sábado, 19 de agosto de 2023

Chuva, Jogos e Chocolate Quente [Support]

Chuva, jogos e chocolate quente 



Personagens: Ralph, Elice e Clover;

Gênero: Slice of Life;

Tema: Os personagens ficam presos na biblioteca durante uma noite chuvosa;

Sugestão do leitor: Sir Naponielli.


Notas do Autor:

 Eu não estaria mentindo se dissesse que essa ideia estava parada desde 2019 ou 2020, quando eu ainda planejava escrever as histórias paralelas para o blog. Nossa, eu nem quis terminar a arte do desenho, mas vai ficar assim mesmo. Com o passar do tempo foi ficando mais difícil de conseguir escrever apenas por prazer, e chega uma hora que a vida cobra suas prioridades.

Na última semana eu decidi voltar com o blog e trazer todos os conteúdos que eu tinha planejado e nunca entreguei. São cerca de 20 posts, então pretendo tentar postar ao menos um por semana até o fim de 2023 (céus, esse é o meu primeiro post do ano!). Ainda que quase ninguém ainda frequente blogs ou leia as coisas por aqui, estou contente por entregar algo que tenha toda a essência que eu sempre gostei dos Supports, além de mostrar um personagem que aparece no Livro 4 e eu nunca tinha explicado o motivo. É canônico, hein?

De qualquer forma, me desculpe pela demora de 3 anos, mano Napo! Pode ser que este seja nosso último Support, mas espero que a vontade volte a aparecer assim como novas histórias. Pegue o seu chocolate quente e boa leitura.



Ralph recolheu-se para longe da janela quando um relâmpago estourou, seguido por um clarão e enfim o ensurdecedor trovão que fez a estrutura da escola tremer. A biblioteca estava silenciosa e todos os demais alunos já tinham ido embora, exceto por Elice que folheava alguns gibis para afastar o tédio.

A Srta. Clover se encarregara de dar aulas de reforço para a garota, uma vez que ela nunca sequer tivera aulas presenciais. No começo foi estranho ter de compartilhar uma sala com outros vinte e tantos alunos. Quando estudava em casa com seu irmão, a atenção de Aedan era única e exclusivamente sua. Ele não tinha conhecimento aprofundado em nenhuma matéria, o que resultou em um singelo atraso em questões de matemática e língua estrangeira; mas Elice se saía muito bem em geografia e história de Sellure, além de ciências básicas e a magia dos tótines, pois era esforçada e curiosa por natureza.

— Não se preocupe, Elice. O Ralph teve aulas de reforço até se formar e ir para a academia — brincou a Profº Clover na ocasião. — E mesmo hoje ele costuma vir passar algumas tardes comigo aqui na escola.

Mas agora já passava das oito da noite, e a chuva não dava sinal de que daria uma trégua. Sendo uma tótines com um conhecimento tão profundo na natureza, Clover devia ter se atentado mais à mudança no tempo e os calafrios que Hayley vinha sentindo. Um raro ciclone fazia sua passagem pelo Mar Plano, mas ainda que não alcançasse a terra tinha força o suficiente para deixar o mar agitado e de ressaca como um bêbado imprevisível.

Elice deixou o gibi cair em sua cara e depois esticou os braços para os lados, estirada feito um tapete.

— Tô entediada.

— E eu tô com medo — murmurou Ralph, que detestava trovões e barulhos altos.

Clover terminou de corrigir a última prova e guardou o amontoado de papéis em sua pasta. Agora que adiantara o serviço, precisava ao menos entreter as crianças e garantir que eles não saíssem espalhando por aí que sua professora era ultrapassada e sem graça. Conhecia algumas maneiras de divertir os mais novos quando dava aulas para o ensino primário, mas adolescentes era um pouco mais chatos e exigentes.

— Então — Clover perguntou, cruzando os dedos para apoiar o rosto sobre suas mãos. — O que a geração de vocês faz quando estão entediados?

— Hmm... Deixa eu pensar — Elice começou a contar nos dedos sem se levantar. — Assisto desenhos animados. Vou passear no parque. Tomo sorvete. Faço esculturas de gelo das pessoas que detesto pra depois destruir elas.

— Certo — Clover ergueu as sobrancelhas e tentou mudar de assunto. — Seria muita maldade pedir que adiantem a lição de casa de amanhã, afinal, o cérebro também precisa descansar para poder aprender.

— Isso se as aulas não forem canceladas e a estrutura da escola ruir — Ralph respondeu trêmulo. — Tenho medo que o mar engula a Pequena Colina inteira!

— Isso não vai acontecer, e vocês não conseguirão fugir de mim.

Clover levantou-se de sua mesa e foi até um dos armários nos fundos, trazendo consigo uma caixa de papelão cheia de tranqueiras. Ela tirou os sapatos e sentou-se no chão junto de Elice, e logo Ralph aproximou-se para saber do que se tratava.

— Vocês já jogaram jogos de tabuleiro? — perguntou a professora.

— Uau... — Os olhinhos de Ralph brilharam. — O que são todas essas pecinhas pequenas e essas cartas com artes maneiras? E o que é essa coisa quadrada com bolinhas?

— Você nunca viu um dado? — Elice perguntou, tentando bancar a sabichona. — Eu aprendi com o meu irmão a jogar. Ele frequentava uns lugares bem legais onde as pessoas faziam apostas e ganhavam dinheiro com isso. Tinha também umas mulheres dançando em cima do palco, e--

— Pra resumir, é muito simples — Clover a interrompeu, pegou o dado de sua mão e o jogou, rolando o número cinco. — Agora eu escolho o peão verde, minha cor, e avanço cinco casas. O que diz no cenário?

— “Você se deparou com uma emboscada. Volte uma casa para se reagrupar e perca -10 de mantimentos” — Ralph leu em voz alta.

— Viram só? É bem simples. Querem tentar me desafiar? — Clover os instigou, parecendo muito convencida ao se vangloriar de suas habilidades. — Pois saibam que eu sou muito sortuda para essas coisas, e sempre ganhava quando meu filho trazia os amiguinhos dele para jogar em casa.

— Hah! Como se eu fosse negar um desafio — Elice se prontificou. — Vamos lá, Ralph. Não deixaremos ela se gabar com esse título de campeã por muito tempo.

Os jovens tentaram buscar a vitória, mas sua professora era mesmo muito sortuda. Não à toa recebera o título de Bad Lucky Clover — azar para uns, sorte para os outros —, pois em menos de vinte turnos ela conquistara uma vantagem astronômica, dominando o tabuleiro inteiro e instalando um reinado que não poderia ser superado nem em mil anos.

— Epa, acho que ganhei — disse a mulher de forma meiga.

— Ai, profê! Você é muito competitiva. Desse jeito o Ralph nunca mais vai querer jogar com você.

— Tá brincando? Eu amei! Só agora que estou entendendo as regras, e percebi que dá pra elaborar uma estratégia se eu guardar os itens e usá-los para atrasar o ritmo do adversário ou fazê-lo perder o controle de uma capital importante. Não se trata apenas de sorte.

— Vejo que você prestou bem atenção nas minhas instruções. Bom menino — Clover afagou-lhe a cabeça, orgulhosa. — Um dia você irá me suceder como a Mestra nesses jogos.

— Cansei disso. Quero outra coisa — resmungou Elice, que não gostava de perder. — Na verdade, estou ficando com um pouco de fome... mas não acho que vamos conseguir nada pra comer aqui com a cantina fechada.

— E se a tempestade nunca mais parar? Nós vamos morrer de fome? — Ralph voltou a se assustar com a ideia. — Tem muita coisa que eu preciso fazer, muito lugar pra explorar! Não deu nem tempo de cair o meu salário desse mês! Se precisar, eu saio correndo nessa chuva para buscar reforços. Será que o Capitão Relâmpago serve como para-raios?

— Ninguém vai sair nessa chuva, porque não quero ninguém gripado. Crianças, um adulto sempre está prevenido para essas situações — explicou-lhes a Srta. Clover. — Vocês esqueceram que eu sou uma confeccionadora de selos? Posso conjurar o meu caldeirão bem aqui, e... usá-lo pra cozinhar vocês.

O trovão que estourou fez as pernas de Ralph tremer conforme as silhuetas da professora eram iluminadas pelo clarão como se ela fosse uma bruxa aterrorizante. A luz oscilou e até mesmo Elice teve de admitir que levara um sustinho. Clover riu alto e divertiu-se com a cena, prometendo aos dois que lhes faria um sanduíche e uma bebida especial na sala de professores.

— Comportem-se vocês dois, ouviram? Nada de aprontarem até eu voltar.

Ralph e Elice baterem continência e voltaram a procurar alguma forma de se entreterem. O garoto continuou a estudar as cartas no tabuleiro enquanto sua amiga foi vasculhar o que mais de legal poderia encontrar na biblioteca. Ela voltou trazendo consigo um álbum de figurinhas incompleto, doado por alguma criança que provavelmente já se formara havia muito tempo.

— O que é isso? Posso ver? — perguntou Ralph.

— Senta aqui. — Elice o puxou para mais perto e o pôs sentado em uma almofada. — Se você nunca viu um dado, nunca deve ter colado figurinhas também. O que você fazia pra se divertir lá na sua terrinha onde só tem gecko?

— Eu imaginava um montão de coisas legais. Saía pra caçar dragões, brigava com os moinhos de vento... Nunca me sentia entediado, nenhum dia. Ainda me surpreendo quando penso que eu tinha o vilarejo inteiro para explorar, mas você mal podia sair de dentro de sua casa.

— Sim, e mesmo assim nós dois nos divertíamos de formas diferentes. Eu precisava usar minha imaginação como você — contou Elice. — Olha, essa é uma edição antiga do álbum de Grandes Heróis do Reino de Sellure, eu tinha um desses! O Aedan comprava um montão de pacotes na banca perto da mercearia, e eu esperava toda contente pra abrir e tentar tirar uma figurinha rara.

— Ela é rara porque é valiosa?

— Ela só é brilhante. Eu as classificava como comuns, incomuns, raras, e... lendárias.

— Uau — disse Ralph impressionado, desejando algum dia ter tido a chance de tirar um daqueles pacotinhos só pela sensação de conseguir as tais figurinhas lendárias. — Ah, olha aqui! Tem uma do Tokay Asa Negra com as bordas douradas!

— Siiim, ele com certeza era raro! Geralmente os personagens mais legais são as figurinhas mais requisitadas pelos fãs. Por exemplo, se você fosse uma figurinha, muito provavelmente seria dessas comuns e sem graça.

— Estou começando a entender. Creio então que o Aedan e a Auria seriam raros, enquanto o Raegar e o Raito seriam lendários. Aposto que o Bill e o Lesten seriam dessas comuns também. O que mais tem de legal aí?

— Tem o Ronem Romenor, o Conquistador. Ele foi o primeiro rei de Sellure, mas não deixou herdeiros e teve um fim muito trágico. Eu li um livro uma vez que contava a história dele. Espera um pouco, qual era o nome da vovó da Srta. Clover mesmo?

— Dona Hortência, eu acho.

— Nossa, essa feiticeira aqui também se chamava Hortência. Segundo a descrição ela foi uma das Sacerdotisas da Lua e era capaz de ter previsões sobre o futuro, além de atuar como estrategista de Ronem Romenor. Só que ela viveu há quase 100 anos. Quais seriam as chances de que fossem... a mesma pessoa?

— Aquela velhinha? Sem chance — brincou Ralph. — Ah, droga! Agora estou com vontade de criar o meu próprio álbum de figurinhas com nossos amigos.

Ralph e Elice continuaram a folhear as páginas, o que acabou por ser uma verdadeira aula de história. Eles se surpreenderam ao se depararem com Drake dentre os personagens lendários, e agora mal podiam esperar pela chance de mostrar para ele e dizer que depois de morto alguma empresa devia estar usando sua imagem para vender bonecos e brinquedos. Doppel com certeza morreria de rir, e Raegar faria questão de ter um boneco dele.

Para sua tristeza, faltavam as figurinhas do Velho Canas em seu auge e também de General Defesa. Ralph estava muito curioso para saber como eles eram em sua juventude.

Elice olhou de relance para o garoto ao seu lado e sentiu as bochechas corarem. Ele estava perto o bastante para sentir o seu corpo quente em contraste com a sensação sempre gélida que ela passava. Era adorável vê-lo sorrir e falar sobre as coisas que gostava, relembrando as tantas histórias que escutara do Narrador e como aquilo atiçara sua imaginação quando pequeno.

Quando sentiu o cansaço bater, Elice encostou a cabeça no ombro do amigo e ficou por algum tempo assim, sem escutar nada do que ele dizia, mas satisfeita por ter a chance de estar do lado dele.

— Eu espero que você nunca vire uma figurinha — falou Elice.

— Por quê? Eu queria virar uma.

— Porque no dia que você aparecer em um álbum assim, significa que você já morreu, ou que você se tornou grande o bastante para ser famoso. E aí com o tempo você... vai ter se esquecido de mim.

— Não diga bobagens — respondeu Ralph, sem desviar os olhos das páginas. — É óbvio que você vai estar lá em cima comigo.

Elice ficou tão vermelha que precisou esconder o rosto atrás do cabelo, ainda que o garoto continuasse completamente alheio o que acabara de dizer.

Cerca de meia hora depois, Clover voltou trazendo uma bandeja com os sanduíches e uma de suas especialidades — um delicioso chocolate quente cremoso com calda de caramelo. Mesmo que Ralph já fosse um adolescente e Elice tivesse acabado de completar doze anos, a Srta. Clover sempre os tratava como se fossem suas crianças, um resquício de seus traços maternos e a maneira como adorava cuidar e proteger os outros ao seu redor.

A professora cruzou as pernas e observou os dois jovens que riam e conversam contentes. Estava gostando muito da vida na Pequena Colina, e se orgulhava do quanto a escolinha vinha prosperando sob sua orientação como diretora. Claus e Rebecca deviam estar em casa a essa hora preparando a janta e cuidando da Vovó Hortência em sua ausência, não escondia como era grata pela ajuda deles. Às vezes até sentia como se todos os seus alunos fossem também seus filhos. Apesar do desejo inato de ser mãe outra vez, sentia que já era velha e ultrapassada para tentar, além de que dificilmente teria a chance de conhecer alguém que fizesse seus olhos brilharem outra vez.

— É muito bom ser jovem, não? — murmurou Clover, mais para si mesma do que para que alguém a ouvisse. — Sentir que tem tempo de sobra para arriscar, tentar coisas novas, e... ser feliz sem precisar de um motivo para isso.

Quando Ralph a conhecera, Clover já tinha perdido seu filho e marido durante a Caça aos Tótines. Queria ter tido a chance de conhecê-la em seu “auge”, talvez vê-la sorrir mais. Sentia que uma nuvem de tristeza a permeava sempre que a via sozinha, divagando os detalhes, como se todos ao seu redor tivessem o direito de ser feliz, menos ela.

— Como é se apaixonar por alguém, Srta. Clover? — perguntou Ralph.

A mulher deu um sorriso de relance ao perceber que Elice encolheu os ombros e desviou o olhar. Ela ainda podia ser muito nova para entender de romances, mas estava claro que começava a sentir algumas coisas.

— Bem, eu... isso faz muito tempo. Vocês querem mesmo ouvir uma velha falar sobre sentimentos?

— Que outra pessoa teria para perguntar? — questionou Elice, claramente interessada. — O Aedan é um chato nesses assuntos, tanto que tá solteiro até hoje. A tia Elma é totalmente autônoma e diz não precisar de homem para nada, enquanto a Tootie se enrola toda e no fim não explica nada.

Clover soltou uma risada adorável e voltou a se aconchegar entre os mais jovens, recolhendo uma porção de almofadas para que os três se estirassem no chão enquanto escutavam o barulho da chuva nas telhas.

— Eu tinha uns dezesseis anos e tinha acabado de ingressar na academia de Helvetica quando o conheci...

— O seu marido? — Elice perguntou com malicia.

— Não exatamente. Mas eu acho que foi a primeira pessoa que eu realmente amei nessa vida. Ele tinha cabelos escuros e um sorriso contagiante, só que era tão tímido que praticamente desaparecia no fundo da sala, tentando passar despercebido. Só que eu sabia que ele ficava me olhando lá de trás — contou a feiticeira. — Era dia 21 de Fevereiro, e ele juntou toda a coragem que tinha para vir conversar comigo. Com o passar do tempo, fui gostando mais e mais dele porque ele era compreensivo, gentil e me escutava. Nós passávamos horas falando sobre tudo enquanto caminhávamos pelos parques do Bosque Peridota. Quando me dei conta, eu estava apaixonada.

— Então antes de se apaixonar por alguém, você precisa ser amigo dela? — perguntou Ralph.

— Este é um passo importante, mas cada um tem a sua forma de amar. Algumas pessoas simplesmente sentem atração física, outros se impressionam com a capacidade intelectual ou poder aquisitivo. Alguns se apaixonam sem nunca ver o outro pessoalmente, acredita?

— Como assim? — perguntou Elice entre risadas.

— Trocando cartas e mensagens, oras! Esse mesmo rapaz por quem me apaixonei foi meu amigo de correspondência depois que nos formamos na academia. Cada um foi para o seu canto, procurei me aprimorar no estudo da mana e confecção de selos enquanto ele tentou carreira no exército. Depois de um tempo as cartas foram se tornando mais escassas, levavam meses para ter uma resposta, até que um dia não chegaram mais.

A expressão no rosto de Ralph minguou e ele lamentou em silêncio. Elice estava desapontada por aquela história ter tido um final triste, mas Clover foi ágil em remediar.

— Ah, mas isso não quer dizer que ele morreu! Só paramos de conversar mesmo — disse a mulher entre risos. — Acontece.

— Ô, caramba. E eu aqui emocionada pensando que era uma daquelas histórias de romance dramáticas que viram filme. Devolva minhas lágrimas! — praguejou Elice.

— Eu não entendi — emendou Ralph. — Então por que vocês pararam de conversar? Por que deixaram de serem amigos?

— Bem — Clover procurou uma forma clara de explicar —, um dia a vida adulta chega para todos. Temos de administrar melhor o nosso tempo, e muitas vezes não sobra nem energia para escrever uma carta a alguém para dizer que sente saudade. Aposto que nenhum jovem faz isso hoje em dia.

— Eu troquei cartas com a Auria nos tempos do exército. Tenho todas guardadas.

— Pois as guarde bem. Serão o seu tesouro — continuou Clover, retomando a sua história. — Depois que paramos de nos falar, eu me casei e tive um filho com outra pessoa. Tornei-me professora, me dediquei aos estudos e passei a viver tão ocupada que não tinha tempo para mais nada. O que quero dizer é que quase sempre não vamos terminar com a pessoa que imaginávamos. Afortunados são aqueles que se apaixonam e se casam com o primeiro a quem entregou seu coração.

Elice virou-se discreta e ficou encarando Ralph com os braços para trás. Ele tinha aquele jeito bobão e espontâneo, mas fazia o seu coração bater mais depressa. Apesar dos cinco anos que os separavam, dizem que as garotas amadurecem mais depressa. Ele não se parecia em nada com os heróis dos tempos antigos; na verdade, ele só queria mesmo era brincar e colar figurinhas, e justamente por isso parecia tão real. Havia alguma coisa que o fazia lembrar de Aedan, como se soubesse que ele sempre estaria ali para protegê-la.

“Sossega aí, coração. Volte para dentro e fique quietinho até ficarmos mais velhos”, disse Elice para si mesma.

A conversa se estendeu por tanto tempo que, quando se deram conta, a chuva já diminuíra. Por volta das dez da noite, Aedan, Raegar e o tio Bernard vieram trazendo agasalhos e um enorme guarda-chuva para protegê-los no caminho até em casa. Elice abraçou seu irmão e lembrou-se porque o amava tanto — sabia que ele sempre viria socorrê-la quando precisasse. Raegar por outro lado deu uma tremenda bronca em Ralph por não ter avisado ninguém onde estava, mas no fim sentiu mesmo era alívio por saber que todos estavam bem.

A Srta. Clover reuniu seus pertences e trancou a biblioteca, satisfeita por ter tido uma noite tão agradável ao lado de suas crianças com direito a jogatina e chocolate quente; mas apenas três dias depois ela sentiu a garganta roçar, o nariz entupir e uma febre infernal tomar conta. Precisou se ausentar no fim de semana e viajar até Bausonne onde os hospitais eram mais qualificados, e seus médicos, mais preparados.

“Se você não se cuidar na vida adulta, ninguém o fará por você”, pensou Clover, assoando as narinas machucadas de tanto usar papel. Ela estava exausta, dormira mal e com as costas doendo. A idade começava a cobrar seu preço.

O serviço público era gratuito na capital, mas isso significava que também precisaria tomar um chá de cadeira só para conseguir comprar alguns remédios e quem sabe ganhar um atestado para justificar as faltas. Se tivesse mesmo uma sorte daquelas, passaria o fim de semana inteiro comendo pipoca e vendo filmes, vestida com sua camisola com as pernas para cima. Foi quando escutou um dos clínicos chamar seu nome:

— Clover? Srta. Clover? É você mesmo?

A mulher virou-se com espanto ao perceber que o homem que lhe dirigia a palavra era a sua paixonite de infância — o mesmo com quem se correspondera por cartas durante tantos anos. Ele estava mais velho, com uma barba cheia e usufruindo do auge do charme dos quarenta anos. Ainda tinha os cabelos escuros, embora agora fossem decorados por fios grisalhos nos cantos e marquinhas de expressão nos cantos dos olhos quando sorria.

E quando a viu, ele abriu um sorriso enorme que mal cabia em seu rosto.

Clover amassou o papel sujo e limpou a mão no vestido, pondo-se de pé na mesma hora assim que o viu se aproximar.

— Mark! Nossa, eu nunca imaginei que iria te encontrar aqui.

— Sim, faz tanto tempo — disse o médico com a prancheta em mãos, como se hipnotizado por ela. — Como tem passado? Está doente? É grave?

— Não, de forma alguma. Só uma gripe besta, não se preocupe com isso.

— Minha sala está livre, vou atendê-la agora mesmo.

O Dr. Mark abriu a porta e puxou a cadeira para que ela se sentasse. Os dois não pararam de falar sobre tudo que acontecera nos últimos dezessete anos desde que se viram pela última vez. Clover culpava a si mesma por não ter retocado a maquiagem para esconder as rugas e nem pintado a raiz do cabelo, mas Mark lhe transmitia tanto conforto que era como se os dois voltassem a ser adolescentes caminhando despreocupados pelo Bosque Peridota.

— Lamento pelo que houve com sua família — contou Mark. — Foram tempos difíceis para tótines.

— Obrigada. Foi uma recuperação lenta e dolorosa, mas estou finalmente permitindo reconstruir-me — disse Clover, levando a mão ao coração e garantindo que sempre teria um pedaço onde viveria seu marido e seu pequeno menino, Trevor.

— Eu também perdi minha esposa há três anos para a Peste Negra — contou Mark. — É estranho pensar que procuramos aprender magia da cura para salvar vidas, mas não conseguimos poupar aqueles que mais estimamos, não?

— Sim. E aqueles que ficam têm de aprender a lidar com as peças que faltam.

— Você ainda mora em Helvetica?

— Não, me mudei para a Pequena Colina, uma ilhota isolada em Century. É um lugar extremamente adorável, e posso dizer que transformou a minha vida.

— Parece interessante. Estou precisando experimentar algo assim — concordou Mark, terminando de prescrever os últimos remédios bem devagar, só para ter a chance de passar mais um tempinho com ela. — Aqui está. Pegue também esse atestado e tire uns dias de folga, vão lhe fazer bem.

— Obrigada, Mark. Prestativo como sempre — agradeceu Clover, fazendo-lhe um cumprimento demorado e preparando-se para ir embora. — Bem, acho que nos vemos por aí, né?

— Com toda certeza — concordou o médico, pondo-se de pé e correndo até a porta para uma última tentativa desesperada de pôr os olhos naquela mulher. — Me diga, será que tem alguma chance de... voltarmos a trocar aquelas cartas?

— Você ainda se lembra disso? — Clover indagou só para fazer charme, como se ela própria não tivesse pensado naquilo todos os dias pelos últimos anos.

— Eu ainda tenho as suas guardadas comigo — o homem admitiu, meio corado.

— Não brinca.

— É sério. Sua letra era linda, parecia que eu estava lendo um pergaminho da realeza. Espero sinceramente que tenha perdido as minhas, pois eu detestaria ler as abominações e erros de ortografia que eu cometia para uma mulher que viria a se tornar professora.

— Infelizmente não as tenho mais... Ei, mas isso pode ser um sinal para trocarmos novas experiências, não?

— Você tem o meu endereço — acrescentou Mark, apontando para o atestado. — Acho que hoje é o meu dia de sorte.


  4 comentários:

  1. E do nada, no meio do texto, uma referência a Dom Quixote...

    Boa madrugada, Canas! Tudo joia? É muito bom ver algo aqui novamente, ainda mais um support tão amável quanto esse! Eu espero que não venha a ser o último, como você trouxe a tona a possibilidade, mas caso seja, saiba que foi um que deixa sua marca conosco. E pô, são só 3 aninhos, nada demais, tá perdoado! Pra ser sincero eu nem lembrava mais o que eu havia pedido especificamente... O que me deixa curioso pra saber no que eu estava pensando ao pedir isso...

    Eu estou um "comentador" preguiçoso ultimamente, então eu não devo entrar em detalhes como antigamente e devo me embananar todo para poder transmitir o que quero.

    Eu diria que esse support é sobre experiências, e da forma como elas variam entre indivíduos e da importância de se compartilhar elas, não só pelo outro, mas por você mesmo. Temos a Elice experimentando situações e sentimentos relativamente novos em sua vida, o Ralph que não teve essas experiências da forma tida como ordinária e a Clover que já experimentou uma vez e crê não ter novamente a chance de experimentar devido a idade, tese que cai por terra ao fim do texto, assim como também cai pela lógica, pois viver, em si, é experimentar, em menor ou maior dose.

    A escolha do tema para um support que se passa numa biblioteca me é convincente, afinal, é um espaço com muita experiência a ser encontrada, a ser trocada. Afinal, há livros e pessoas, não?

    Sinceramente eu não estou nos meus melhores tempos em termos de comentar. Mas saiba que eu gostei do que li, dos Trovões assustando o Ralph à Elice falando de álbuns de figurinhas e bancas ( aliás, amo bancas, sinto tristeza com o fechamento de muitas delas pelo país, mas é o tempo, né ), da Clover cozinhando até a surpresa dela ao ir para o hospital e ali ver sua antiga paixão.

    Como eu disse, posso ter, e com quase certeza o fiz, me embananado escrevendo o comentário e deixando o que eu quero dizer expresso de forma estranha. Mas eu gostei bastante, e é muito bom te ter de volta a ativa, mesmo que com garantia de apenas uns 5 meses se for mesmo um por semana.

    Valeu aí mano, um grande abraço, obrigado pelo support!

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  2. Ok I LOVVEEE this adorable setup here with these three getting to bond, and seeing Elice having the best possible teacher too? God this is so wholesome man you have no idea.

    AHAHAHAHAHAHAHAH OMFG THE PART WITH THE STRIPPERS KILLED ME. OMFG lad I burst out laughing out loud for real, no joke, that's some genius bit of humor there. OMG DOES ELICE LIKE RALPH??? OMG THAT'S SO ADORABLE OTP I SHIP.

    Wow I didn't see Miss Clovers' backstory coming, poor woman, she deserves nothing but hapiness, I'd kill to be her lover ahahaha. OMG SHE MET THEM AGAIN. GO CLOVER GO, YOU GET YOUR MAN.

    Amazing and charming work as always man, I'm always a sucker for stories like these!

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    1. Hey dude! Good to see you here in one more Support Conversation. I love that Slice of Life feels, when nothing really important happens. I think the characters have more time to talk and discover things from each other.

      STRIPPERS, WHERE? Oh, you meant stickers? What is the Google Translate showing you man? HAHAHAHAHA
      Of course Ralph and Elice are a pair! Not so strong like Ralph and Auria, but since the first book she starts developing something for him that lasts until de last book. I think they are adorable too! Even though they try to kill each other from time to time.

      Clover had a very sad backstory indeed. I hope people will like her when she shows up in Book 2. She's one of my favorites and truly deserves happiness!

      Maybe this will be our last Support in a while... I'm planning to keep posting some new info every week until the end of 2023, but after that, I don't know how things will turn. Anyways, I'm so fortuned to have someone like you reading my posts. Thanks once again!

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  3. Nothing beats that man, getting to see our beloved characters happy and hanging out, nothing beats that.

    AHAHAHAHAH, Oh I meant Elice talking about the place she went to with her brother once, and how Clover just cuts her off before finishing, that part killed me man, so damn funny.

    What kind of OTP would be complete without them trying to kill each other ahahahah? But man I did not see that coming though it is super cute.

    I ALREADY LOVE HER MAN, lucky guy, getting to reconnect with her! I'm rooting for you Clover, you go get your man!

    ALWAYS MAN, I'm so excited for book 2, you can't imagine how hyped I am!

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