O Passado da Ordem - De Mãos Dadas com seu Reflexo (Parte 6)
Astra King repousava na enfermaria
recebendo o devido tratamento para cuidar das feridas e mordidas espalhadas por
seu corpo. O corte profundo causado pela garra da loba foi devidamente
limpo, mas a infecção se alastrou depressa e o homem sentia dores intensas. A dor causada pelas injeções e
produtos de higienização só o frustravam ainda mais, o que deveria ser um dia
de comemoração se transformara em uma catástrofe, ampliando sua ira
pela Silenciadora e seus ideais estúpidos. Não conseguiria ficar mais um
segundo sequer deitado naquela cama desconfortável.
— Sr. King, por favor, peço que continue
deitado e evite esforços — alertou-lhe o enfermeiro chamado Ethan que cuidava do turno da noite ao ver
que o paciente arrancava os fios ligados ao seu corpo. — Até que o médico
responsável chegue, eu preciso que o senhor mantenha-se calmo.
— Saia da minha frente, moleque! — Astra
o pressionou contra a parede, o enfermeiro colidiu em uma estante de remédios e
caiu no chão. Para um homem debilitado com seus cinquenta e poucos anos, ele tinha muita
força invejável. — Eu vou buscar aquela vadia de branco e matar ela eu mesmo.
A discussão estava prestes a tomar novas
proporções quando a sirene do laboratório disparou. Astra largou o pobre estagiário
amedrontado e observou o teto em busca de ruídos — por se localizarem no
subsolo, saberia dizer se o exército estivesse envolvido, pois ouviria passos
por toda a parte, mas tudo continuava silencioso até demais. Estariam mesmo
sendo atacados?
— Curioso — murmurou Astra, envolto em
pensamentos. — Muito curioso.
Não levou mais do que dois minutos até
que dois guardas o interceptassem na enfermaria:
— Senhor King, a prisioneira escapou!
— Ah. Que novidade — respondeu o homem
com ironia. — Nenhuma jaula no mundo seria capaz de conter aquela besta. Onde
está Erlenmeyer?
— Em reunião. Ele ordenou que não o
incomodássemos em hipótese alguma.
— Cinquenta por cento desse laboratório
é meu, eu o banquei, e eu vou entrar e sair daqui quando eu bem entender! — retrucou
Astra King com ferocidade.
O pesquisador vestiu o jaleco ainda
manchado de sangue e ninguém ousou impedi-lo. Caminhou com passos apressados
para a sala de Erlenmeyer, sua secretária Sophia tentou interceder, mas dada a
expressão de fúria do homem, era melhor que não ficasse em seu caminho. Assim que
a porta magnética se abriu, Astra deu de cara com Erlenmeyer que servia chá e
biscoitos para dois convidados.
— Ah, Sr. King, em boa hora! — disse o
doutor. — Por Yllata, seu rosto ficou pior do que eu imaginava, mas nada que
uma cicatriz ou outra não ajude a lembrar de não brincar com animais selvagens.
— Dê-me alguma boa notícia — respondeu
Astra apressado, servindo-se do café dos convidados para garantir-lhe um pouco
mais de energia.
— Claro, claro. Localizamos a terceira
Pérola Sagrada, ela já está em nossa posse. Esses bons samaritanos a
encontraram para nós — Erlenmeyer apontou para Brando e um comparsa que o
cumprimentaram com um aceno —, agora estamos acertando as questões financeiras.
— Pode dar o que quiser para eles, eu só
quero a máquina.
— Perfeitamente — agradeceu a serpente
de forma complacente. — Pegue a chave do depósito com Sophia. Sinta-se livre
para realizar os primeiros testes nas cobaias, você sabe onde encontrar os
ratinhos, mas seja rápido. Receio que o laboratório não vá durar muito tempo.
Astra King deu meio volta e retomou seu
caminho pelos corredores. A sirene continuava apitando, o que acentuava sua dor
de cabeça. Tinha urgência para colocar sua máquina para funcionar o quanto
antes, afinal, sabia que com a fuga e traição da Silenciadora era apenas
questão de tempo até que as autoridades de Bausonne descobrissem a localização
do laboratório secreto e confiscassem seus estudos e maquinários.
O terceiro subsolo era a região mais
remota e afastada. Aos poucos a estrutura rígida de metal cedeu espaço para
túneis de terra mal acabados, a iluminação branca que chegava a cegar olhos
minguou até dar espaço para pequenas lâmpadas de emergência vermelhas em uma
área que parecia nunca ter sido concluída por completo.
Astra abriu a porta de aço que dava
entrada para uma câmara fechada, sem luzes ou janelas. Era possível escrutar o
choro de crianças vindo de diversas partes, muitas delas correram para se
esconder entre as fendas cavernosas que fediam a mijo e comida podre. Astra acendeu
sua lanterna e começou a chamá-las com um assobio, como se brincasse de
esconde-esconder. Agarrou a primeira criança que passou em sua frente pelo
braço e a puxou com força para longe do escuro.
— M-me larga! Você é um monstro!
— Cala a boca, moleque. É melhor se
comportar se quiser sair daqui com vida.
— Eu quero a minha mãe!
Astra acertou-lhe um tapa na cara, o que
fez o menino aquietar-se por um tempo. Teve de ser praticamente arrastado para
o andar superior, tentava segurar o choro para não terminar espancado como um
dos garotos que se recusaram a colaborar na semana passada.
Ao alcançar a sala de testes isolada, Astra
pediu que os demais cientistas fizessem os devidos preparos, com impulso
aterrissou o menino em cima de uma mesa branca e ofereceu alguns sedativos
antes que ele se deitasse.
— O que vai acontecer comigo? —
perguntou o menino.
— Nada. Fique quietinho.
— ... eu vou morrer?
Astra encarou o menino nos olhos pela
primeira vez, mas desviou quase imediatamente. Por algum motivo aquele
garotinho ruivo o fez pensar em seus próprios filhos, mas não podia permitir que
se coração amolecesse agora, não depois de tudo que fizera para alcançar seus
objetivos.
— Não. Mas você vai sentir um pouco de
sono e, quando acordar, seus pais já terão vindo te buscar — respondeu Astra de
maneira gentil enquanto terminava de preparar sua seringa. — Qual é o seu nome?
— Trevor.
— É um belo nome. Boa noite, Trevor.
Mande lembranças a eles quando encontrá-los.
Assim que Astra aplicou a injeção, o
garoto fechou franziu o cenho e aos poucos sentiu os músculos relaxarem, ele caiu
em um sono profundo que retardou seus batimentos cardíacos e sua respiração, agora
Astra poderia dar início ao processo de extração da mana. A máquina era grande
e corpulenta, diversos fios foram ligados ao paciente, os cientistas
trabalhavam de forma incansável para aprimorar a combinação entre magia e
ciência.
Para muitas pessoas era difícil explicar
como a mana funcionava — era como enxergar a música ou tocar o vento,
totalmente invisível aos olhos, embora muito claro das sensações causadas em
quem pudesse contemplá-los.
Terminado os devidos ajustes, as portas
de vidro se fecharam e máquina foi ligada. As luzes oscilaram em toda a cidade
devido a quantidade de energia usada. Astra observou com atenção uma espécie de
forma translúcida etérea ser arrancada do corpo da criança, flutuando leve como
se um pote de glitter fosse
dissolvido em um copo cheio d’água.
A criança não moveu um músculo sequer
durante a “cirurgia”, como a chamavam. Astra analisava o recipiente de vidro
redondo que armazenava aquela energia cósmica. Concluída a extração, o homem
segurou a pérola com cuidado e ficou maravilhado, era a primeira vez que via a
essência mágica dos tótines na palma de sua mão.
— Sublime — murmurou Astra, entorpecido
pelo sucesso da missão. — Magnânimo.
— Senhor, a criança não está
apresentando sinais vitais — alertou um dos cientistas.
— Pode descartá-la, vamos para a
próxima. Traga todas aqui para cima.
A verdadeira caçada estava para começar.
i
Sheena esgueirava-se entre os corredores
do laboratório, sabia que estavam no seu encalço. Ao ouvir a conversa e passos
de dois seguranças se aproximando pelo corredor, seus poderes de água
recém-adquiridos se provaram muito úteis — materializou seu corpo em uma poça
d’água, fazendo com que um dos homens escorregasse e desse de cara no chão. Seu
parceiro morreu de rir com a cena, mas depois o ajudou a levantar-se e os dois
se retiraram ainda envolvidos com a cena.
Ao reassumir sua forma humana, Sheena
sentiu uma terrível dor nas costas, era como se alguém a tivesse pisoteado. Ainda
precisava aprimorar aqueles poderes.
Sua missão agora era entrar na sala de
Erlenmeyer e roubar as pérolas que estivessem em sua posse. Chegou aos seus
ouvidos de que havia três delas no laboratório, no seu devido tempo iria ao
encontro das outras duas; a Silenciadora só não esperava que a sorte
colaborasse tanto ao seu favor naquele dia.
— Me solta, seu grandalhão de merda! —
escutou a voz de um menino.
Sheena camuflou-se nas sombras para
observar o que acontecia. Um caçador de recompensas armado com um machado
enorme arrastava uma criança pelo braço para receber a recompensa. Bill fora
facilmente atraído para as ruas movimentadas de Bausonne com promessas, no
instante em que soube do sumisse de sua amiga Tootie, saiu para tentar
resgatá-la sozinho. Distante do olhar cauteloso de sua mãe, Amélia, acabou
sendo vítima de gente de má índole, justo no momento em que a Ordem do
Selamento se encontrava mais fragilizada.
Bill transformou-se em um guaxinim e
mordeu o dedo do homem que o largou com um berro enfurecido. Tentou correr para
longe, mas o sujeito estava tão furioso que poderia ter arremessado seu machado
e cortado o animalzinho em dois se alguém não o tivesse interceptado. Ao ver o
homem erguer o braços em fúria, Sheena perfurou seu peito pelas costas com sua
katana com o sigilo de um profissional. O grandalhão tombou para trás com um
baque e Bill parou de correr. Ela pediu silêncio para a criança com a ponta do
indicador.
Nem por um segundo Bill pensou que
estivesse a salvo, ele a reconheceu no mesmo instante — era a assassina que
matara sua família.
O menino não soube se chorava ou mijava
nas calças, o simples encontro com aqueles olhos amarelos acenderam uma faísca
que o impediu de sentir raiva ou desejar vingança, temia que ela tivesse
voltado para finalizar o serviço, embora a essa altura Sheena não desse a
mínima.
— V-você vai matar? Pode vir! Eu tenho a
Ordem inteira do meu lado agora, e eles são muito poderosos! — disse Bill de
punhos erguidos, tentando confrontá-la.
A Ordem? O que aquela criança sabia
sobre a Ordem? Como poderia incitá-lo a dizer o que buscava se ele não
compreendia linguagem de sinais?
A sirene voltou a tocar em estado
alarmante, o laboratório inteiro devia estar a par de sua fuga.
— Eles já devem estar chegando. —
murmurou Bill, apressado. — Eu preciso encontrar a minha amiga.
Sheena apontou com a ponta de sua adaga
na direção da criança e não precisou de linguagem de sinais para deixar suas
intenções bem claras:
“Você vem comigo”.
No andar térreo do laboratório, a porta
de entrada era detonada com a força de um tanque de guerra. Elma e Black Jack
lideravam a comitiva de duas pessoas — a Srta. Cléo e Amélia Altenburg estavam
tão desesperadas para encontrar seus filhos que não puderam esperar nem mais um
minuto sequer.
— Francamente, nós devíamos ter seguido
o plano até o final — reclamou Elma. — O exército foi acionado, a localização
deles já não será mais um mistério.
— É meio irônico pensar que ficamos
semanas planejando o plano perfeito de invasão para no final seguirmos a mesma
linha de sempre: entrar e acabar com tudo. Sério, nós já fomos mais discretos —
comentou Black Jack.
— O meu filho está aqui em algum lugar e
eu não sairei sem ele! — berrou Amélia, prestes a perder o controle.
— Acalme-se, Srta. Altenburg, os
reforços estão a caminho. Você não é a única que tem pessoas importantes presas
aqui dentro — falou Elma, apontando para Cleópatra que estava tão aturdida com
o fato de ter não ter sinais de Tootie há semanas que aquilo comprometia até
mesmo sua efetividade. — Nossa missão de invasão agora atribuiu uma nova causa:
resgatar nossos companheiros com vida. Pode ser que não acabemos com os planos
de Erlenmeyer em definitivo na data de hoje, mas faremos de tudo para salvar
suas crianças com vida.
— Estou doido pra chutar uns criminosos —
falou Black Jack. — Que comece o circo de horrores!
Os poderes de Black Jack tinham um
alcance tão grande que toda a iluminação em Bausonne se viu prejudicado, as
luzes começaram a oscilar de forma incessante e fagulhas estouravam do curto
circuito. Por estarem equipados com selos luminosos, teriam alguns minutos à
frente do inimigo, fariam o trabalho furtivo em busca dos prisioneiros enquanto
seus adversários se preparavam para um ataque vindo das duas frentes. Se
pudessem alcançar as celas, logo libertariam outros tótines capturados que, se tivessem
sorte, ofereceriam seu poder de bom grado na batalha. O principal intuito era
expor os laboratórios e toda a imundice que acontecia por debaixo dos panos, eles
mostrariam ao mundo que as pessoas desaparecidas não se tratava de um simples
infortúnio.
Os cientistas tentavam salvar
equipamentos e documentos sigilosos de seus trabalhos, alguns preferiam até
incendiá-los para que não fosse encontrado nenhum rastro de tudo que acontecera
no subterrâneo. Erlenmeyer caminhava tranquilo ao lado de sua secretária que
dava as devidas instruções aos empregados que corriam desorientados sem saber o
que fazer.
— Senhores, tenham calma. A ansiedade
não vai nos ajudar em nada agora — disse Erlenmeyer com a voz mansa. — Estamos
lidando com um simples imprevisto, as pesquisas devem continuar.
— Mas a besta está saindo de controle,
senhor! Não podemos mais controlá-la! — falou um dos envolvidos.
— Deixe-a para lá, faremos uma nova
futuramente, um aprimoramento.
— Se formos capturados hoje,
enfrentaremos pelo menos trinta anos na cadeia! — disse o chefe de pesquisas em
genética. — Eu não vou apodrecer na Cidadela Púrpura por ter me envolvido com
um lunático feito você, Erlenmeyer, e se me perguntarem, vou denunciar que tudo
isso foi um plano seu!
Uma dos espíritos que acompanhavam Erlenmeyer
materializou-se na forma do Lobo Negro, sua sombra começou a alastrar-se até as
costas do homem que sequer deu-se conta de sua aproximação. Ao virar-se para
trás, a imagem do animal o fez gritar, o lobo sua cabeça com voracidade
rasgando seu pescoço e manchando o chão de vermelho. A secretária ajeitou os
óculos, como se fingisse estar alheia ao que vira.
— Uma palavra dita contra mim é uma armadilha
perigosa. Que sirva de exemplo — disse Erlenmeyer para o corpo inerte. — Srta.
Sophia, peço que informe a todos que aprontem seus pertences, vamos nos
dispersar, mas nos realocaremos no laboratório 05 em Perpetua. Por hoje estão
dispensados.
A secretária fez um cumprimento breve e
retirou-se. Em meio ao frenesi e luzes oscilantes, Erlenmeyer retornou para sua
sala e reuniu alguns dos pertences que mais gostava, afinal, não sabia se teria
a chance de voltar para buscá-los depois. Ele sequer percebeu quando uma
presença furtiva aproximou-se dele pelas costas, mas seus Espíritos De Baixo
continuavam alertas.
Ela
voltou messsssstre, disse o Sussurro.
— A Silenciadora — Erlenmeyer murmurou
baixinho. — Decidiu mudar de lado, querida?
Sheena tinha uma de suas adagas
apontadas para o pescoço do gecko pelas costas.
“Entregue-me as pérolas”, ela fez um
sinal claro.
— São todas suas. Não sou nem louco de
tentar impedi-la. O que pretende fazer com elas, se me permite perguntar?
“Eu vou erradicar toda a mana do Reino
de Sellure. Não existirão mais tótines, seremos normais como os humanos.”
— Tentador. Uma deusa que abdica de sua
divindade — falou Erlenmeyer. — Ainda faltam duas pérolas, mas, conhecendo
você, não irá demorar nada para tê-las todas em mãos. Mas estou intrigado, o
que vem depois? Você conclui sua “missão” na terra, e então estará livre?
“Eu sou livre”, retrucou Sheena já
impaciente.
Erlenmeyer soltou uma risada histérica,
as luzes cessaram por completo e pôde-se ouvir nitidamente outras três risadas
no aposento. Eles não estavam sozinhos.
— Livre?! Criança tola! Você pensa que
está no controle, mas a verdade é que seu destino já foi traçado, você vai
terminar sozinha e esquecida pelo mundo — falou a serpente de maneira
assustadora. — Tic-tac, minha criança. Sua hora está para chegar.
Sempre temera as alucinações de
Erlenmeyer, e por não saber do que seus espíritos eram capazes, Sheena agarrou
a caixa de acrílico com espaço para cinco pérolas e desapareceu dali antes que
a situação se agravasse. Deixara Bill esperando do lado de fora da sala, pois
agora era o momento do garoto ter alguma serventia.
“Leve-me para os demais membros da
Ordem”, Sheena indicou através da linguagem dos sinais, mas a criança parecia
não fazer ideia do que ela estava dizendo.
— Você e eu... trabalhando juntos? —
perguntou Bill.
Sheena fez que não com a cabeça. Tinha
que ser mais objetiva.
“Ordem do Selamento. Pérolas Sagradas.”
— V-você vai me ajudar a encontrar minha
amiga e recuperar as Pérolas Sagradas?
Sheena levou a mão até o rosto,
impaciente. Não era exatamente o que queria, mas poderia funcionar.
A mulher segurou na mão do menino
enquanto o guiava pelos corredores escuros do laboratório, seus olhos brilhavam
como holofotes e indicavam o caminho. A maioria dos pesquisadores locais
evacuava pela saída de emergências, a sirene continuava incessante e ela torcia
para que não precisasse sujar suas lâminas outra vez. Como convivera por muitos
meses naquele compartimento, sabia situar-se bem. Seguiu em direção do terceiro
subsolo, pois era onde as crianças eram mantidas; se tivesse sorte, a amiga do
garoto-guaxinim ainda estaria viva e, se seus palpites estivessem corretos, eles
a levariam até os demais guardiões da Ordem.
Durante a fuga, ninguém parecia ter se
preocupado em libertar as crianças no armazém, podia ouvi-las se aglomerarem na
porta, chorando e implorando para que recebessem ajuda. Apesar de não possuir a
chave de acesso, Sheena abriu o portão com um corte incandescente e assustou-se
quando o rombo permitiu a passagem de pelo menos trinta crianças que correram desesperadas.
Em meio ao aglomerado, Bill reconheceu Tootie que parecia mais magra e esgotada
desde que desaparecera de forma misteriosa.
— Bill! Bill! Você veio, eu sabia que
viria! — disse a menina que tropeçou e caiu de joelhos no chão. Seu amigo a
ajudou a levantar-se e os dois se envolveram em um longo abraço. — Eu fiquei
com tanto medo... Foi a moça da recepção que me entregou para os homens ruins,
e-eles fizeram coisas terríveis comigo...
Bill assustou-se ao ver que o ombro de
sua amiga estava marcado por fogo, ela parecia ter sido submetida a torturas
leves, algo que nenhuma criança no mundo jamais deveria passar.
— Eu vou tirar a gente daqui, aguenta
firme! — falou o menino.
— Eu estou tão fraca, mal consigo me
mover — lamentou Tootie, sentindo as pernas fraquejarem. — Mas nós precisamos
ir embora, depressa... tem uma coisa lá dentro, ele não para de avançar...
Ao ouvir a confissão da menina, Sheena
sacou sua espada e preparou-se para um confronto iminente. Ao adentrar o
armazém, não viu monstro algum, mas uma curiosa estrutura de metal localizada
no centro chamou sua atenção, fazia um barulho incessante e tinha um relógio
acoplado que marcava uma numeração que decrescia um segundo de cada vez.
Trinta minutos para o quê? Sheena não
fazia ideia do que era, mas, vindo de Erlenmeyer, não devia ser bom sinal.
A Silenciadora não sentia apreço algum
por aquelas crianças — muitas delas, inclusive, ela mesma fora a responsável
por trazer ali —, mas também se recusava a deixá-las para trás, talvez ainda
tivessem algum valor. Quando subia as escadas em direção da saída, foi
interceptada por um mar de areia que a fez escorregar de volta para o chão.
— Amélia, encontrei as crianças! Leve-as
em segurança para longe daqui! — ordenou Cleópatra.
“Menos mal, pelo menos agora não terei
de ficar de babá”, pensou Sheena.
A assassina sequer tentou impedir que as
crianças fossem levadas, afinal, sabia que cedo ou tarde os demais integrantes
da Ordem viriam ao seu resgate, e seu verdadeiro alvo eram as Pérolas Sagradas.
Trocou um breve olhar com Amélia, lembrava-se dela por ter sido uma das únicas
que sobreviveram ao extermínio da família Altenburg, e por mais que a odiasse
sem mesmo conhecê-la, teria de vê-la sobreviver por mais um dia.
Amélia abraçou seu filho com força e
conjurou uma nuvem rosa capaz de locomover todas as crianças com agilidade para
fora dali. A estrutura do laboratório estremeceu, uma batalha devia estar sendo
travada nos pisos superiores, talvez as autoridades já tivessem chegado.
— Então você é a caçadora de tótines. É
mais bonitinha do que pensei. — disse Cléo, colocando-se em posição de batalha.
— Eu não vou permitir que continue espalhando terror para famílias inocentes.
Cleópatra ativou um feitiço que barrou a
passagem e impossibilitava qualquer rota de fuga. Sentia um desejo profundo de acabar com sua
oponente e cessar o reinado de terror da Silenciadora, pois estava furiosa.
Sheena investiu contra sua adversária, mas
Cleópatra era hábil em defender-se de golpes de curto alcance por utilizar-se
de paredes de areia que amorteciam qualquer ataque. Seus gigantescos golens de
areia tentavam golpear Sheena com a força de um canhão, ela cortou um ao meio,
mas outros dois menores surgiram de suas partes e a seguraram pelas pernas,
derrubando-a no chão. A assassina cravou sua adaga na testa de um dos monstros
que se desfez em um amontoado de areia e decepou a cabeça de outro, mas eles
continuavam a voltar. Tinha de evitar ser atingida a qualquer custo e focar-se
no que realmente importava — a convocadora.
Tinha dificuldades de aproximar-se dela,
Cleópatra era experiente em combates de longa distância e dominava sua magia de
terra com maestria. Ao dar-se conta de que suas habilidades com uma espada não
seria o suficiente, Sheena disparou uma explosão de água contra sua adversária
que viu-se mobilizada pela desvantagem de seu elemento. Se não tivesse roubado
aquela habilidade do gigante prisioneiro, estaria em maus lençóis.
Em um momento de descuido, Cléo foi
atingida no abdômen por um punhal, o corte foi profundo o bastante para
perfurá-la e atingir seus órgãos. Ela ajoelhou-se no chão e tentou estancar o
sangue, mas sua visão começou a ficar turva e a guardiã percebeu que não teria
mais muito tempo.
“Então, é assim que vou morrer...?
Completamente sozinha e largada nesse buraco esquecido?”, pensou Cleópatra.
Quando seu corpo tombou para o lado, ela
desejou de todo coração que algum dia Tootie encontrasse uma família e pessoas
que a amavam. Fizera de tudo para dar-lhe uma vida digna nas longínquas terras
do deserto, onde toda criatura que o habitava tinha de viver um dia de cada
vez.
— Minha pequena — Cléo sussurrou bem
baixinho —, meu maior presente...
Seus olhos perderam o brilho. A Pérola
do Ouro escorregou de seu vestido e foi apanhado pela Silenciadora que subiu a
escada às pressas.
ii
Assim que Aedan chegou ao continente,
não demorou a localizar um ponto de destaque em Bausonne — uma multidão se aglomerava
ao redor de uma zona restrita, o exército fora convocado para investigar uma
possível facção criminosa que atuava no subterrâneo de uma taverna com um
laboratório clandestino. Para alguém que vivera a vida toda em uma Cidade
Cinzenta, aquilo mais parecia roteiro de um filme.
Detestava ter de sair de sua ilha, mas
precisava partir em busca da pérola que vendera para Brando, e no continente
tinha mais chances de encontrar respostas. Tinha a esperança de que, ao
recuperar um artefato tão precioso para sua família, talvez sua mãe e seu pai
pudessem voltar logo para casa. Deixara Elice aos cuidados de Lyndis — uma amiga
dos tempos de colégio que tinha uma quedinha por ele —, pelo menos até que
voltasse e trouxesse de volta a maldita pérola.
Em meio à multidão, Aedan distinguiu uma
boina vermelha e uma jaqueta surrada marrom que só poderia pertencer a uma
pessoa.
— Filho? O que você está fazendo aqui? É
perigoso! — Hugh Burnout falou alarmado.
— Eu é que pergunto, você não ia fugir
para longe feito o que covarde que é? — Aedan o desafiou. — Sempre nos
bastidores, incitando os mais jovens e fugindo das lutas.
— Eu não vou discutir com você agora,
porque estou aqui a trabalho. As coisas esquentaram, a situação ficou crítica,
a Ordem do Selamento está se posicionando, e...
— Ordem, Ordem, é sempre essa merda de
Ordem! — Bastasse que os dois trocassem meia dúzias de palavras para que Aedan
se estressasse. — Por que não pergunta como está a sua família?
— Porque sei que estão seguros com
Isadora — respondeu Hugh.
— Pois saiba que a mamãe
desapareceu faz alguns dias — retrucou o mais novo. —
Simples assim, sumiu, evaporou, ninguém sabe onde ela foi parar.
Hugh ergueu o filho furioso e o prensou
contra uma parede.
— E você não fez nada
para protegê-la, seu imprestável?
Aedan devolveu-lhe o empurrão, ajeitando a gola da
camisa.
— Olha só quem fala,
você é marido dela. Onde é que você estava?
— Sua mãe é sensível às
mudanças no mundo, você sempre esteve bem ciente das condições dela... Ela não
suporta ver a nossa ilha sendo destruída, e ao ver nossa família desmoronar,
seu último alicerce foi prejudicado. Você nunca trouxe nenhuma alegria para
ela!
— Pra você o problema sempre é com todo
mundo, mas nunca percebe que sua ausência também estava matando elas aos poucos!
— Aedan ajeitou sua mochila e deu-lhe as costas, já estava farto daquela
conversa. — Se for para voltar para casa sem ela, é melhor que nunca
volte.
Hugh recuou incrédulo, mas percebeu que havia
passado dos limites.
— Eu vou trazer sua mãe
de volta, filho — disse o velho com a voz abatida. — Ela
deve estar escondida, sei onde costuma ir quando tem essas crises, mas logo irá
voltar. Tenha fé.
— Fé? Nesse mundo? — Aedan encheu-se de sarcasmo. — Você ouviu falar o que
acontecia dentro desse laboratório? Tótines eram usados como cobaias, eles
praticavam experiências em crianças, crianças! Da idade da Elice! Coisas assim
me fazem perder a fé nesse mundo, eu tenho é nojo de ser parte disso.
— Aonde pensa que vai? — perguntou Hugh.
— Entrar lá e colocar fogo em tudo —
disse Aedan com a voz séria. — Por que está me seguindo?
— Porque eu vou com você. Acha mesmo que
eu ia perder a chance de quebrar tudo ao lado do meu filho?
iii
Com quatro das Pérolas Sagradas em mãos,
Sheena supôs que não levaria muito tempo até que localizasse o último membro da
Ordem. Se a investida do governo tivesse mesmo começado, teria problemas em
encontrar uma rota de fuga, mas tinha confiança em seus poderes. Corria em
direção da saída de emergência nos fundos quando notou que Astra King repousava
tranquilo em frente à sua máquina, fruto do trabalho de toda uma vida. Sheena deu
meia volta levou a mão à bainha de sua espada. Sentiu vontade de decapitá-lo ali
mesmo, queria puni-lo por tudo que vira. Sua mente ainda sofria com flashes das lembranças que atordoavam,
quando se focava nas imagens, elas voltavam a atormentá-la.
— Ah, você veio... — disse Astra King,
sombrio. — Imaginei que fosse querer terminar o seu trabalho
Sheena sacou o punhal negro ainda
ensanguentado. Estava prestes a usá-lo, quando uma única frase a impediu de
continuar:
— Está pronta. Você pode usá-la, se
quiser.
“O que está pronto?”, ela pensou, quando
se deu conta do contexto. A máquina. O aparato da ciência capaz de anular mana,
a sua chance de viver uma vida normal quando tudo aquilo terminasse.
— Eu decidi permanecer aqui com minha
criação. Não quero que ela termine em mãos inexperientes — disse Astra King com
o olhar perdido, acariciando sua obra prima como se ela tivesse vida. — Estou
tão... feliz por vê-la funcionar. Meu trabalho está concluído.
“Você será preso e executado pelos
crimes que cometeu”, insinuou Sheena através da linguagem dos sinais.
— Sei disso, será uma perda irreparável
para o mundo, eu ainda tenho tanto a oferecer... mas prometi a você que te livraria
dessa “maldição”, então estou cumprindo minha palavra e oferecendo-lhe a
oportunidade. Entre na máquina, e tudo irá mudar.
A lâmina afiada da assassina encostou-se
ao queixo do homem.
“Se você aprontar alguma coisa...”,
Sheena procurava as palavras certas para expressar o que sentia. “Eu volto na
forma de fantasma para te assombrar”.
— Sempre fui apaixonado pelo seu senso
de humor — insinuou Astra King. — Apronte-se, vamos começar.
Sheena cumpriu cada passo conforme lhe
fora instruído. Preferiu não tomar nada que a colocasse em estado de sono
profundo, se acabasse dormindo era óbvio que seria capturada, então fez o
procedimento inteiro alerta. Mesmo que o laboratório ruísse ao seu redor e a
sirene gritasse em seus ouvidos, Astra manteve-se tranquilo todo o processo.
Achou que fosse sentir uma dor tremenda
quando a mana fosse extraída de seu corpo, tanto que permaneceu o tempo todo de
olhos abertos, procurando algum sinal daquele parasita indesejado que
finalmente teria a chance de se livrar. As luzes voltaram a oscilar, a redoma
foi preenchida por brilho e cor. Ela observou o Sr. King através do espelho, o
homem corria de um lado para o outro em busca de outro recipiente, pois a mana
atingia um nível tão absurdo que não poderia ser contida em uma única pérola de
vidro.
O processo todo levou pouco mais de
cinco minutos. Quando a sessão terminou, ela nem soube dizer o que havia
mudado.
— Hoje é o dia em que você renasceu —
disse Astra King com admiração. — Vá e viva sua vida.
Muito a contra gosto, a mulher estendeu-lhe
a mão para um cumprimento breve. Sabia que nunca mais voltaria a vê-lo, mas
algo na maneira como se comunicavam através do silêncio deixava a impressão de
que continuariam muito próximos, afinal, ambos estavam fadados a se
reencontrarem no Unferis e pagar por todos os crimes e atrocidades que
cometeram naquele mundo.
iv
Os guardiões da Ordem foram os primeiros
a invadirem o laboratório, a sobrecarga nos aparelhos causara pequenos focos de
incêndio que se alastrava por todo o complexo do edifício, o que dificultava a passagem.
Elma e Black Jack estavam nas celas liberando os prisioneiros, havia pelo menos
quarenta tótines encarcerados que iam desde homens e mulheres gestantes até
idosos em condições precárias.
Elma parou em frente ao alojamento de número
89, o portão era grande o bastante para acomodar um monstro de grande porte.
Com seus poderes que ampliavam a própria força, Elma foi capaz de erguer a base
de metal e abrir passagem para um gigante barbudo que nem se dera conta do que
estava acontecendo.
— Já é hora do jantar? — perguntou
Bernard.
— Olha, grandão, tem muita coisa pra
explicar agora, mas precisamos que você dê o fora daqui o quanto antes — falou
Black Jack.
— Mas vocês viram minha filha? E a minha
netinha?
— Desculpe-nos, senhor, realmente não há
tempo para lidarmos com isso agora — disse Elma apreensiva.
— Por favor, eu preciso de ajuda, elas
são tudo que eu tenho...
Black Jack balançou a cabeça, nunca
conseguia dizer “não” aos que necessitavam.
— Qual o nome dela?
—
Minha filha se chama Atani, e minha neta é a pequena Clair.
— A Srta. Atani? Ela estava aqui? — questionou
Black Jack, surpreso. — Ela é também uma das integrantes da Ordem do Selamento, mas desapareceu há meses.
A conversa foi interrompida quando um
pedaço do teto desabou devido às chamas. Bernard não teve problemas em controlar
o fogo com seus poderes de água.
— Então você é pai dela! Não é a toa que
é tão poderoso — disse Elma. — Se quer mesmo ajudar, tente controlar os focos
de incêndio, mas tome cuidado para não se ferir também, o senhor está há muito
tempo encarcerado.
— Oh, não se preocupem, fui muito bem
tratado aqui — disse Bernard com a voz gentil. A resistência dos gigantes era
mesmo incrível.
Elma e Jack retornaram ao primeiro andar
assim que Amélia voltou carregando as crianças em sua nuvem. Elas foram todas
encaminhadas aos cuidados dos integrantes do governo que ofereceram alimento e
atendimento psicológico imediato. Enquanto elas seguiam em fila, Elma aproveitou
a oportunidade para perguntar:
— Alguém viu uma garotinha chamada
Clair?
— A Clair foi embora há umas duas
semanas — respondeu uma menina de tranças com o olhar abatido. — Ela não vai
voltar mais.
Black Jack soltou um suspiro entristecido.
Iria doer ter de dar aquela notícia ao velho Bernard.
— Onde está a Cléo?
— Ela ficou para enfrentar a
Silenciadora — respondeu Amélia que não parava de abraçar seu filho.
— E você deixou ela para trás? — Jack
indagou furioso. — Isso é suicídio! Como foi que...
O líder da Ordem só parou de gritar
quando percebeu que Tootie o encarava desorientada, os olhos estavam vermelhos
e com olheiras das noites mal dormidas. Por um instante, a menina sentiu-se
sozinha e desamparada. Elma ajoelhou-se em sua frente e a abraçou na tentativa
de confortá-la.
— A Srta. Cléo... não vai mais voltar...?
— perguntou Tootie entre lágrimas.
— Vai sim, porque ela é muito forte, não
é? — sorriu Elma. — Sem contar que ela precisa te proteger, você é a garotinha
dela, sua sucessora. Agora escute, Tootie, eu preciso que você seja forte agora,
há muita coisa acontecendo...
Black Jack chamou a atenção de Elma quando
uma presença sinistra começou a se mexer em meio à fumaça. Amélia trouxe seu
filho para mais perto e Tootie escondeu-se atrás de sua saia. Ninguém soube
dizer o que era a princípio, pois ele era envolto por tantas peças desconexas
que mais se parecia com uma quimera, um animal que nunca fora concluído pelas
divindades. Tinha o formato da cabeça de um dragão cravado em metal, mas sem as
pernas traseiras. Ele movia-se através de duas enormes patas de ferro que se
arrastavam em meio a fios como se seus membros tivessem sido amputados,
emitindo um grito gutural e lamuriante que aterrorizava.
Jack convocou reforços dos soldados que começaram
a disparar flechas em sua direção, mas toda arma era repelida. Quando dois
guerreiros de machado tentaram confrontá-lo, o dragão de metal os esmagou com
seu tamanho, avançando devagar como se não tivesse controle de quem era ou o
que fazia ali.
Elma foi a primeira a atacá-lo com sua lança
perfurante, recebendo auxílio de Jack. O dragão parecia sequer ter olhos para
ambientar-se, logo, os poderes de Jack não surtiam efeito algum, ele era como
uma aberração falha que nunca deveria ter existido. Elma perfurou o peito
do monstro na tentativa de atingir seu coração, mas nem isso o fez parar. A
boca da criatura abriu-se com um estrondo, e entre palavras deformadas e
rangidos, pôde-se distinguir uma frase:
“Me... mate...”
Elma afastou-se aturdida com a mensagem.
“Pare com... nosso... sofrimen...to”.
Era como se houvesse a consciência de
inúmeras pessoas presas à criatura. A abertura permitiu que o dragão mirasse as
crianças, Amélia conjurou uma barreira de nuvens espessas para protegê-las, mas
o escudo foi destruído quando um raio a atingiu. Bill foi arremessado para
longe junto de Tootie, Amélia foi soterrada pelo peso da criatura que continuou
a avançar, o dragão entrou em um frenesi, atacando todos que estivessem ao seu
alcance. Elma gritou furiosa e pulou nas costas do monstro, perfurando-o
inúmeras vezes na tentativa de fazê-lo parar.
Bill arrastou-se devagar até onde o
corpo imóvel de sua mãe jazia, as pernas dela haviam sido destroçadas, mas ela
transmitia toda a serenidade e compaixão que sempre demonstrara para seus
filhos nas horas difíceis.
— Mamãe, mamãe, por favor, não me deixe!
— lamentou o pequeno. — E-eu não consigo sozinho, eu não posso perder você
também...
— Tia Amélia, por favor, eu não quero
ficar sozinha também — rogou Tootie. — Eu só tenho vocês.
Amélia tocou de leve com a ponta dos
dedos na bochecha de Bill e sorriu.
— Estaremos esperando você do outro
lado... meu menino. Nós te amamos...
Black Jack precisou segurar Bill e
Tootie nos braços e tirá-los dali antes que o cenário saísse do controle. O
dragão cuspia fogo e expelia fumaça por toda parte, a estrutura inteira do
prédio estava prestes a ruir. Elma percebeu que a temperatura começou a
aumentar de forma considerável, o reforço estava a caminho. O dragão abriu sua
bocarra para disparar um raio de energia em sua direção, ela preparou um forte
escudo elemental capaz de amenizar o impacto do disparo, mas quando se deu
conta, a cabeça da criatura foi arrancada por Hugh Burnout que cortou os circuitos
e a fez parar de se mexer. Com o auxílio de seu filho Aedan, o corpo deformada
foi rapidamente incinerado antes que apresentasse qualquer sinal de reação
feito um zumbi.
— O que era essa aberração? Eu nunca vi
nada parecido — falou Hugh.
— Em boa hora, velhote! — gritou Black
Jack. — Temos que levar todos para fora por uma passagem segura, nossa
prioridade é proteger os tótines inocentes.
— Diga por si só, eu
quero é matar o desgraçado que começou tudo isso — retrucou Aedan. — Onde estão
as Pérolas Sagradas?
— Ninguém as encontrou, Erlenmeyer deve
tê-las levado para longe daqui a essa hora — respondeu Elma. — Nós precisamos
continuar a procurá-lo, ele agora está em posse de quatro delas.
— Pode ficar tranquila, doçura. Ele
nunca vai ter a nossa, pois vamos protegê-la com nossas vidas — respondeu Black
Jack.
Assim que a última criança e prisioneiro
foram resgatados, Jack e Elma voltaram a entrar no laboratório em chamas em
busca de sobreviventes. O corpo sem vida de Cleópatra foi encontrado no
subsolo, seus amigos se recusaram a deixá-la ali e privá-la de um enterro digno.
Enquanto Elma preparava-se para o transporte, Jack descobriu a existência da
bomba que agora marcava quatro minutos e vinte segundos restantes.
— Puta merda! Elma, a gente precisa sair
daqui!
Os dois correram de volta para a saída,
dando ordens diretas de que nenhum soldado fosse deixado para trás. No caminho,
Bernard ajudou-os a levar o corpo de Cleópatra, carregando-a no colo como se
fosse uma criança adormecida.
Eles evacuavam os últimos soldados quando
Black Jack parou e olhou para o corredor escuro.
— O que está esperando?! Temos que ir! —
gritou Elma.
— Ela está aqui — afirmou Jack. — A
Silenciadora. Feche a porta, Elma. Eu vou lutar por todos aqueles que foram
oprimidos e não tinham forças para lutar por si próprios.
— Então eu ficarei com você, e nem tente
me impedir do contrário.
— Tá brincando? Eu me cagaria todo se
você não estivesse comigo.
Sheena revelou-se em meio à fumaça,
brandindo apenas sua katana com as mãos nuas. Ela poderia ter dado a meia volta
e fugido, mas não aquilo não seria de seu feitio. A assassina sabia que a
última Pérola Sagrada estava nas mãos de Black Jack.
Elma armou-se com sua lança e fez a
primeira investida, Sheena desviou-se do ataque e fez um corte lateral com o
intuito de matar, a espada cravou na armadura da guerreira e chegou a feri-la
no abdômen. Black Jack usou sua magia de escuridão total, mesmo que soubesse
que os olhos da Silenciadora brilhavam como dois faróis no escuro.
... mas ela falhou. Não estava enxergando
nada. Era o primeiro sinal de que sua mana estava começando a desaparecer, tinha
de terminar logo o serviço.
Elma acertou-lhe com força nas costelas,
a guerreira era enorme e troncuda, Sheena estava em situação crítica em uma
luta a curta distância, mas também não poderia afastar-se demais por conta da
lança de longo alcance. Tinha de se limitar a esquivar-se dos golpes e manter a
postura, desde quando fora tão dependente de seus poderes assim?
Elma a agarrou com os braços outra vez e
a atirou contra uma pilastra, Sheena recebeu um chute na cara de Jack que
arrancou sua máscara, expondo o rosto e as cicatrizes de sua infância.
Há quanto tempo não via o próprio
sangue?
Sheena limpou o ferimento e
concentrou-se em dar um único golpe, certeiro e mortal; notou que sua
adversária era lenta e usou a desvantagem dela ao seu favor, quando Elma ergueu
sua lança para atacar, Sheena deslizou a lâmina de sua katana e arrancou um dos
braços dela. Elma caiu no chão gritando de dor, a cena deixou Jack sem reação,
mas envolto por uma fúria que não podia ser contida.
Sheena ergueu o braço para conjurar um
feitiço de bloqueio, mas sua magia falhou outra vez, sentia-se fraca e
indisposta. A mana antes abundante estava em seu limite. Não suportaria muito
tempo. Jack a acertou com tanta força na perna que ela escutou um osso se
partir, precisou rastejar-se para longe dele, sua visão cada vez mais turva. Jack
a puxou pelo cabelo e empunhou sua katana caída, erguendo-se sobre ela como um
demônio sedento por vingança.
— Você terá seu fim pela própria espada!
— Black Jack arfou de cansaço, mas satisfeito por saber que colocaria um fim
definitivo ao legado de horror da assassina.
Em um último golpe desesperado, Sheena
virou-se e cravou sua adaga no peito de Jack que cambaleou e levou a mão ao
peito para conter o sangramento. Ele caiu para trás e as luzes voltaram a se
acender, Elma arrastou-se para perto do corpo dele, de repente sua ferida
pareceu-lhe superficial à dor de perder a pessoa amada..
— Me leve com você, por favor... eu só
peço isso — implorou Elma aos prantos.
Assim que os reforços chegaram, Sheena sabia que
precisava desaparecer dali. Hugh Burnout, um dos tótines de fogo mais poderosos
do reino, poderia incinerá-la em questão de segundos. Com um último esforço, a
Silenciadora concentrou o que restava de sua mana e seu corpo transformou-se em
fumaça, um poder que adquirira de Bill. No ato de desespero, mal percebera que
deixara para trás suas armas que a acompanharam há tantos anos — além da caixa contendo todas as Pérolas Sagradas
roubadas.
— Chamem uma emergência, ela precisa de
cuidados! — gritou um dos soldados.
Elma não queria receber atendimento, tão
pouco se desvencilhar do corpo do seu amado. Entre lamentos e lágrimas incensáveis
era possível escutá-la: “Eu nunca mais vou amar alguém como amei
você”.
Hugh contemplou todos seus colegas da Ordem mortos
naquele dia — Amélia Von Altenburg, Cleópatra, Atani,
Black Jack. A Ordem do Selamento fora destroçada, quebrada ao meio,
aquela deveria ser a maior derrota que eles jamais sofreram em toda sua
existência.
— O que você vai fazer agora? — perguntou
seu filho Aedan. — Você é o líder deles, não é?
Hugh olhou para o que restara de seu
legado, e deu-se conta de que era apenas um velho moribundo.
— Eu... eu não sei o que fazer. Perdoem-me.
Ao perceber a incompetência de seu pai, Aedan
sentiu que deveria ao menos algumas palavras para aqueles que lutaram e deram
suas vidas por aquelas malditas pérolas. Por mais que as odiasse, por mais que
abominasse as escolhas erradas e soubesse que nada consertaria os erros
cometidos, ao menos devia uma chance de todos ali presentes reconstruírem suas
vidas.
— Escutem, vocês agora pertencem à Ordem
do Selamento. Peguem essas pérolas e escondam-se, protejam-na com suas vidas. A
Silenciadora sobreviveu, e ela pode voltar um dia. Então corram, corram e nunca
olhem para trás.
Bill e Tootie soltaram as mãos, sem se
dar conta de que talvez aquela fosse a última vez que se veriam. Elma nunca
mais lutaria com a mesma eficiência, enquanto o velho Bernard jamais soube de
fato o que aconteceu com sua família naquela prisão de horrores.
A bomba explodiu nos minutos seguintes e
todos os rastros do trabalho imundo de Erlenmeyer foram apagados.
v
Seis meses se passaram desde o acidente no
laboratório de Bausonne.
Astra King recebeu toda a acusação de culpa pelo
projeto, terminou preso e condenado à prisão perpétua pelo Rei. A mídia ocultou
grande parte do ocorrido que ficou conhecido como “Caça aos Tótines”, foi um
tremendo alarde ter o nome de um dos membros do Conselho da Matiz atrelado a
experiências tão cruéis. Muitos acreditavam que o governo escondera parte da
pesquisa das massas para aprimorar seu poderio militar, mas nada nunca foi
comprovado. Teoristas acreditavam que o próprio exército tivesse se livrado das
evidências, avisando com antecedência sua chegada e permitindo que o
laboratório se livrasse de todos os vestígios. O povo regozijou-se com a ideia
de que “os maus finalmente foram punidos”.
Erlenmeyer nunca foi encontrado. O governo o considerou morto e sua ficha criminal nunca veio à tona. Dos que sabiam de seu paradeiro, ninguém jamais
considerou entregá-lo às autoridades, e os que tiveram a intenção de traí-lo encontraram de uma morte fria e silenciosa por enforcamento, sem sinais de
agressões ou violência.
Era uma manhã fria, mas também estava morrendo de
preguiça de acender a lareira. Sentou-se em sua poltrona onde passava a maior
parte das manhãs lendo, gostava de colher frutas pela tarde e passear na praia
em dias sem sol e de céu nublado.
Estava gostando muito daquela vida, lembrava sua
infância. A rotina na Ilha Quebrada era comum e sem grandes surpresas. Com
altos penhascos, extensas planícies e aves das mais variadas espécie, era um
espetáculo natural poder observar o mar bravio violentar o rochedo, o vento
soprava com tanta força que as palmeiras pareciam cumprimentar os visitantes.
Com suas trilhas íngremes e estreitas, era praticamente impossível alcançar o
cume da ilha onde residia uma humilde cabana que nunca era incomodada por
vizinho algum.
Sheena ainda mancava um pouco da perna e sentia
dores de cabeça nauseantes, nunca se recuperara por completo de sua batalha
final. Como a mana em seu corpo se extinguira, sendo ela também a responsável
por sua recuperação acelerada, tinha agora de ter paciência.
Nunca pensara em compartilhar sua vida com ninguém,
prezava o silêncio e até que gostava da vida com suas galinhas. Suas aventuras
pelo reino terminaram, não se considerava mais uma assassina, mas será que
aquilo significa que fora absolvida de seus pecados?
Enquanto tirava a poeira de uma das bancadas, encontrou
seu relógio de bolso deixado pelo pai, a última lembrança que restara da vida
antiga. Ao abri-lo, notou que continuava sem foto alguma, exceto pelo fato de
que, pela primeira vez, ela reparou em sua imagem refletida. As cicatrizes
continuavam lá, aquilo não mudaria quem ela era, mas deixou de reparar na
ausência das coisas e compreendeu que ela não precisava de nenhuma foto ali
para se sentir importante — era digna de viver
uma vida solitária e feliz sem influência externa.
Sua jornada chegara ao fim. Para o mundo, era como
se ela nunca tivesse existido.
E tudo estava perfeito dessa forma.
Apesar de algumas partes apressadas e um pouco confusas, foi um final muito bom para este especial! Dava para dividir este capítulos em 2 partes talvez e desenvolver melhor umas coisinhas. Mas adorei mesmo assim. Sheena é uma das minhas personagens favoritas de Sellure <3 AA
ResponderExcluirApesar de dar uma otima conclusão para as personagens, espero ver um pouco mais de cada uma num capitulo futuro, especial ou support. Nem que seja através de algum flashback.
Hey Shii, obrigado por vir deixar um comentário no fechamento desse especial, ele só funcionou por sua colaboração :3 Realmente, há alguns pontos que eu gostaria de ter trabalhado melhor, eu poderia ter feito uma Parte 7 e 8 a mais, sendo que meu planejamento inicial eram de apenas 5 kkkk
ExcluirA introdução do dragão de metal e sua criação já daria um capítulo inteiro, porque não é a primeira vez que vemos que o Erlenmeyer está construindo essas quimeras, e eu queria falar sobre a questão dele utilizar-se de seres vivos para dar consciência a esses monstros. Também senti falta de mais momentos fofos entre a Tootie e o Bill quando crianças, e até da Amélia e da Cleópatra se conhecendo melhor, mas isso eu teria que ter consertado beeem lá atrás. Tem também a família do Bernard, em momento algum mostrei do que a Atani era capaz. Até mesmo em cenas de lutas como o embate da Sheena contra a Cleópatra e o momento onde o Aedan assume a Ordem mereciam mais destaque, mas é aquilo que te falei no Discord, minha intenção era postar logo para que os leitores conhecessem os personagens e compreendessem tudo que aconteceu. Se no futuro aparecer a oportunidade de quem sabe lançar todas esses capítulos extras em um livro novo, eu voltaria para reler tudo e elaborar com muito mais cuidado, daria pra aumentar fácil umas 20 páginas! kkkkkk
Uma das vantagens desse especial é que eu mesmo pude conhecer mais sobre alguns personagens que ainda não tinham recebido destaque, como a Elma, agora estou ansioso para trabalhar essa questão dela nunca mais ter se apaixonado por ninguém.
Eu adorei falar sobre a infância do Aedan e sua briga com o pai, eram coisas que estavam na minha cabeça, mas nunca passei para o papel.
E tem a Sheena, acho que voltaremos a vê-la em alguns Supports, não é? Vou me esforçar para que isso aconteça, então por favor, não esqueça dela :') kkkkk Está uma briga boa entre 1º e 2º colocado no Miss Sellure, a essa altura tenho certeza que a Sheena ganhará uma imagem também! Vamos ver como ela vai se parecer 8 anos depois.