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sábado, 19 de agosto de 2023

Chuva, Jogos e Chocolate Quente [Support]

Chuva, jogos e chocolate quente 



Personagens: Ralph, Elice e Clover;

Gênero: Slice of Life;

Tema: Os personagens ficam presos na biblioteca durante uma noite chuvosa;

Sugestão do leitor: Sir Naponielli.


Notas do Autor:

 Eu não estaria mentindo se dissesse que essa ideia estava parada desde 2019 ou 2020, quando eu ainda planejava escrever as histórias paralelas para o blog. Nossa, eu nem quis terminar a arte do desenho, mas vai ficar assim mesmo. Com o passar do tempo foi ficando mais difícil de conseguir escrever apenas por prazer, e chega uma hora que a vida cobra suas prioridades.

Na última semana eu decidi voltar com o blog e trazer todos os conteúdos que eu tinha planejado e nunca entreguei. São cerca de 20 posts, então pretendo tentar postar ao menos um por semana até o fim de 2023 (céus, esse é o meu primeiro post do ano!). Ainda que quase ninguém ainda frequente blogs ou leia as coisas por aqui, estou contente por entregar algo que tenha toda a essência que eu sempre gostei dos Supports, além de mostrar um personagem que aparece no Livro 4 e eu nunca tinha explicado o motivo. É canônico, hein?

De qualquer forma, me desculpe pela demora de 3 anos, mano Napo! Pode ser que este seja nosso último Support, mas espero que a vontade volte a aparecer assim como novas histórias. Pegue o seu chocolate quente e boa leitura.



Ralph recolheu-se para longe da janela quando um relâmpago estourou, seguido por um clarão e enfim o ensurdecedor trovão que fez a estrutura da escola tremer. A biblioteca estava silenciosa e todos os demais alunos já tinham ido embora, exceto por Elice que folheava alguns gibis para afastar o tédio.

A Srta. Clover se encarregara de dar aulas de reforço para a garota, uma vez que ela nunca sequer tivera aulas presenciais. No começo foi estranho ter de compartilhar uma sala com outros vinte e tantos alunos. Quando estudava em casa com seu irmão, a atenção de Aedan era única e exclusivamente sua. Ele não tinha conhecimento aprofundado em nenhuma matéria, o que resultou em um singelo atraso em questões de matemática e língua estrangeira; mas Elice se saía muito bem em geografia e história de Sellure, além de ciências básicas e a magia dos tótines, pois era esforçada e curiosa por natureza.

— Não se preocupe, Elice. O Ralph teve aulas de reforço até se formar e ir para a academia — brincou a Profº Clover na ocasião. — E mesmo hoje ele costuma vir passar algumas tardes comigo aqui na escola.

Mas agora já passava das oito da noite, e a chuva não dava sinal de que daria uma trégua. Sendo uma tótines com um conhecimento tão profundo na natureza, Clover devia ter se atentado mais à mudança no tempo e os calafrios que Hayley vinha sentindo. Um raro ciclone fazia sua passagem pelo Mar Plano, mas ainda que não alcançasse a terra tinha força o suficiente para deixar o mar agitado e de ressaca como um bêbado imprevisível.

Elice deixou o gibi cair em sua cara e depois esticou os braços para os lados, estirada feito um tapete.

— Tô entediada.

— E eu tô com medo — murmurou Ralph, que detestava trovões e barulhos altos.

Clover terminou de corrigir a última prova e guardou o amontoado de papéis em sua pasta. Agora que adiantara o serviço, precisava ao menos entreter as crianças e garantir que eles não saíssem espalhando por aí que sua professora era ultrapassada e sem graça. Conhecia algumas maneiras de divertir os mais novos quando dava aulas para o ensino primário, mas adolescentes era um pouco mais chatos e exigentes.

— Então — Clover perguntou, cruzando os dedos para apoiar o rosto sobre suas mãos. — O que a geração de vocês faz quando estão entediados?

— Hmm... Deixa eu pensar — Elice começou a contar nos dedos sem se levantar. — Assisto desenhos animados. Vou passear no parque. Tomo sorvete. Faço esculturas de gelo das pessoas que detesto pra depois destruir elas.

— Certo — Clover ergueu as sobrancelhas e tentou mudar de assunto. — Seria muita maldade pedir que adiantem a lição de casa de amanhã, afinal, o cérebro também precisa descansar para poder aprender.

— Isso se as aulas não forem canceladas e a estrutura da escola ruir — Ralph respondeu trêmulo. — Tenho medo que o mar engula a Pequena Colina inteira!

— Isso não vai acontecer, e vocês não conseguirão fugir de mim.

Clover levantou-se de sua mesa e foi até um dos armários nos fundos, trazendo consigo uma caixa de papelão cheia de tranqueiras. Ela tirou os sapatos e sentou-se no chão junto de Elice, e logo Ralph aproximou-se para saber do que se tratava.

— Vocês já jogaram jogos de tabuleiro? — perguntou a professora.

— Uau... — Os olhinhos de Ralph brilharam. — O que são todas essas pecinhas pequenas e essas cartas com artes maneiras? E o que é essa coisa quadrada com bolinhas?

— Você nunca viu um dado? — Elice perguntou, tentando bancar a sabichona. — Eu aprendi com o meu irmão a jogar. Ele frequentava uns lugares bem legais onde as pessoas faziam apostas e ganhavam dinheiro com isso. Tinha também umas mulheres dançando em cima do palco, e--

— Pra resumir, é muito simples — Clover a interrompeu, pegou o dado de sua mão e o jogou, rolando o número cinco. — Agora eu escolho o peão verde, minha cor, e avanço cinco casas. O que diz no cenário?

— “Você se deparou com uma emboscada. Volte uma casa para se reagrupar e perca -10 de mantimentos” — Ralph leu em voz alta.

— Viram só? É bem simples. Querem tentar me desafiar? — Clover os instigou, parecendo muito convencida ao se vangloriar de suas habilidades. — Pois saibam que eu sou muito sortuda para essas coisas, e sempre ganhava quando meu filho trazia os amiguinhos dele para jogar em casa.

— Hah! Como se eu fosse negar um desafio — Elice se prontificou. — Vamos lá, Ralph. Não deixaremos ela se gabar com esse título de campeã por muito tempo.

Os jovens tentaram buscar a vitória, mas sua professora era mesmo muito sortuda. Não à toa recebera o título de Bad Lucky Clover — azar para uns, sorte para os outros —, pois em menos de vinte turnos ela conquistara uma vantagem astronômica, dominando o tabuleiro inteiro e instalando um reinado que não poderia ser superado nem em mil anos.

— Epa, acho que ganhei — disse a mulher de forma meiga.

— Ai, profê! Você é muito competitiva. Desse jeito o Ralph nunca mais vai querer jogar com você.

— Tá brincando? Eu amei! Só agora que estou entendendo as regras, e percebi que dá pra elaborar uma estratégia se eu guardar os itens e usá-los para atrasar o ritmo do adversário ou fazê-lo perder o controle de uma capital importante. Não se trata apenas de sorte.

— Vejo que você prestou bem atenção nas minhas instruções. Bom menino — Clover afagou-lhe a cabeça, orgulhosa. — Um dia você irá me suceder como a Mestra nesses jogos.

— Cansei disso. Quero outra coisa — resmungou Elice, que não gostava de perder. — Na verdade, estou ficando com um pouco de fome... mas não acho que vamos conseguir nada pra comer aqui com a cantina fechada.

— E se a tempestade nunca mais parar? Nós vamos morrer de fome? — Ralph voltou a se assustar com a ideia. — Tem muita coisa que eu preciso fazer, muito lugar pra explorar! Não deu nem tempo de cair o meu salário desse mês! Se precisar, eu saio correndo nessa chuva para buscar reforços. Será que o Capitão Relâmpago serve como para-raios?

— Ninguém vai sair nessa chuva, porque não quero ninguém gripado. Crianças, um adulto sempre está prevenido para essas situações — explicou-lhes a Srta. Clover. — Vocês esqueceram que eu sou uma confeccionadora de selos? Posso conjurar o meu caldeirão bem aqui, e... usá-lo pra cozinhar vocês.

O trovão que estourou fez as pernas de Ralph tremer conforme as silhuetas da professora eram iluminadas pelo clarão como se ela fosse uma bruxa aterrorizante. A luz oscilou e até mesmo Elice teve de admitir que levara um sustinho. Clover riu alto e divertiu-se com a cena, prometendo aos dois que lhes faria um sanduíche e uma bebida especial na sala de professores.

— Comportem-se vocês dois, ouviram? Nada de aprontarem até eu voltar.

Ralph e Elice baterem continência e voltaram a procurar alguma forma de se entreterem. O garoto continuou a estudar as cartas no tabuleiro enquanto sua amiga foi vasculhar o que mais de legal poderia encontrar na biblioteca. Ela voltou trazendo consigo um álbum de figurinhas incompleto, doado por alguma criança que provavelmente já se formara havia muito tempo.

— O que é isso? Posso ver? — perguntou Ralph.

— Senta aqui. — Elice o puxou para mais perto e o pôs sentado em uma almofada. — Se você nunca viu um dado, nunca deve ter colado figurinhas também. O que você fazia pra se divertir lá na sua terrinha onde só tem gecko?

— Eu imaginava um montão de coisas legais. Saía pra caçar dragões, brigava com os moinhos de vento... Nunca me sentia entediado, nenhum dia. Ainda me surpreendo quando penso que eu tinha o vilarejo inteiro para explorar, mas você mal podia sair de dentro de sua casa.

— Sim, e mesmo assim nós dois nos divertíamos de formas diferentes. Eu precisava usar minha imaginação como você — contou Elice. — Olha, essa é uma edição antiga do álbum de Grandes Heróis do Reino de Sellure, eu tinha um desses! O Aedan comprava um montão de pacotes na banca perto da mercearia, e eu esperava toda contente pra abrir e tentar tirar uma figurinha rara.

— Ela é rara porque é valiosa?

— Ela só é brilhante. Eu as classificava como comuns, incomuns, raras, e... lendárias.

— Uau — disse Ralph impressionado, desejando algum dia ter tido a chance de tirar um daqueles pacotinhos só pela sensação de conseguir as tais figurinhas lendárias. — Ah, olha aqui! Tem uma do Tokay Asa Negra com as bordas douradas!

— Siiim, ele com certeza era raro! Geralmente os personagens mais legais são as figurinhas mais requisitadas pelos fãs. Por exemplo, se você fosse uma figurinha, muito provavelmente seria dessas comuns e sem graça.

— Estou começando a entender. Creio então que o Aedan e a Auria seriam raros, enquanto o Raegar e o Raito seriam lendários. Aposto que o Bill e o Lesten seriam dessas comuns também. O que mais tem de legal aí?

— Tem o Ronem Romenor, o Conquistador. Ele foi o primeiro rei de Sellure, mas não deixou herdeiros e teve um fim muito trágico. Eu li um livro uma vez que contava a história dele. Espera um pouco, qual era o nome da vovó da Srta. Clover mesmo?

— Dona Hortência, eu acho.

— Nossa, essa feiticeira aqui também se chamava Hortência. Segundo a descrição ela foi uma das Sacerdotisas da Lua e era capaz de ter previsões sobre o futuro, além de atuar como estrategista de Ronem Romenor. Só que ela viveu há quase 100 anos. Quais seriam as chances de que fossem... a mesma pessoa?

— Aquela velhinha? Sem chance — brincou Ralph. — Ah, droga! Agora estou com vontade de criar o meu próprio álbum de figurinhas com nossos amigos.

Ralph e Elice continuaram a folhear as páginas, o que acabou por ser uma verdadeira aula de história. Eles se surpreenderam ao se depararem com Drake dentre os personagens lendários, e agora mal podiam esperar pela chance de mostrar para ele e dizer que depois de morto alguma empresa devia estar usando sua imagem para vender bonecos e brinquedos. Doppel com certeza morreria de rir, e Raegar faria questão de ter um boneco dele.

Para sua tristeza, faltavam as figurinhas do Velho Canas em seu auge e também de General Defesa. Ralph estava muito curioso para saber como eles eram em sua juventude.

Elice olhou de relance para o garoto ao seu lado e sentiu as bochechas corarem. Ele estava perto o bastante para sentir o seu corpo quente em contraste com a sensação sempre gélida que ela passava. Era adorável vê-lo sorrir e falar sobre as coisas que gostava, relembrando as tantas histórias que escutara do Narrador e como aquilo atiçara sua imaginação quando pequeno.

Quando sentiu o cansaço bater, Elice encostou a cabeça no ombro do amigo e ficou por algum tempo assim, sem escutar nada do que ele dizia, mas satisfeita por ter a chance de estar do lado dele.

— Eu espero que você nunca vire uma figurinha — falou Elice.

— Por quê? Eu queria virar uma.

— Porque no dia que você aparecer em um álbum assim, significa que você já morreu, ou que você se tornou grande o bastante para ser famoso. E aí com o tempo você... vai ter se esquecido de mim.

— Não diga bobagens — respondeu Ralph, sem desviar os olhos das páginas. — É óbvio que você vai estar lá em cima comigo.

Elice ficou tão vermelha que precisou esconder o rosto atrás do cabelo, ainda que o garoto continuasse completamente alheio o que acabara de dizer.

Cerca de meia hora depois, Clover voltou trazendo uma bandeja com os sanduíches e uma de suas especialidades — um delicioso chocolate quente cremoso com calda de caramelo. Mesmo que Ralph já fosse um adolescente e Elice tivesse acabado de completar doze anos, a Srta. Clover sempre os tratava como se fossem suas crianças, um resquício de seus traços maternos e a maneira como adorava cuidar e proteger os outros ao seu redor.

A professora cruzou as pernas e observou os dois jovens que riam e conversam contentes. Estava gostando muito da vida na Pequena Colina, e se orgulhava do quanto a escolinha vinha prosperando sob sua orientação como diretora. Claus e Rebecca deviam estar em casa a essa hora preparando a janta e cuidando da Vovó Hortência em sua ausência, não escondia como era grata pela ajuda deles. Às vezes até sentia como se todos os seus alunos fossem também seus filhos. Apesar do desejo inato de ser mãe outra vez, sentia que já era velha e ultrapassada para tentar, além de que dificilmente teria a chance de conhecer alguém que fizesse seus olhos brilharem outra vez.

— É muito bom ser jovem, não? — murmurou Clover, mais para si mesma do que para que alguém a ouvisse. — Sentir que tem tempo de sobra para arriscar, tentar coisas novas, e... ser feliz sem precisar de um motivo para isso.

Quando Ralph a conhecera, Clover já tinha perdido seu filho e marido durante a Caça aos Tótines. Queria ter tido a chance de conhecê-la em seu “auge”, talvez vê-la sorrir mais. Sentia que uma nuvem de tristeza a permeava sempre que a via sozinha, divagando os detalhes, como se todos ao seu redor tivessem o direito de ser feliz, menos ela.

— Como é se apaixonar por alguém, Srta. Clover? — perguntou Ralph.

A mulher deu um sorriso de relance ao perceber que Elice encolheu os ombros e desviou o olhar. Ela ainda podia ser muito nova para entender de romances, mas estava claro que começava a sentir algumas coisas.

— Bem, eu... isso faz muito tempo. Vocês querem mesmo ouvir uma velha falar sobre sentimentos?

— Que outra pessoa teria para perguntar? — questionou Elice, claramente interessada. — O Aedan é um chato nesses assuntos, tanto que tá solteiro até hoje. A tia Elma é totalmente autônoma e diz não precisar de homem para nada, enquanto a Tootie se enrola toda e no fim não explica nada.

Clover soltou uma risada adorável e voltou a se aconchegar entre os mais jovens, recolhendo uma porção de almofadas para que os três se estirassem no chão enquanto escutavam o barulho da chuva nas telhas.

— Eu tinha uns dezesseis anos e tinha acabado de ingressar na academia de Helvetica quando o conheci...

— O seu marido? — Elice perguntou com malicia.

— Não exatamente. Mas eu acho que foi a primeira pessoa que eu realmente amei nessa vida. Ele tinha cabelos escuros e um sorriso contagiante, só que era tão tímido que praticamente desaparecia no fundo da sala, tentando passar despercebido. Só que eu sabia que ele ficava me olhando lá de trás — contou a feiticeira. — Era dia 21 de Fevereiro, e ele juntou toda a coragem que tinha para vir conversar comigo. Com o passar do tempo, fui gostando mais e mais dele porque ele era compreensivo, gentil e me escutava. Nós passávamos horas falando sobre tudo enquanto caminhávamos pelos parques do Bosque Peridota. Quando me dei conta, eu estava apaixonada.

— Então antes de se apaixonar por alguém, você precisa ser amigo dela? — perguntou Ralph.

— Este é um passo importante, mas cada um tem a sua forma de amar. Algumas pessoas simplesmente sentem atração física, outros se impressionam com a capacidade intelectual ou poder aquisitivo. Alguns se apaixonam sem nunca ver o outro pessoalmente, acredita?

— Como assim? — perguntou Elice entre risadas.

— Trocando cartas e mensagens, oras! Esse mesmo rapaz por quem me apaixonei foi meu amigo de correspondência depois que nos formamos na academia. Cada um foi para o seu canto, procurei me aprimorar no estudo da mana e confecção de selos enquanto ele tentou carreira no exército. Depois de um tempo as cartas foram se tornando mais escassas, levavam meses para ter uma resposta, até que um dia não chegaram mais.

A expressão no rosto de Ralph minguou e ele lamentou em silêncio. Elice estava desapontada por aquela história ter tido um final triste, mas Clover foi ágil em remediar.

— Ah, mas isso não quer dizer que ele morreu! Só paramos de conversar mesmo — disse a mulher entre risos. — Acontece.

— Ô, caramba. E eu aqui emocionada pensando que era uma daquelas histórias de romance dramáticas que viram filme. Devolva minhas lágrimas! — praguejou Elice.

— Eu não entendi — emendou Ralph. — Então por que vocês pararam de conversar? Por que deixaram de serem amigos?

— Bem — Clover procurou uma forma clara de explicar —, um dia a vida adulta chega para todos. Temos de administrar melhor o nosso tempo, e muitas vezes não sobra nem energia para escrever uma carta a alguém para dizer que sente saudade. Aposto que nenhum jovem faz isso hoje em dia.

— Eu troquei cartas com a Auria nos tempos do exército. Tenho todas guardadas.

— Pois as guarde bem. Serão o seu tesouro — continuou Clover, retomando a sua história. — Depois que paramos de nos falar, eu me casei e tive um filho com outra pessoa. Tornei-me professora, me dediquei aos estudos e passei a viver tão ocupada que não tinha tempo para mais nada. O que quero dizer é que quase sempre não vamos terminar com a pessoa que imaginávamos. Afortunados são aqueles que se apaixonam e se casam com o primeiro a quem entregou seu coração.

Elice virou-se discreta e ficou encarando Ralph com os braços para trás. Ele tinha aquele jeito bobão e espontâneo, mas fazia o seu coração bater mais depressa. Apesar dos cinco anos que os separavam, dizem que as garotas amadurecem mais depressa. Ele não se parecia em nada com os heróis dos tempos antigos; na verdade, ele só queria mesmo era brincar e colar figurinhas, e justamente por isso parecia tão real. Havia alguma coisa que o fazia lembrar de Aedan, como se soubesse que ele sempre estaria ali para protegê-la.

“Sossega aí, coração. Volte para dentro e fique quietinho até ficarmos mais velhos”, disse Elice para si mesma.

A conversa se estendeu por tanto tempo que, quando se deram conta, a chuva já diminuíra. Por volta das dez da noite, Aedan, Raegar e o tio Bernard vieram trazendo agasalhos e um enorme guarda-chuva para protegê-los no caminho até em casa. Elice abraçou seu irmão e lembrou-se porque o amava tanto — sabia que ele sempre viria socorrê-la quando precisasse. Raegar por outro lado deu uma tremenda bronca em Ralph por não ter avisado ninguém onde estava, mas no fim sentiu mesmo era alívio por saber que todos estavam bem.

A Srta. Clover reuniu seus pertences e trancou a biblioteca, satisfeita por ter tido uma noite tão agradável ao lado de suas crianças com direito a jogatina e chocolate quente; mas apenas três dias depois ela sentiu a garganta roçar, o nariz entupir e uma febre infernal tomar conta. Precisou se ausentar no fim de semana e viajar até Bausonne onde os hospitais eram mais qualificados, e seus médicos, mais preparados.

“Se você não se cuidar na vida adulta, ninguém o fará por você”, pensou Clover, assoando as narinas machucadas de tanto usar papel. Ela estava exausta, dormira mal e com as costas doendo. A idade começava a cobrar seu preço.

O serviço público era gratuito na capital, mas isso significava que também precisaria tomar um chá de cadeira só para conseguir comprar alguns remédios e quem sabe ganhar um atestado para justificar as faltas. Se tivesse mesmo uma sorte daquelas, passaria o fim de semana inteiro comendo pipoca e vendo filmes, vestida com sua camisola com as pernas para cima. Foi quando escutou um dos clínicos chamar seu nome:

— Clover? Srta. Clover? É você mesmo?

A mulher virou-se com espanto ao perceber que o homem que lhe dirigia a palavra era a sua paixonite de infância — o mesmo com quem se correspondera por cartas durante tantos anos. Ele estava mais velho, com uma barba cheia e usufruindo do auge do charme dos quarenta anos. Ainda tinha os cabelos escuros, embora agora fossem decorados por fios grisalhos nos cantos e marquinhas de expressão nos cantos dos olhos quando sorria.

E quando a viu, ele abriu um sorriso enorme que mal cabia em seu rosto.

Clover amassou o papel sujo e limpou a mão no vestido, pondo-se de pé na mesma hora assim que o viu se aproximar.

— Mark! Nossa, eu nunca imaginei que iria te encontrar aqui.

— Sim, faz tanto tempo — disse o médico com a prancheta em mãos, como se hipnotizado por ela. — Como tem passado? Está doente? É grave?

— Não, de forma alguma. Só uma gripe besta, não se preocupe com isso.

— Minha sala está livre, vou atendê-la agora mesmo.

O Dr. Mark abriu a porta e puxou a cadeira para que ela se sentasse. Os dois não pararam de falar sobre tudo que acontecera nos últimos dezessete anos desde que se viram pela última vez. Clover culpava a si mesma por não ter retocado a maquiagem para esconder as rugas e nem pintado a raiz do cabelo, mas Mark lhe transmitia tanto conforto que era como se os dois voltassem a ser adolescentes caminhando despreocupados pelo Bosque Peridota.

— Lamento pelo que houve com sua família — contou Mark. — Foram tempos difíceis para tótines.

— Obrigada. Foi uma recuperação lenta e dolorosa, mas estou finalmente permitindo reconstruir-me — disse Clover, levando a mão ao coração e garantindo que sempre teria um pedaço onde viveria seu marido e seu pequeno menino, Trevor.

— Eu também perdi minha esposa há três anos para a Peste Negra — contou Mark. — É estranho pensar que procuramos aprender magia da cura para salvar vidas, mas não conseguimos poupar aqueles que mais estimamos, não?

— Sim. E aqueles que ficam têm de aprender a lidar com as peças que faltam.

— Você ainda mora em Helvetica?

— Não, me mudei para a Pequena Colina, uma ilhota isolada em Century. É um lugar extremamente adorável, e posso dizer que transformou a minha vida.

— Parece interessante. Estou precisando experimentar algo assim — concordou Mark, terminando de prescrever os últimos remédios bem devagar, só para ter a chance de passar mais um tempinho com ela. — Aqui está. Pegue também esse atestado e tire uns dias de folga, vão lhe fazer bem.

— Obrigada, Mark. Prestativo como sempre — agradeceu Clover, fazendo-lhe um cumprimento demorado e preparando-se para ir embora. — Bem, acho que nos vemos por aí, né?

— Com toda certeza — concordou o médico, pondo-se de pé e correndo até a porta para uma última tentativa desesperada de pôr os olhos naquela mulher. — Me diga, será que tem alguma chance de... voltarmos a trocar aquelas cartas?

— Você ainda se lembra disso? — Clover indagou só para fazer charme, como se ela própria não tivesse pensado naquilo todos os dias pelos últimos anos.

— Eu ainda tenho as suas guardadas comigo — o homem admitiu, meio corado.

— Não brinca.

— É sério. Sua letra era linda, parecia que eu estava lendo um pergaminho da realeza. Espero sinceramente que tenha perdido as minhas, pois eu detestaria ler as abominações e erros de ortografia que eu cometia para uma mulher que viria a se tornar professora.

— Infelizmente não as tenho mais... Ei, mas isso pode ser um sinal para trocarmos novas experiências, não?

— Você tem o meu endereço — acrescentou Mark, apontando para o atestado. — Acho que hoje é o meu dia de sorte.


quinta-feira, 6 de maio de 2021

Quando eu sair por aquela porta... [Support]

Quando eu sair por aquela porta...


Support Conversation [Auria e Courtney]

Gênero: Drama;

Tema: Banheiras e o passado de Courtney;

Sugestão da leitora: Shii.

 

Notas do Autor:

Há alguns anos uma amiga me pediu para escrever um especial que mostrasse como a amizade entre o grupo da Auria é divertida e respeitosa. Àqueles que ainda não conhecem os personagens, eles são introduzidos no Vol. 2 de Matéria – Alma de Diamante que nem foi lançado, mas mesmo que você ainda não saiba quem eles são, esse capítulo pode ser uma oportunidade bacana de conhecê-los. Apesar de a ideia original ser que ele fosse voltado para a comédia e até um pouco de ecchi com fanservice de sobra, acabei sentindo que era a chance perfeita de explorar mais sobre o passado da Courtney, e aí a ideia tomou um rumo que eu não imaginava. Por isso, deixo aqui o aviso de que pode conter alguns gatilhos sobre abuso, então leia com cuidado. De resto, espero que se divirta, e também reflita. Como sempre, que cause um amontoado de sensações!



A chuva piorou e agora as violentava com força incessante. Auria e Courtney corriam às pressas em busca de algum abrigo entre as ruelas estreitas da capital. As chuvas torrenciais eram intensas durante o verão e logo não havia mais nenhum rastro do calor quente e aconchegante de horas atrás, apesar da certeza de que aquele clima desagradável também iria passar.

Suas roupas estavam encharcadas até os sapatos. Não deviam ter se desviado tanto de seu percurso, mas Courtney era a culpada por parar em toda e qualquer loja pelo caminho — primeiro em uma de pingentes, acessórios, chapéus exóticos e por último a sorveteria antes de fechar. As duas garotas se abrigaram debaixo de uma construção baixa com o teto em forma de cúpula na praça, aguardando que o tempo desse sinal de melhora. Ainda estavam a pelo menos vinte minutos de caminhada até seu dormitório nos limites da fortaleza.

As duas se entreolharam ensopadas, morrendo de frio, e agora rindo sem parar. A maquiagem de Courtney estava toda borrada e os cabelos de Auria pareciam um porco espinho selvagem quando mexidos. A morena deu uma espiada por cima do ombro e notou que Courtney tentava tirar a água de sua camisa que estava levemente transparente, deixando à mostra o sutiã azul-bebê com rendinhas. Corou de nervoso, retirou a própria jaqueta e cobriu-a para protegê-la do frio.

— Ah, obrigadinha. Mesmo molhada, assim fica bem mais quentinho — agradeceu Courtney, encostando o rosto na jaqueta. — Ainda dá pra sentir o seu cheiro.

Elas ficaram bem perto uma da outra para se aquecerem. De repente suportar aquela chuva não lhes pareceu tão ruim.

Mas a paciência se esvaia lentamente, e logo descobriram que sorvete não sustentava o estômago. Estava escurecendo e os postes começaram a ser acesos nas ruas; àquela hora Henry devia estar preparando seu ensopado de lentilhas com bacon delicioso; se dessem sorte, teria também um balde cheio de pipoca para passarem a noite inteira conversando e fofocando sobre a vida alheia.

Auria virou-se aturdida quando notou que Courtney tocou seu rosto de leve, seus dedos deslizaram próximo aos lábios dela.

— Pronto — disse Courtney, lambendo os beiços. — Você estava com uma manchinha de sorvete. E pelo gosto era brigadeiro.

Auria a surpreendeu com um beijo repentino que fez Courtney derreter por dentro.

— E o seu era de morango.

Ainda atordoada e com as bochechas coradas, Courtney levantou-se num salto para olhar os arredores. Não havia ninguém na rua e a chuva não dava sinais de que iria parar.

— Quer dar uma passadinha em casa? — ela sugeriu.

— E você tem casa? — Auria perguntou intrigada.

— Óbvio que tenho, sua boba. Pensou que eu morasse numa caverna antes de entrar no exército? — disse Courtney rindo. — Eu acho que minha mãe ainda não voltou do trabalho à uma hora dessas, então temos meia horinha para dar um pulo lá, nos secarmos e colocar roupas limpas. Ainda tenho as chaves, mas vai ter que ser bem rápido porque não quero que ninguém me veja lá.

— Você é quem manda.

— Eu amo quando você me deixa no controle.

As duas saíram apressadas por entre os pingos gelados, a casa de Courtney era tão perto que realmente dava para enxergar o telhado. Localizada na zona dos humanos, era um sobrado apertado entre tantas outras casas idênticas em um bairro pobre da região. Precisaram entrar pelo quintal nos fundos, porque a tranca na frente havia sido trocada.

O interior era abafado e ainda mais estreito, com um longo corredor escuro que dava para outros cômodos menores. Só se escutava o barulho dos pingos lá fora.

— Vou pegar toalhas e trocar de roupa rapidão — falou Courtney. — Só não falo pra você se sentir à vontade porque, bem, já tem um tempo que eu não moro aqui.

Auria se moveu pouco e mal saiu da entrada. Tinha a impressão de que de alguma daquelas portas sairia um monstro assustador prestes a devorá-la. Sempre tivera curiosidade em conhecer a família dela, mas preocupou-se com o que via e não soube dizer como alguém tão alegre como Courtney poderia ter vivido tanto tempo trancafiada naquele lugar escuro e denso.

— Prontinho! — disse Courtney, vestindo um camisetão largo que lhe caía como um vestido. Ela ainda usava a jaqueta que já estava completamente seca, como se possuísse alguma propriedade mágica impermeável. — Aqui estão as toalhas. Vou só dar uma espiadela na geladeira, porque minha mãe costumava fazer uma gelatina de frutas deliciosa que eu sou apaixonada...

Assim que Courtney entrou na cozinha, deparou-se com um homem de roupão lavando a louça. O susto foi tão grande que a armadura de Auria ativou-se sozinha no corpo da pequena como um método de defesa, a garota tropeçou e caiu para trás de bunda no chão. O homem virou-se devagar para elas, sem demonstrar reação alguma diante dos estranhos em sua casa.

— Courtney? — ele perguntou com a voz baixa, porém rígida. — Quanto tempo.

— P-papai — ela murmurou, quase que inaudível.

Courtney recuou e escondeu-se atrás de Auria de forma involuntária. A forma como suas mãos puxavam as vestes dela demonstrava desconforto e inquietação. Suas pernas tremiam. Aquele velho senhor de idade não demonstrava perigo algum, mas sua presença parecia ocupar o cômodo inteiro como se ele cobrisse todas as paredes até o teto e não houvesse saída. Ele virou-se e ofereceu o café que estivera preparando.

— Eu não sabia que você viria — disse o homem.

— Eu não sabia que você tinha sido solto — respondeu Courtney.

— Fiquei surpreso quando sua mãe disse que você tinha saído de casa. — A fala do homem era mansa e tranquila, como quem não tem pressa alguma. Courtney mordia o beiço com tanta força que chegava a machucar. — Você vai ficar um tempo? Sua mãe está preocupada, porque você não mandou mais notícias.

— Estou servindo o exército, papai. Não tenho tempo para essas coisas — respondeu a garota. — Eu só vim aqui para me abrigar da chuva e buscar algumas coisas, mas já estamos de saída.

— Quem é a sua amiga? — perguntou o pai. — Ela é muito bonita.

— Auria Mercer, senhor — ela respondeu por si só com as sobrancelhas franzidas.

Courtney a segurou pela mão, implorando que partissem logo. O homem solitário bebericou um pouco de seu café e as vigiou silenciosamente.

— Ainda tem um pouco daquela gelatina que você adora — disse seu pai.

— Eu não quero.

Courtney destrancou a porta da frente e saiu às pressas sem olhar para trás. Até mesmo Auria teve dificuldades em acompanhar seu passado rápido, apesar de seus amigos sempre brincarem que ela tinha perninhas curtas e por isso precisava andar duas vezes mais depressa. O céu estava cinzento e sem graça, os cabelos rosados de Courtney eram o único vestígio de cor naquele mar de concreto. Auria percebeu que a água no rosto dela não era da chuva.

— Eu posso estar enganada, mas alguma coisa aconteceu naquela casa.

— Tudo aconteceu naquela casa, Auria — respondeu Courtney com a voz embargada. — Eu nunca deveria ter voltado lá, que ideia besta essa minha! Eu jurei que quando saísse por aquela porta eu seria uma pessoa nova, que nada mais disso iria me afetar, mas pelo visto eu continuo sendo uma idiota, estúpida, sempre me rastejando para onde está o perigo, sempre, sempre.

Ela começou a se judiar batendo na própria cabeça, mas Auria a segurou pelos ombros e a fez parar. Puxou-a mais perto de si e a abraçou, tentando transmitir algum consolo. Courtney chorava compulsivamente, seus braços tremiam e ela ia à direção oposta do dormitório como se apenas vagasse na chuva sem destino algum. Precisou ser guiada pelo caminho certo, tão antes chegassem, melhor.

A porta do dormitório se escancarou e Henry levou um tremendo susto da cozinha. Zeth pensou que as duas pudessem estar feridas pela forma como Courtney era praticamente arrastada porta à dentro. Auria a levou direto para o banheiro, onde as duas se trancaram. Seus amigos espreitavam do lado de fora, ansiosos e apreensivos por alguma explicação.

— Meninas, está tudo bem? — Zeth perguntou do outro lado da porta.

— Sim, sim — Auria respondeu brevemente . — Só nos dê um pouquinho de privacidade.

Henry e Zeth se entreolharam e retomaram seus afazeres, mas nada mais rendeu naquela tarde. Auria tentava controlar a ansiedade de sua amiga que balançava a cabeça constantemente em estado de negação, mordendo a língua para que ninguém lá fora escutasse seu choro.

— E-eu chamei ele de papai de novo. Foi sem querer — Courtney lamentava repetidas vezes. — Eu jurei a mim mesma que nunca mais o chamaria assim, mas ele me obrigava. Ele sempre me obrigou a fazer o que eu não queria.

Auria ficou sem reação, pois era a primeira vez que se deparava com alguém tão próximo que sofria abusos nas mãos de um familiar. Até então aquilo soava como uma história longínqua, como aquelas que só chegavam aos seus ouvidos vindos de outras garotas com quem não tinha contato algum. Pensou no próprio pai, que sempre fora tão compreensivo e acolhedor, e não conseguiu distorcer sua imagem de forma a torná-lo alguém ruim; mas a reação de sua amiga a faziam enxergar aquele velho senhor de roupão bebericando café numa imagem deformada e aterrorizante.

As duas permaneceram quase uma hora trancadas no banheiro até que Courtney recuperasse a compostura e estivesse em condições de conversar com seus amigos. Já estava antecipando o climão que ficaria entre eles, as perguntas incessantes, os olhares de pena.

No momento em que as duas saíram, havia quatro xícaras de chocolate quente esperando. Zeth estava estirando no chão comendo pipoca e estudando um livro de história sobre a Guerra das Espadas. Seus amigos agiram com toda a naturalidade e espaço que ela necessitava no momento.

— Eu não acredito que vocês tomaram essa chuva! Eu disse que a previsão dos magos hoje era de chuva, chuva e mais chuva — lamentou Henry.

— A gente meio que se perdeu no caminho — mentiu Courtney, seguido de um espirro.

Henry balançou a cabeça em sinal de negação. Foi até a bancada e preparou dois copos com líquido fervescente e duas pílulas na cor vermelha e amarela.

— Lamentável. Aqui. Tomem essa Vitamina C e engulam junto esse remédio de ervas para evitar de pegarem uma gripe. Vocês vão sentir sonolência e um pouco de cansaço, então quero que tomem um banho bem quente e só depois voltem aqui para beber o chocolate quente.

— Mas até lá vai ter virado chocolate frio — resmungou Auria.

— É só esquentar de novo, mané — disse Henry. Seus amigos achavam hilária a forma como o curandeiro agia com seriedade quando alguém estava doente, parecia até outra pessoa; sempre se preocupando com o bem estar e agindo como uma mãe observadora se certifica de que seus filhos permanecerão fortes e saudáveis.

— Eu não quero tomar banho — foi a vez de Courtney reclamar. — Pra mim já chega de água por hoje!

— Ah, não. Nem pensar — Henry tomou frente. — Quem lava as roupas aqui sou eu, e vocês não vão ficar zanzando por aí e molhando o assoalho que é de madeira. Quando o capitão voltar e o dormitório estiver cheirando a cachorro molhado, vocês vão ver o que é bom pra tosse!

Mesmo quando o curandeiro tentava parecer bravo ele falhava miseravelmente, mas sua ordem se tratando de enfermos era absoluta. As duas derrotadas estavam voltando para o banheiro quando se depararam com Zeth já com a toalha nas costas.

— Ei. Agora é a nossa vez — reclamou Auria.

— Nem vem. Vocês ficaram lá dentro cagando ou fazendo sei lá o que por uma hora, agora eu preciso usar também — retrucou Zeth entre risadas.

— Ô mãeeeee, olha ele! — brincou Courtney.

— Eu mereço... — lamentou Henry.

No fim das contas, alguém teve a brilhante ideia de entrarem todos juntos. Não se sabe dizer quem surgiu com o assunto, mas a banheira foi enchida com água quente até quase transbordar e logo todos os espelhos se viram embaçados com desenhos de corações, monstrinhos, uma árvore e algo de formato fálico duvidoso. Para preservar suas intimidades eles permaneceram de toalha, mas não havia vergonha alguma entre os quatro amigos que vinham treinando juntos já há alguns meses na Fortaleza Azul.

Auria lembrou-se de sua estadia na Pequena Colina, uma das mais famosas Casas de Banho em Century, onde as banheiras eram preparadas com água natural e sua única companhia feminina era Tootie na época. Courtney se ofereceu para lavar as costas de Auria e não perdeu a chance de provocar seus amigos insinuando gestos e toques com as mãos.

— Ai, gente, vocês agem como uns tremendos virjões! Desse jeito nunca vão conquistar uma garota — lamentou Courtney.

— E quem disse que eu quero um relacionamento agora? — indagou Zeth. — Essas coisas só complicam.

— Mas a vida é sobre lavar as costas um dia e ser lavado no outro! Vai, vira aí. Deixa que eu faço o serviço porque dizem que sou boa com as mãos — ordenou Courtney, Zeth não encontrou outra alternativa senão obedecer. — Essas suas cicatrizes... elas doem?

— Não são cicatrizes. São só marcas de nascença — respondeu ele com a voz séria. — E não, não sinto dor alguma. Acho que só dói quando escuto as pessoas fazendo comentários maldosos. Não é o tipo de coisa que gosto que as pessoas vejam.

— Puxa, e você não hesitou em mostrar pra gente. Isso que é confiança. — O sorriso de Courtney era sincero enquanto ela o enxaguava devagar. — Sabe, eu também não ligo de estar aqui compartilhando uma banheira com vocês. Em outros tempos isso seria impossível, e algumas pessoas podem até achar um tremendo absurdo, mas é que eu confio em vocês.

— Admito que eu também estranhei essa ideia do capitão de nos colocar para viver em um dormitório misto no começo — comentou Henry —, mas, vendo as coisas como são agora, eu não mudaria nada. Aprendi muito com vocês.

— Tipo o quê? — perguntou Auria.

— Que vocês também podem ser nojentas — falou Henry.  Eu odeio, odeio, odeio, odeio, odeio tirar cabelo do ralo. Que Araya me perdoe por essa ofensa, mas se eu precisar tirar outra vez sou capaz de ferir alguém.

— Para um padre você têm andado bem estressado — brincou Zeth. — Essa não. Será que estamos começando a ficar igualzinho ao capitão?

— Cruz credo, bate três vezes na madeira! — proclamou Courtney. — Por sinal, alguém sabe quando ele volta?

— Acho que só daqui uns três dias — explicou Henry. — Ele disse que foi escalado para uma missão de reconhecimento na costa que contorna o Monte Rochoso e a Caverna dos Aukalakas, mas não encontraram nada. Mas isso vocês já deviam saber, ninguém presta atenção no que o capitão diz?

— Só quando dá vontade — disse Zeth em tom zombeteiro. — Ele é como um pai pra gente, então, como bons filhos só escutamos o que queremos.

O semblante de Courtney se fechou na mesma hora ao escutar aquela comparação. Ela sentiu o sabor férreo de sangue no machucado em seu beiço quando o mordiscou. Auria segurou a sua mão, seu gesto por si só deixou claro que ela não era obrigada a dizer nada que a deixasse desconfortável. Por algum motivo, Courtney sentia que não queria mais esconder nada de seus amigos, por isso vestiu seu melhor sorriso e falou em voz alta:

— Eu tenho algo a contar para vocês. Mas não é bonito e nem engraçado, então me desculpem se eu cortar o clima, mas é porque não aguento mais manter isso guardado dentro de mim.

Courtney contou sua história. Contou detalhes que nem mesmo ela se lembrava até então, como se sua memória tivesse se certificado de apagá-los para evitar que voltasse a sofrer. Auria escutou angustiada, seu punho se fechava cada vez que ouvia um relato inédito de tudo que sua amiga passara nas mãos daquele homem. Henry cobriu os olhos e chorou baixinho, e todos eles se admiraram pela forma como Courtney contava tudo sem demonstrar tristeza ou mágoas.

Quando a história terminou, os quatro permaneceram quietos e desnorteados, ainda tentando assimilar tudo que havia acontecido. Era diferente de escutar relatos e acontecer com alguém do seu lado, e eles se sentiram péssimos por nunca ter perguntado ou oferecido ajuda.

— Nós demos sorte que o capitão não está aqui para ouvir isso — falou Zeth de repente. — Eu juro que ele iria atrás do seu pai para espancá-lo, quem sabe até matá-lo.

— E que ele continue sem saber, então, zíper na boca — respondeu Courtney, fazendo um sinal com as mãos. — Não quero arranjar mais dor de cabeça. Eu só fiquei muito assustada quando passei em casa hoje e descobri que ele voltou a morar com minha mãe. Ela é uma tremenda idiota por aceitar viver com ele depois de tudo o que fez conosco.

— Às vezes ela não tinha outra opção, Courtney — respondeu Henry, compreensivo. — Muitas mulheres se veem nessa situação e optam por não agir com o medo da punição. E tenho certeza que ela lamenta muito por tudo que aconteceu.

Courtney concordou com a cabeça. Seu único desejo era que sua mãe ficasse bem. Colocar tudo aquilo para fora a fez sentir-se mais leve, e então, pela primeira vez ela se viu derrotada e não pôde mais suportar o choro. Beliscou-se discreta, tentando se machucar de qualquer maneira para impedir que seus amigos a vissem naquelas condições como uma criança que teme ser apanhada.

— O papai... meu pai não é uma pessoa má, sabe? — ela indagou entre lágrimas, ainda sofrendo com a dúvida. — Ele está tentando melhorar, eu vi. Será que eu deveria dar uma nova chance para ele?

Zeth levantou-se aturdido e não escondeu seu constrangimento e fúria diante daquela declaração.

— Você consegue escutar o absurdo que está dizendo? Por Yllata, Courtney! Se eu visse esse homem na minha frente eu nem sei do que sou capaz de fazer. E pode ter certeza que, ao invés da prisão, ele iria direto para um hospital ou coisa pior.

— Não! — rogou a garota. — Não faça nada contra ele, por favor!

— Courtney, pare, você o está protegendo — retrucou Auria.

— Pessoal, vai com calma — suplicou Henry, tentando soar razoável. — Esse é um assunto delicado. Essa reação pode ser instintiva, e ela diz isso como forma de defesa diante de uma punição evidente.

Seus amigos se deram conta de que Courtney chorava abraçada aos próprios joelhos. Ela não mereceria ter de passar por toda aquela situação outra vez. Entre palavras desconexas ainda era possível distingui-la dizer: “Ele vai me achar. Ele vai saber que fui eu que contei. É tudo culpa minha por eu ser muito dada.” Auria ajoelhou-se e a abraçou, seguida por Henry e Zeth.

— Já chega — disse Auria com um suspiro. — Chega dessa história, chega dessas lembranças. A Courtney que conhecemos é uma versão nova, longe dos fantasmas que a assombraram em seu passado. Você nunca mais vai passar por aquela porta. Nós estamos aqui, e jamais permitiremos que isso volte a se repetir.

A respiração da garota aos poucos estabilizou e ela se permitiu relaxar. Quando saíram do banho, o chocolate quente estava frio e espesso, mas bastou esquentá-lo para que voltasse a ficar saboroso.

 

O dia seguinte amanheceu claro e com muito sol, mas Courtney acordou com um tremendo resfriado e precisou ficar de cama. Não tinha o que reclamar, afinal, seus amigos fizeram de tudo para que ficasse confortável  ganhou massagem nos pés, comida na cama e um cafuné gostoso antes de dormir às quatro da tarde.

Auria aproveitou a deixa e voltou à cidade para uma visita rápida. Lembrava-se de cabeça onde se situava a casa espremida que agora lhe causava um desconforto ainda maior. Tocou a campainha da frente e aguardou até que alguém a atendesse. Quem abriu a porta foi o pai de Courtney, vestido com o mesmo roupão cinza e uma caneca de café amarela na mão. O homem a reconheceu de imediato, mas seu rosto era incapaz de demonstrar reações.

— Ah, você voltou... 

Em outros tempos, Auria o teria dado um soco bem dado na boca. Pensou naquele pirata na Ilha dos Geckos que apanhara e perdera um dente por muito menos, e diziam que seu punho poderia colocar qualquer homem de joelhos; mas naquele momento, encarando a pobre e miserável figura em sua frente, percebeu que ela já estava destruída por dentro sem chance de conserto. Havia pouco que pudesse fazer para dar-lhe uma lição, e qualquer atitude inadvertida de sua parte logo espalharia os boatos por todo o bairro de que os alunos de Volker King eram um bando de arruaceiros violentos e arrogantes.

Auria ergueu um único dedo e o aproximou bem perto do nariz do homem antes de lhe dar a seguinte ordem:

— Eu gostaria que o senhor nunca mais chegasse perto da Courtney. Eu quero que saiba que ela está muito melhor conosco agora.

O homem fungou com o nariz e balançou a cabeça devagar, como quem faz uma promessa sem significado algum. Assim que Auria se distanciou, ele ergueu o tom de voz e fez seu pedido:

— Cuida da minha menina.

Auria precisou voltar só para deixar claro as suas intenções.

— Ela não é sua. A Courtney não pertence a ninguém.

Quando voltou para casa, Henry estava preparando uma sobremesa sem igual — gelatina colorida com frutas variadas, pois eram as favoritas de sua amiga.


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