sábado, 26 de março de 2016

Capítulo 2


Era o local mais distante que já estivera de sua casa, portanto fez questão de entrar com o pé direito: tropeçou e foi direto ao chão, pois não estava acostumado com degraus tão altos.
Quase ninguém parou com a correria e antecipação de seus dias na Estação Pérola, os poucos que ficaram não sabiam se riam ou ajudavam, consumidos por uma estranheza divertida e curiosa. Um homem trajado em uniforme aproximou-se para ajudá-lo, mas não fazia mais do que sua obrigação.
— Ei, garoto, você está bem? — perguntou, agachando-se para ficar da mesma altura que ele.
— Já levei tombos piores, mas esse foi engraçado, né?
— Bem... Só espero que não tenha se machucado. Foi uma queda e tanto.
O homem revelou um sorriso, contente por certificar-se de que sua manhã continuaria tranquila. Quando ficou de pé, Ralph teve que olhar para cima:
— O senhor é... enorme!
— Você é novo ainda, aposto que vai crescer — o homem de uniforme falou enquanto passava a mão nos cabelos avermelhados do garoto. Ralph tirou um papel meio amassado de sua mochila e começou a observá-lo.
O funcionário o olhava intrigado, até que por fim decidiu perguntar:
— Precisa de ajuda?
— Moço, sabe dizer onde posso encontrar esse lugar? — Ele entregou o documento. — Me surpreendi ao ser convocado, pensei que seria só mês que vem.
— Os incontestáveis quinze anos. — O funcionário riu enquanto lia o papel sem muita atenção. — Em breve teremos um grande soldado, não?
O guarda apontou para um grupo de jovens que se unira ao descobrirem que compartilhavam semelhanças, como a dúvida, a insegurança e o desgosto pelos geckos. Era incrível como os humanos se ajeitavam em grupos tão rápido, como uma espécie de modo de defesa. Talvez andassem assim por se sentirem mais fortes e protegidos.
— Seu lugar é na Vila das Pérolas. Siga para o norte, terá de andar pouco mais de um quilômetro pela estrada até o litoral. A academia fica próxima à costa, se quiser uma referência, siga sempre em direção da Ilha dos Geckos.
Ele agradeceu o guarda com outro gesto estranho, o que fez o homem cair na risada antes de voltar ao trabalho.
O apito do trem soou estridente e a máquina de ferro deixou a Estação Pérola em direção da Estação Diamante na província vizinha. Para o garoto, visitar as terras de Myriad tão distantes de seu vilarejo era uma experiência inédita, via pessoas altas e vestidas em roupas extravagantes, cada qual com seu estilo, fossem ternos e cartolas, armaduras pesadas ou vestes do dia a dia. Era como se viessem do mundo das histórias que ouvira na infância.
Era por volta das seis da tarde quando o trem chegou ao seu destino, mas ainda havia uma caminhada considerável até a Vila das Pérolas. Uma trilha de tochas estava acesa, servindo como guia para os estudantes recém-chegados pelo percurso até o litoral. Além do treinamento, o porto servia como transporte de mercadorias da ilha dos homens-lagartos. Do alto do penhasco era possível ouvir o som alto que vinha de uma festa que acontecia na praia e a Ilha dos Geckos distante sob o céu noturno, claro e límpido.
Na costa pôde avistar a Vila das Pérolas, seu novo lar. Era uma área voltada para o treinamento de guerreiros, portanto, recebia a visita constante de oficiais do exército que vinham dar palestras ou lecionar, alguns inclusive selecionavam os melhores para seus regimentos. Os jovens selecionados eram enviados para servir nas capitais de uma das oito províncias. O exército dos humanos era o mais populoso dentre as quatro raças e se concentrava em Constantia, onde a guerra acontecia.
De repente, Ralph teve que parar. Aproximou-se de uma ribanceira mais do que devia. Olhou para baixo e alguns cascalhos rolaram, somente então notou que poderia ter caído. Recuou um pouco assustado quando uma estranha ideia passou por sua cabeça, afinal, poderia descer a colina de um jeito mais prático e ágil. Ajeitou sua mochila e colocou o pé na primeira rocha da encosta da montanha. Alguns geckos da espécie das lagartixas eram dotados da capacidade de escalar paredes, então decidiu tentar. Bastou um pequeno declive e logo cometeu uma falha. Foi caindo, trombando e se esborrachando até que parasse na encosta do outro lado. Havia poupado pelo menos vinte minutos de caminhada descendo a colina.
Os ajudantes que encerravam suas atividades no cais até pararam para observar a cena, eles foram gentis em fornecer informações para localizar a casa nº 17 no corredor Essência do Luar.
— Não vai participar da festa de iniciação? — perguntou um deles e entreolharam-se de forma travessa, escondendo as próprias histórias. — Os veteranos organizam esse evento especial para receber os novatos.
— Um luau na praia — confirmou o segundo. — Você deveria ir. Conhecer gente nova, talvez encaixar-se em um dos grupos antes que fique para trás. Dá até para pegar umas gatinhas.
— Muito obrigado pelas dicas — Ralph respondeu, apesar de não ter intenções de comparecer.
Nos alojamentos, as casas possuíam um emblema em cima da porta de entrada com o símbolo da raça humana. Ralph avistou uma casinha pequena de madeira e teto retangular, aconchegante e agradável para seus costumes humildes. Eram todas agraciadas com uma bela vista para o mar.
Ao bater na porta, foi surpreendido por um rapaz moreno de manto azulado com entalhes em prata e um círculo opaco que representava a academia na Vila das Pérolas.
— Olá, você será meu companheiro de quarto? — perguntou Ralph.
— Casa sete? — A resposta soou seca enquanto o jovem afivelava o cinto e tentava prender os botões na camisa. Ralph voltou a olhar seu panfleto.
— Hm, dezessete.
— Aqui é a sete, não sabe contar?
— Oh, é verdade — falou surpreso, embora tenha soado um pouco mais irônico do que gostaria. — Desculpe, tenho alguns problemas com números.
O rapaz revirou os olhos, impaciente.
— Sua casa é essa aí na frente. Siga as dezenas.
— Agradeço a informação.
— Está indo para a festa também? — A festa que todo mundo insistia em falar.
— Não sou muito de festas.
— Que pena. Os veteranos costumam fazer trotes com os novos membros da academia e não vão largar do seu pé caso tente fugir.
— Não estou fugindo. Digamos que eu esteja apenas... escolhendo a que lugar pertenço.
O rapaz deu de ombros e fechou a porta. Ralph não sabia quanto tempo ficaria na academia, seus treinos poderiam durar semanas, meses ou até anos; a única certeza que tinha é que esperava não esbarrar com nenhum veterano. Ainda não tinha nível e experiência o suficiente para conquistar esse tipo de amigo.

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Os alojamentos fornecidos aos alunos eram usados até que fosse decidido qual caminho seguiriam na formação. Ralph poderia fazer o que quisesse, aventurar-se pelas redondezas e tomar banho uma só vez na semana. Ele deu uma volta pelo cômodo, não havia muito a se ver, explorara tudo; agora queria desbravar o restante do mapa que ainda não conhecia, mesmo sendo tão tarde.
Na entrada do alojamento masculino, uma placa em forma de seta indicava a direção da academia, do porto e da estação. Podia escutar o som da festa vindo da praia, garotas chegavam com suas saias curtas, cabelos longos e soltos; os rapazes vinham de queixo erguido e chinelos nos pés para se sentirem o mais confortável possível. Tinha de admitir que era uma temática litorânea atraente e convidativa, mas será que eles se lembravam que do outro lado do reino estava acontecendo uma guerra?
Caminhou pelas estradas que serpenteavam o litoral quando uma garota de passagem perguntou:
— Para onde está indo?
— Ainda não sei. O que tem para esses lados? — perguntou Ralph.
— Não há nada. Você deveria vir para onde todos os outros estão. É mais divertido.
Ralph seguiu seu percurso solitário até alcançar os portões de ferro que bloqueavam a entrada da academia. Era fim de semana e as aulas ainda não haviam começado, os muros altos tinham a função de manter qualquer invasor longe, mas que aluno seria louco de invadir a escola quando não precisava estar nela? Não poderia esperar até a manhã seguinte. Ralph enfiou a cabeça entre as grades e pôde se imaginar dentro da academia, treinando com sua espada de madeira e provando sua perícia. Via-se na arena de combate magnífica na entrada, observado por um dos oficiais do reino, um possível olheiro, que o levaria para longe dali em direção da glória e do sucesso. Encarava tudo tão maravilhado que, quando percebeu que sua cabeça estava entalada, entrou em desespero em meio à situação.
Poderia ter ficado preso por várias horas, mas, para sua sorte — ou um belo acaso do destino — alguém passava por perto.
— Ei. Precisa de ajuda?
— Acho que minha cabeça está entalada — concluiu Ralph com a cara no portão.
— Como é que você se enfiou aí dentro?
— Acabei de chegar ao vilarejo e estava tentando dar uma olhada no local... Pode deixar, acho que eu consigo me virar, não há nada nesse mundo que eu não resolva — respondeu Ralph.
— Hm, entendi. Seja bem-vindo, então.
A pessoa preparava-se para ir embora quando Ralph percebeu que não importava o que fizesse, não conseguiria sair. Então, gritou novamente:
— Moça, mudei de ideia! Pode dar uma ajudinha?
— Pensei que pudesse resolver tudo.
— E eu posso. — Ele se remexeu envergonhado com a situação. — Só que... não sozinho.
Sentiu a pessoa segurar seus ombros, manobrando-o de maneira que pudesse se livrar das grades com facilidade caso tivesse mantido a calma.
Ralph parou e olhou para trás atordoado. Agora que conseguia vê-la em melhores detalhes, reparou que se tratava de uma jovem de longos cabelos negros emaranhados, de uma beleza excêntrica em seu corpo bem desenvolvido. Devia ter os seus dezoito anos, era mais velha do que muitos na academia. Tinha feições de gente impaciente, dava para notar por causa das marcas de expressão na testa e as sobrancelhas franzidas, sempre atrasada para um compromisso que não existia. Transmitia a clara sensação de alguém que não era de muita conversa. Vestia calça legging e por cima usava uma jaqueta de couro preto que lhe servia bem. Estava sozinha e sem rumo, gostava de pessoas que compartilhavam da solidão.
Ralph a analisou por tanto tempo que chegou a incomodar.
— Ei, garoto, ouviu o que eu disse? — ela repetiu, estalando o dedo algumas vezes em sua frente e libertando-o do transe. — Só tenta se cuidar a partir de agora, tá bem?
— Muito obrigado pela ajuda. Meu nome é Ralph, sou o Guerreiro da Espada de Madeira, tudo com letra maiúscula!
A moça riu procurou alguém que estaria ouvindo a conversa porque não queria que ninguém pensasse que fossem amigos.
— Entendi. Esse lugar é repleto de gente como você, acho que vai gostar — ela falou num tom divertido, talvez acostumada àquele tipo de situação. — Seja bem-vindo, novato. Se precisar de ajuda, talvez nos esbarremos por aí.
— Onde estava indo?
— Estou voltando de uma festa — ela falou, enfiando as mãos nos bolsos e erguendo os ombros. — Som alto e gente desinteressante. Não faz muito meu estilo. Está pensando em ir?
— Se você disse que não estava bom, então prefiro ficar com você — respondeu Ralph.
— Entendi. Pensa em se especializar na arte da esgrima?
— Como é que sabe? Você é algum tipo de feiticeira?
— Se você pretendia ir a uma festa carregando essa coisa — Auria apontou para a espada de madeira —, então ela deve ser bem imporante.
— É, sim. Meu sonho é me tornar um herói famoso e embarcar em inúmeras aventuras com outros guerreiros para ajudar quem precisa. Quer fazer parte? Tenho um montão de sonhos para realizar.
— Não tenho tempo para essas brincadeiras. É como dizem: “se realizar sonhos fosse fácil, o mundo não estaria repleto de sonhadores”.
— Mas sonhar nos faz tão bem!
— A realidade é meio dura, garoto — ela respondeu com rispidez. — Quando for adulto, vai entender.
— Qual é o seu nome? Acha que poderíamos ser amigos, pelo menos?
— Pode me chamar de Auria — respondeu ao virar-se para ele, continuando seu caminho em marcha ré. — E isso vai depender de como você se sai nos treinos.
Ralph deu um salto ágil em sua direção, como um réptil que ataca sua presa sem dar-lhe chances de escapar. Auria recuou dois passos por ter sido pega de surpresa e quase caiu. Ele era veloz. Os dois se encararam bem próximos, de forma que Ralph lhe estendesse a mão em sinal de cumprimento.
— Qual seu título?
— Do que está falando?
O título é como você quer que as pessoas te conheçam. Eu sou o Guerreiro da Espada de Madeira, pois é assim que eu quero ser lembrado.
— Auria. Acho que só Auria mesmo — explicou meio envergonhada. — Onde eu cresci costumam dar mais importância ao sobrenome das famílias do que aos nossos próprios atos. Mas por que se interessar tanto por isso?
Ela soltou uma risada enquanto olhava para o chão e remexia os pedregulhos. Por algum motivo, Ralph emanava uma aura diferente dos demais, certa serenidade. Auria colocou as mãos nos bolsos de sua jaqueta e coçou os cabelos emaranhados.
— Foi bom conhecê-lo, Guerreiro da Espada de Madeira — disse ela de um jeito meio irônico, preparando-se para partir. — E se quiser saber, sou uma veterana da academia. Quero ver quanto tempo você aguenta nesse lugar, porque já estou aqui há quase três anos.
Auria continuava a olhar para trás ao tentar ir embora. Em seu íntimo sabia que aquele jovem tinha algo diferente. Sentia vontade de rir só de vê-lo ali parado, uma chama brilhante no meio da escuridão.
— Vai ficar aí a noite inteira? — perguntou Auria.
— Já estou indo — respondeu Ralph. — Obrigado pela ajuda.
— Certo, até mais.
Quando Auria tomou certa distância, ouviu o barulho das grades no portão. Voltou correndo para se deparar com Ralph que dessa vez tentava escalá-lo como se fosse uma espécie de réptil.
— Qual é o seu problema?!
— Pensei que dessa vez dava pra passar, sou meio curioso.
— Desce já aqui! Não é permitido que ninguém tenha acesso à academia depois de anoitecer, podem te mandar de volta com o nome manchado, sua família ficaria furiosa!
Ralph jogou-se de cima e assustou-a com o salto. Ele caiu no chão sem sofrer nenhuma colisão, com as duas mãos e os pés apoiados na terra como um ser quadrúpede. Apesar das circunstâncias, Auria apreciou o movimento.
— Belo salto — admitiu.
— Tenho algumas habilidades como os geckos. Mas e aí? Quais são suas?
— Olha, eu como e durmo bastante. Também luto para sobreviver, não desistir, continuar de pé e seguindo meu caminho. Pelo menos ainda estou tentando, não é? Vi colegas serem escalados para os melhores batalhões, todos eles seguiram em frente, mas eu ainda estou aqui.
— Fique tranquila, quando a oportunidade aparecer você saberá reconhecer — Ralph falou com um sorriso. — Nós podemos ajudar um ao outro.
— Não acredito que você possa me ajudar. Eu não consigo nem resolver meus próprios problemas, muito menos os de outra pessoa.
— Eu entendo. Mas eu acredito que você vá conseguir, sério. Eu acredito em você!
Diferente dos demais rapazes da vila, era a primeira vez que Auria sentia que alguém não estava tentando procurar uma solução óbvia para resolver problemas que somente ela poderia. O simples gesto de sensibilidade a surpreendeu.
— Já perdi a conta de quantas vezes tentei ir embora, mas você não deixou — disse Auria em meio a um sorriso confuso, daqueles meio tímidos e imprevisíveis, como alguém que está sempre disposto a trocar novas experiências.
— Isso é um bom sinal?
— Talvez você seja a coisa mais interessante que eu tenha no momento. Vai enfiar a cara no portão de novo? — Auria gritou de longe enquanto caía na risada.
— Por enquanto, não — Ralph respondeu com a mesma entonação. — Mas, se quiser saber, na verdade eu fiz aquilo porque queria que você voltasse!
Ela retribuiu um sorriso espontâneo. Sentia-se tranquila, seu coração estava leve. Fora dar uma caminhada para livrar-se dos problemas e preocupações de sua vida e aquela conversa se revelara em excelente hora.
Auria ainda não sabia, mas sentia que de alguma maneira estaria conectada a ele.



 

sexta-feira, 18 de março de 2016

Capítulo 1


“Nem sempre a vida segue como planejamos”, ouvira certa vez. Quando você for adulto vai entender.
O embalo foi forte o bastante para acordar o garoto que descansava a cabeça em uma das paredes gastas do vagão. Os trilhos enferrujados seguiam seu caminho contínuo pelos quais a locomotiva de ferro era conduzida. Era por volta das sete da manhã e todos repousavam em profundo silêncio. Enquanto os passageiros aguardavam a chegada do trem ao seu destino, Ralph ainda fantasiava. A mente estava perdida em cenas que passavam depressa na janela, abriu o vidro, respirou fundo e fechou os olhos. Ainda não tinha certeza se teria consciência e maturidade o suficiente para assumir as responsabilidades que batiam à sua porta, mas estava disposto a tentar.
Há horas estava sentado no mesmo lugar, o nervosismo em migrar para uma região desconhecida e iniciar seu treinamento mitigava diante das palavras de sua mãe de que tudo daria certo. Na primeira vez que saiu de casa para cursar os estudos, sua família lhe alertara sobre a necessidade de encontrar amigos para seguir na jornada da vida. Quando perguntou como faria para reconhecê-los, a resposta foi que era impossível — então devia ser como cair de paraquedas perto de alguém. A definição de amizade que tinha até então era a de que amigos surgiam de repente, preenchendo um pedaço que faltasse no outro. Acreditava que quando encontrasse as pessoas certas, saberia. Logo, sua ideia era de que amigos trocavam peças uns com os outros. Cada pessoa tinha um quebra-cabeça incompleto dentro de si, por isso devia viajar até completá-lo. Havia quem o completasse antes do tempo, outros levavam anos para descobrir que usavam uma peça errada. Alguns nunca conseguiam.
Ao seu lado, em um dos bancos, estava apoiada uma espada de madeira como se fosse uma pessoa. Era sua única companheira desde que aquela longa viagem começara.
— Aqui estamos. Nem dá pra acreditar, parece que passou tão rápido — murmurou.
Ralph rumava para a região de Myriad, uma das oito grandes províncias do Reino de Sellure. Vivera toda a infância no Vale dos Ventos, um vilarejo centrado na zona rural de Helvetica esquecido pelo tempo.
Durante toda a vida, Ralph cultivou memórias felizes e acolhedoras. Não teve um passado triste ou melancólico, nem precisava usar suas dificuldades como desculpa para seguir em frente. Pensava com frequência em seu lar. Era o tesouro mais precioso que carregava em suas memórias — gostava dos campos verdes e dos grandes moinhos, mas ansiava pelo que Sellure ainda tinha a lhe mostrar.
Despertou de seus devaneios quando o trem oscilou sobre os trilhos desgastados. Devia ser antigo, mas não o bastante para se tornar uma relíquia, uma vez que a tecnologia vinha aos poucos se alastrando pela região. Acabara de completar quinze anos, a idade em que os adolescentes deixavam suas famílias para começar os estudos e servir sua nação, uma distinção inigualável.
Estava tão ansioso. Sonhara com aquele momento a vida inteira, poderia ser a chance de descobrir de uma vez por todas a resposta da grande pergunta que o passado era incapaz de responder e o presente estava prestes a descobrir: o que o futuro me reserva?
Quando um velho de uniforme borrado passou ao seu lado, Ralph apontou para a janela e perguntou:
— Olá, caro senhor, pode dizer se já estamos chegando?
O velho lançou um olhar rápido para o garoto, mas manteve-se em silêncio e continuou com sua faxina, como se não tivesse a permissão de falar com os visitantes. Porém, vendo que ninguém os observava, chamou-o com um assovio baixo.
— Estaremos na estação dentro de meia hora. Aproveite a paisagem, Myriad é uma das províncias mais antigas e exóticas de nosso belo Reino de Sellure.
— Que boa notícia, mal posso esperar para me inscrever e começar a treinar. Esperei por isso o ano todo, ou melhor, talvez toda a vida — disse Ralph, contente.
Esse menino sorri bastante, o velho pensou consigo mesmo. Assistia pessoas entrar e sair do trem todos os dias, embora nunca mais voltasse a vê-los.
O faxineiro retomou a varredura dos corredores do vagão. Ralph apoiou-se na parte traseira de seu assento e virou-se para estender a conversa.
— Desde muito novo eu sonhava em ter uma aventura só minha, enfrentar os vilões, ser um guerreiro honrado... Quero ajudar as pessoas como puder e me tornar um herói!
— E o que você faria se descobrisse que na verdade a vida não é tão divertida quanto parece? — o faxineiro retrucou num tom baixo.
Para sua surpresa, Ralph sorriu e fez um cumprimento com a cabeça.
— Eu a farei ser legal comigo.
O velhinho também sorriu e por fim retomou seu trabalho.

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O tempo se arrastava, não havia nada para fazer no trem. Ninguém conversava e poucos pareciam dispostos a fazer novas amizades naquele ambiente tão estranho. As respirações desmotivadas e os suspiros pesarosos denunciavam uma marcha sem retorno. Ralph olhava cada passageiro, tentando entender o que se passava em suas mentes. Alguns desviavam o olhar, outros fingiam que não era com eles. Uma garota que não parava de roer as unhas chegou até mesmo a se incomodar.
— O que você está olhando?
— Você parece triste. — Era possível notar só pela forma como ela mexia as mãos.
— Só estou um pouco assustada. — Ela desviou o olhar. — Ei, você tem uma espada de madeira bem legal. Foi você quem fez?
— É presente de um amigo. Ele ficaria feliz se soubesse que guardei até hoje — respondeu Ralph, mas logo a garota se calou e ele teve de se conformar com o silêncio.
Um rapaz terminou de beber seu refrigerante de cor azulada e jogou a garrafa no chão. Ralph levantou para jogá-la no lixo quando o velho faxineiro passou e fez seu trabalho. O garoto do refrigerante reclamou alto, como se tivesse a necessidade de resmungar para alguém:
— Vai demorar muito para essa lata velha chegar? Já estou ficando de saco cheio em ficar enfurnado aqui. Que demora!
— Estamos indo para a Vila das Pérolas, um dos principais centros de recrutamento de Sellure. Paciência é uma virtude nos treinos que você fará parte — respondeu a menina.
— Não precisa lembrar. Foi péssimo ter de deixar minha família e meus pertences em Helvetica. Por ora só quero sair daqui, não aguento esse cheiro de gecko impregnado nas poltronas, estão sentindo? — argumentou, chamando a atenção de Ralph que despertou seus instintos ao ouvir alguém falar “gecko”.
— Irei certificar-me de livrá-los do cheiro depois que vocês saírem — o faxineiro falou num tom ríspido, mas o rapaz nem notou a ambiguidade da frase.
O burburinho recomeçou. O assunto despertara o interesse mútuo.
— Você ouviu? — uma moça comentou. — Há geckos por aqui também.
O jovem no banco de trás se pronunciou:
— Tomara que esses répteis façam uma passagem rápida pelo porto e não fiquem para bagunçar tudo como sempre fazem.
— Será que estão indo para a guerra? — disse outro, virando a cara para a janela. — Espero que de lá não voltem.
Ralph sentiu-se constrangido. Os geckos sempre tiveram uma rixa intensa com os humanos, falavam e se comunicavam com a mesma língua e mesmo assim não conseguiam se entender. Viviam debaixo do mesmo céu e estrelas, o que os tornava tão diferentes? Há quem não acreditasse na amizade sincera entre um humano e um lagarto.
Uma última cambaleada e precisou equilibrar-se em uma das paredes para não cair de seu banco. Pegou a espada de madeira no chão e olhou para os lados, era possível ver a Estação Pérola bem próxima do oceano, os trilhos desciam a colina para enfim retomar seu caminho e desaparecer no horizonte.
Ralph imaginava o que faria assim que chegasse a sua nova casa. Primeiro, entraria com o pé direito em seu novo lar. Uma nova fase teria início e ele ainda não sabia se estava preparado para algo tão importante.
Concluiu que nunca estaria. Mas teria de encarar do mesmo jeito.

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O apito soou, todos se levantaram ainda desordenados. Ralph esperou para não ter de enfrentar o trânsito de passageiros ansiosos enquanto refletia: bem, minha vida antiga acaba agora. Pegou sua espada de madeira e estava de pé para sair do trem quando o faxineiro o chamou:
— Ei, menino. Não está esquecendo nada?
Ralph olhou para os lados, pensando se de fato esquecera alguma coisa.
— Hm? Ah, desculpe, que falta de atenção a minha.
Ele voltou e deu um forte abraço no velho.
— Obrigado, meu senhor, por não me deixar esquecer.
Era aquilo que estava costumado a fazer quando ia para a escola e cumprimentava sua mãe. A imagem dela ainda era nítida em sua mente: “Não está esquecendo nada?”, e Ralph jamais se esquecia de abraçá-la, porque sempre havia motivos para agradecer.
O velho continuou a encará-lo com uma feição estática de surpresa. Não sabia ao certo por que Ralph fizera aquilo ou como devolver a bondade, mas por algum motivo ficou feliz. Era o primeiro abraço que recebia em muito tempo.
Ralph tinha esse estranho poder — contagiava as pessoas ao seu redor com felicidade. Transmitia o bem-estar para aqueles a sua volta, até mesmo as pessoas mais frustradas não conseguiam esconder um sorriso ao seu lado.
— Bem, hm, eu ia dizer que estava esquecendo sua mochila.
— Nossa, que cabeça a minha! — respondeu com a mão na testa, agradecendo pelo lembrete.
— Hah, hah. Estou de olho em você, garoto. — E deu-lhe uma piscadela.
Ralph pegou sua pequena mochila e foi embora. Até quando um jovem inocente como ele conseguiria virar-se sozinho no mundo? A academia se provaria intensa. Quando entrasse no exército sua situação não tenderia a melhorar e a vida não seria nem um pouco mais amigável.
O velho retirou um pequeno livreto do bolso, fez anotações e por fim o guardou. Do lado de fora do trem, Ralph acenou para ele de um jeito meio desengonçado. O velho só pôde rir ao concluir que aquela criança estava pronta para encarar a vida e o mundo à sua própria maneira.
Cresça e torne-se grande, meu jovem, mas nunca deixe de pensar como você pensa hoje. Com o coração, garoto, com o coração.

quinta-feira, 17 de março de 2016

Arte #04 - Ralph e Auria


Quando Auria foi criada, ela não passava da mocinha indefesa que espera ser resgatada. Hoje a história mudou, e é Ralph quem frequentemente precisa contar com seu auxílio para proteger-se. A relação desses dois melhorou muito, lembro-me que em meus primeiros rascunhos eu fazia os dois morando juntos, quero dizer, por que raios dois jovens morariam na mesma casa?! E, lá no fundo, nenhum gostava realmente do outro. Era como se morassem em uma república para estudos e tivessem que se suportar.

Ah, vai saber, nunca entenderei algumas dessas ideias antigas minhas...

Esta imagem pode ser encontrada no menu "As Histórias Perdidas", aqui consta a versão com fundo transparente.


Arte #03 - Meus Amigos


Esta imagem pode ser encontrada no menu "Especiais", aqui consta a versão com fundo transparente. Além da aventura que é o principal elemento de minhas histórias, sempre gostei de expor a Amizade de meus personagens. É um gênero que amo trabalhar, vemos uma conversa estranha num momento inesperado de nossas vidas, e de repente, quem diria que aquela figura estranha receberia o título de Melhor Amigo!

Arte #02 - Preparados para a Batalha!


Esta imagem pode ser encontrada no menu do "Guia de Informações", aqui consta a versão com fundo transparente. É interessante notar que a equipe só se completa após a metade do livro e, mesmo assim, por um período muito curto. Eles se unem uma única vez para derrotar um inimigo em comum, mas será que saberão fazer o melhor uso de suas habilidades para derrotá-lo?

Arte #01 - A Equipe de Ralph


Esta foi a primeira imagem liberada de Ralph e seus amigos, de volta ao Aventuras em Sinnoh em Junho de 2015, e mesmo que tenha sido postada apenas nessa data, foi em Julho de 2014 que ela começou a ser planejada.

A produção do livro ainda estava no começo, muitos dos personagens sequer tinham aparecido na história e, de certa forma, esse desenho foi responsável por formular personalidades, trejeitos e estilos. Eu ainda buscava quem seriam os outros dois fora a trindade principal (Ralph, Auria e Lesten), Lee e Hayley já formavam uma dupla antiga, mas, como numa guilda, às vezes acabavam saindo em missões paralelas para resolverem seus próprios problemas e não apareciam com frequência. Por enquanto temos 5 personagens na equipe, e esse número certamente vai aumentar! Às vezes nem eu tenho controle disso, os personagens simplesmente vão aparecendo e desenvolvem uma química tão forte que eu não poderia deixá-los de lado.

Abaixo você confere o primeiro rascunho dos personagens. E não é que nesses últimos anos eles já sofreram grandes mudanças?




sexta-feira, 11 de março de 2016

Too Bad! Dessa vez foi "QUASE"!

Jovens aventureiros! Trago boas e más notícias. A boa é que o livro recebeu sua PRIMEIRA PROPOSTA DE UMA EDITORA! É pra glorificar de pé, minha gente!
A má é que não estarei fechando contrato. Por ora.

Primeiramente, eu gostaria de agradecer todos que têm apoiado este projeto, não desistam de acreditar nele, e prometo que também vou continuar dando o meu melhor. Apesar de ter sido uma experiência muito bacana ver que uma editora tem interesse na publicação de meu livro, algumas burocracias no contrato me fizeram dar um passo para trás (se fosse há alguns anos e eu não tivesse maturidade o suficiente para ler e entender um contrato, eu poderia estar encrencado). Conversei com pessoas muito importantes para mim e decidi adiar. Não está na hora. Lá para frente posso ter problemas que exigirão muito de mim, e isso vai me desgastar além do que sou capaz de suportar.

Uma bela vantagem é que agora tenho uma boa noção sobre orçamentos de gráficas, serviços, tempo de produção dentre outros fatores que eu não fazia ideia. Já estou de olho em outras duas editoras que pretendo estar enviando meu original nos próximos meses. Minha última revisão está andando muito bem, mas sinto que faltam alguns toques profissionais para refinar o texto, então é minha obrigação procurar entregar o meu produto da melhor forma aos clientes. A história do Ralph demorou 10 anos para sair do rabisco e tornar-se o livro que desejo compartilhar com vocês, não adianta forçá-lo a sair, não quero desperdiçar esses personagens tão queridos para mim.

Não tenho como trabalhar numa continuação sem antes ter um feedback sobre o que vocês gostaram e o que merece mais atenção, mas posso e vou continuar trazendo desenhos, tirinhas, curiosidades e incluirei os capítulos extras que tanto desejo fazer, só para dar um gostinho do que está por vir. Às vezes não estamos numa fase boa, e nem sempre as coisas dão certo como planejamos, mas temos de continuar seguindo, não é? Agradeço a todos pelo apoio, dessa vez foi "quase", mas sei que lá para frente ainda estaremos rindo muito disso tomando um licor 43 e assinando meu mais novo lançamento!


sábado, 5 de março de 2016

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