Auria compartilham suas inseguranças
e confortam um ao outro,
assegurando que, o
que quer que aconteça, eles irão superar juntos;
Sugestão do leitor(a): Feurdelis.
Ralph caminhava com passos leves, não gostaria que
alguém acordasse só porque não conseguia dormir e estava ansioso demais para
cair no sono novamente. A tarde de treinamento rendera bons frutos, mal podia esperar para embarcar na próxima missão.
Raegar fora generoso ao convidá-los a ficar o tempo que
quisessem, tinham uma vida aconchegante e tranquila no topo da colina, o que
mais poderia pedir? Ralph dirigiu-se até a cozinha e preparou um copo de leite
achocolatado, mas quando voltava para o quarto ouviu um som estranho vindo de
um dos aposentos. Não gostava de bisbilhotar, mas aquele era o quarto de Auria. Quando encostou o ouvido na porta de madeira, ouviu o que parecia ser um
instrumento musical e uma voz que cantarolava bem baixinho. Eram quase três da
manhã, ninguém deveria estar acordado àquela hora.
Ficou ali ouvindo a canção com um sorriso no rosto. Não
conseguia entender a letra, mas a melodia o fazia feliz.
Seus pensamentos voavam longe quando de repente a
porta foi aberta e Ralph caiu para dentro do aposento de cara nos peitos de Auria que o segurou. A moça lhe dirigiu um sorriso travesso, mas não o
repreendeu.
— O que faz acordado a essa hora, mocinho?
Ralph preparou uma série de desculpas, mas Auria fez
um gesto com a cabeça, convidando-o a entrar. Não era a primeira vez que
entrava no quarto dela desde que se instalaram na Pequena Colina, mas
visitá-la na madrugada se provava uma sensação inédita. Os móveis projetavam
sombras que bruxuleavam na parede devido o pequeno abajur que iluminava o
recinto, Auria estava com seus óculos de grau e saltou na cama vestida com seu pijama
— um short curtinho, blusa larga e a alça do sutiã caída sobre o ombro lhe davam um toque íntimo e delicado. Em sua escrivaninha repousava um aparelho de som
que Ralph nunca vira antes, de onde a música saía e preenchia o ambiente.
— Tem algum monstro cantor preso aqui dentro? — perguntou o
menino.
Auria riu diante da inocência dele.
— Não, bobinho. Isso é uma caixa de som, o Aedan comprou
para mim nas Cidades Cinzentas. Eu costumava ter uma quando menina, mas ela
quebrou — respondeu a moça. — Não sou fã da ciência, mas ouvir músicas de
madrugada me deixa tranquila.
Auria voltou a aumentar o volume do rádio e esparramou-se
em sua cama, olhando para o teto com os braços e pernas esticadas. Ralph sentou-se
ao lado dela na beirada e perguntou com a voz meiga:
— O que você estava fazendo?
— Nada — respondeu a mulher. — É madrugada. Ninguém
faz nada de madrugada. Quer dizer, muita coisa pode acontecer de madrugada, é
um momento onde as pessoas estão tão frágeis e sinceras... às vezes, quando me
sinto sozinha, eu olho para o céu de noite e penso que alguém também deve estar
sentindo o mesmo que eu em algum lugar.
— Mas você ainda se sente solitária mesmo cercada de
pessoas?
— Ah, é um tipo de solidão de diferente. Não se
trata de afeto, porque tenho vocês ao meu lado e eu os amo demais. Só que às
vezes gosto de estar sozinha com meus pensamentos e curtir o silêncio, e... ah,
você deve estar achando tudo isso uma bobagem.
— Não, de maneira alguma! É só que nunca conheci
alguém que pensasse assim, a madrugada para mim é como um território
desconhecido. Mesmo que já tenhamos passado meses nos aventurando por Sellure,
ainda estou descobrindo coisas novas sobre você, Auria.
Ralph acomodou-se ao lado dela na cama.
— Posso curtir essa madrugada solitária com você?
Auria sorriu, pois adoraria companhia. Os dois se aninharam a apenas alguns palmos de distância.
— Tenho a impressão de que a ouvi cantando —
murmurou Ralph.
— Ah. Droga. — Auria ficou com as bochechas
avermelhadas, tirou os óculos e começou a esfregar o rosto. — Pois é, você
descobriu. Gosto de cantar sozinha nas madrugadas feito louca.
— Não creio que você seja louca — disse Ralph,
aproximando-se dela. — Pode cantar um pouquinho para mim?
Auria corou ainda mais, jamais estaria preparada
para um pedido daqueles. Pensou em todas canções que já ouvira durante a vida e
quais delas seriam apropriadas para o momento. Ralph estava aconchegado em
seus braços, ela acariciava seus cabelos quando teve uma ideia — escolheu uma canção
de ninar que sua mãe cantava para ela quando menina, sua voz nem de perto se
assemelhava ao timbre suave de Flora Mercer, mas ver Ralph aninhado com os
olhos fechados ao seu lado a fez querer protegê-lo de tudo no mundo.
— Sua voz é linda — disse o garoto. — Me sinto
protegido ao seu lado.
Ela sorriu satisfeita por alguém compreendê-la,
sempre podia contar com Ralph para fazê-la sentir-se nas nuvens e segura de
suas qualidades. Auria puxou o cobertor e escondeu-se ali embaixo para
proteger-se do frio.
— Acho melhor você dormir aqui comigo hoje — ela insinuou,
sentindo o rosto arder. — Por segurança.
Ralph não se moveu e nem deu sinais de que
corresponderia, o que a fez ficar constrangida. Ele por fim sorriu, aquele
sorriso que a enfeitiçava.
— Ah, não, pare... — Auria ficou toda envergonhada. —
Quando você sorri assim para mim, sempre fico toda sem graça.
Ralph puxou o cobertor para perto do rosto para
aquecê-los, Auria trocou a música no rádio e afundou sua cabeça no travesseiro, seus cabelos negros se emaranhavam em
fios bagunçados. O silêncio nunca era constrangedor, eles se permitiam ouvir a música sem que alguém se cobrasse para puxar conversa. Nunca imaginara que poderia se sentir tão à vontade ao lado de
alguém.
Auria estava de olhos fechados quando ouviu Ralph pedir-lhe licença e tirar seus óculos do rosto.
— Eita, como é que você enxerga com isso? —
brincou o menino, tentando olhar através das lentes de grau que ofuscavam sua visão.
— Eu uso para ver de longe, mas principalmente para leitura e descanso. Num geral, muita gente gosta de óculos como acessórios, sempre pensei em usar lentes... sabia que existem selos capazes de trocar a cor
dos olhos? Eu detesto o meu verde, é tão clichê, sempre quis ter olhos escuros
e profundos.
— Acho que você fica bem de qualquer maneira.
Auria levou sua mão em direção dele e
manteve a palma aberta. A princípio Ralph tentou interpretar o gesto, pois
sabia que devia existir algum significado oculto.
— Deixe-me ver o tamanho da sua mão — ela disse.
— Por quê?
— Motivos de pesquisa.
Ela escondeu uma risadinha malandra, mas se
surpreendeu quando sentiu seus dedos se entrelaçarem com os dele. Estava
perdendo completamente o controle de suas emoções, quis abraçá-lo e dizer o
quanto se importava, mas como fazer aquilo sem querer insinuar nada? Adorava
Ralph como se fosse seu irmãozinho, divertia-se em sua companhia, queria
protegê-lo para sempre. Sua respiração ficou pesada e sentiu o rosto ferver.
— O que foi? — perguntou o menino com preocupação. —
Sua testa está suando, será que está muito calor aqui embaixo do cobertor? Mas não
quero que tome friagem, porque aí você ficaria doente.
— Sua mão é tão macia. — Auria começou a
massageá-lo com delicadeza. — Consegue me sentir?
— Sim — Ralph respondeu. Estava bem escuro. — Eu sinto
você por perto.
De repente, foi como se um turbilhão de emoções
aflorasse ao mesmo tempo. A madrugada tinha aquele efeito sobre ela, Auria lembrou-se
por que não conseguia dormir — estava preocupada demais com os resultados
do exame da academia, em breve teria que abandonar a Pequena Colina e retomar
seus treinos na Vila das Pérolas em Myriad. Quanto tempo levaria para voltar?
Será que Ralph e os demais a esqueceriam enquanto estivesse fora, como
muitos de seus colegas fizeram quando era mais nova? Auria temia que acabasse
sozinha outra vez e aquela sensação maravilhosa de viajar por Sellure ao
lado de Ralph, Lesten, Lee e Hayley não passasse de lembranças perdidas.
Os dois se envolveram num forte abraço e Auria o trouxe para mais
perto de seus braços.
— Você promete que nunca vai me esquecer? — ela perguntou.
— Por que essa preocupação? — o garoto sorriu. — Até
hoje, não há nenhuma pessoa que entrou em minha vida por acaso. Todos vocês têm
um lugar especial.
— É que... você sabe que pretendo voltar para a Vila
das Pérolas, Ralph. Dessa vez vou treinar mais do duro que jamais treinei, vou
garantir meu espaço no exército. Sei o que quero e vocês me ajudaram a perceber
isso com clareza. O único problema é que... — ela fez uma pausa —, tenho medo da distância nos separar e, quando nos reencontrarmos, sejamos como completos estranhos.
Ralph sentou-se na cama e juntou suas mãos com as
dela.
— Eu vou esperar. Você é
a minha guerreira, meu braço direito. Se isso te deixar mais tranquila, vou te mandar cartas sempre que puder! Eu poderia te esperar para sempre.
— Obrigada por acreditar em mim. Mal posso esperar
para que possamos fazer isso mais vezes.
— Fazer o quê? Nós não fizemos nada hoje.
— Como não? Você me fez
companhia, ficamos perto um do outro. Eu não trocaria esses minutos de paz ao
seu lado por nada nesse mundo.
— Eu sou muito afortunado por ter vocês como amigos.
Auria sempre se encantara com o sorriso dele — suas bochechas levantam e os olhos quase sempre se fechavam, expondo os dentes branquinhos
e as marquinhas de expressão. Será que ele nunca se cansava de sorrir? Sabia que o estoque de sorrisos de Ralph jamais se esgotava, mas, se pudesse, queria que aquele sorriso pertencesse somente a ela.
Ralph riu aninhou-se para mais perto, deitando
a cabeça em seu busto e ouvindo seu coração bater na mesma intensidade que o
seu. E então, ele falou como se pudesse ler seus pensamentos:
— Uma parte minha sempre será só sua.
Os dois permaneceram assim, em silêncio,
aproveitando o sossego da madrugada onde ninguém os incomodaria, ouvindo a música ecoar distante em seus
ouvidos até que a coletânea terminou, misturando-se ao som de grilos e a
quietude do campo.
Os dois não demoraram a cair no sono, quando se
deram conta já era de manhã. O sol revelava-se tímido entre as montanhas, Raegar devia estar voltando de suas viagens e Lesten era o primeiro
a despertar, pronto para caçar besouros exóticos que só apareciam àquela hora
do dia.
O lagarto saiu correndo pelos corredores quando trombou-se
com Lee que acabara de usar o banheiro e ainda estava com a escova de dentes na
boca.
— Diga aí, el
luchador. Viu o ruivo por aí? — perguntou Lesten.
— Não faço ideia — murmurou Lee, ainda meio
sonolento. Nunca era uma boa conversar com ele logo de manhã, geralmente
acordava de mau humor.
— Só falta ele ter saído para caçar insetos antes de
mim... Logo mais o alcanço — Lesten começou a balbuciar para si mesmo, traçando a rota do dia. — O que será que a fêmea vai fazer hoje?
Lesten abriu a porta do quarto de Auria com força e a mulher despertou num salto, a alça de sua blusinha pendendo pelo ombro e Ralph ainda
adormecido do seu lado. Lesten arregalou os olhos diante da cena, apontando com
o indicador primeiro para ela, depois para ele e para ela de novo.
— QUE? COMO ASSIM? QUANDO ISSO?
— Calma, não é o que você está pensando — Auria
tentou inventar uma desculpa quando Lesten avançou em sua direção todo
contente.
— Vocês fazem uma festa do pijama e não chamam o
lagartão aqui? Poxa, só porque eu não uso roupa não significa que vocês podem
me deixar de fora! Chega pra lá, dá um espaço aí pra eu deitar com vocês.
— Lagartixa, você não cabe na cama — resmungou
Auria, mas a essa altura o gecko já estava chamando Lee e Hayley para
participarem também.
— Caraca, mulher, que bafo. Tu já escovou os dentes
hoje?
— Eu acabei de acordar, desgraça.
— Gente — falou Lesten, e todos ficaram quietos. — Alguém
soltou um pum ou é só impressão minha?
Auria começou a socá-lo de forma impiedosa. Ralph despertara com o barulho, ele espreguiçou-se e murmurou contente, pois há tempos não tinha uma noite tão gratificante. Agora sabia o que as pessoas faziam de madrugada e mal podia esperar para participar mais vezes.