quarta-feira, 30 de agosto de 2017

O Passado dos Personagens - Lesten (Parte 2)

Com o frio da região de Perpetua começando a intensificar, tornou-se impossível acompanhar os rastros pela estrada. Lesten estava na fronteira de Constantia com a província mais gélida do reino, infiltrando-se nas proximidades do antigo castelo onde os Três Soberanos travaram a Guerra das Espadas há mais de cinquenta anos. Suas consequências perduravam até os dias de hoje. Os arredores eram evitados desde então, diziam que uma magia negra tão poderosa assolou aquela terra que os fantasmas e espíritos de baixo eram vistos com maior frequência — uma área muitíssimo perigosa, de fato.
A caçada se prolongava mais do que deveria, mas tinha confiança de que logo encontraria seus homens e seu irmão. Quando a noite caiu, a temperatura despencou junto e Lesten viu em seu corpo a necessidade de fazer uma parada. Havia uma cabana abandonada na encosta da montanha, um bom lugar para recuperar as energias e descansar. Caso seus anfitriões se recusassem a recebê-lo, poderia usar seu cargo em nome do exército para fazê-los mudar de ideia, uma técnica que aprendera com outros oficiais que diziam nunca falhar.
Foi arrastando a neve no chão até conseguir bater a porta. Ninguém atendeu — estava aberta. Era um simples depósito com diversos caixotes e baús, provavelmente já havia sido saqueado há muito tempo. Reuniu toras e pedaços de madeira podre, precisava de lenha para aquecer-se, os geckos eram muito prejudicados por mudanças drásticas na temperatura. Vasculhou seu alforje em busca de uma pequena caixa dourada, retirando dali um simples selo, instrumentos que eram utilizados em todo o reino e tinham como objetivo oferecer uma pequena parcela de magia para quem não nascesse com aquele dom. O selo foi atirado na madeira e imediatamente acendeu as chamas, desta forma, garantindo um pouco do calor que precisava para seu sangue frio.
Lesten não queria adormecer, mas estava tão cansado que precisava descansar por algumas horas ou não iria suportar a caminhada no dia seguinte. Quando se deitou, sentiu o peso de uma viagem solitária, não tinha mais o irmão para acordá-lo nas emergências ou amigos que mantivessem a guarda noturna. Pelo menos ainda contava com seus instintos, só precisava manter os olhos na porta e os ouvidos atentos a qualquer ruído.
A lua não podia ser vista no céu nublado. Lesten roncava alto quando três criaturas moveram alguns dos caixotes e saíram de um alçapão debaixo da terra. O lagarto estava de costas para eles, monstros foram saindo um por um e começaram a cerca-lo à espera de alguma ordem. Lesten estivera à espreita, ele imediatamente saltou para longe a agarrou suas armas, golpeando um deles no tórax com a espada e acertando o pescoço de outro com sua lança.
As criaturas se movimentavam aturdidas, mas se quisessem matá-lo, já o teriam feito. Lesten derrubou quase uma dúzia deles até que fossem necessários cinco Anons para imobilizar seus braços e pernas. Quando um deles abriu a porta, viu-se um velho franzino coberto por um capuz enegrecido.  O homem caminhou até o gecko que se debatia ferozmente. Quando ele ergueu o braço em sua direção, Lesten quase arrancou sua mão fora com uma dentada só, os Sem Rosto tentavam controlá-lo desesperadamente. O velho pôs uma das mãos sobre o rosto do réptil que se debatia, mas não parecia querer feri-lo.
— Por que não me mata logo?
O velho lhe dirigiu um olhar abatido, retirou o capuz e revelou cabelos grisalhos penteados para trás acompanhados de rugas da idade.
— Por que eu haveria de querer ferir um possível aliado? Eu apenas vou precisar marcá-lo, não vai doer nadinha.
 A unha do indicador do velho era tão longa que mais parecia um bisturi. Ele fez um corte profundo no olho esquerdo de Lesten, que gritou de dor, despejando o sangue verde. Deveria estar infectada, pois começou a sentir tontura. Sem compreender o real propósito do velho, ele grunhiu entre os dentes:
— Não resista, criança. É o melhor que pode fazer por hora.
Lesten ajoelhou-se no chão, sua visão cada vez mais turva. O velho retirou uma das luvas brancas e, assim que tocou seu rosto, o corpo do lagarto foi tomado por uma dor latejante quase instantânea. Ele caiu sem oxigênio, gemendo e com dificuldades em manter a consciência.
O guerreiro fechou os olhos e apagou completamente, sem a certeza de que iria acordar.

i

Podia jurar que estava de frente a um espelho. Provavelmente nunca tinha olhado no rosto de seu irmão por tanto tempo para saber como eram parecidos.
— Não era para você ter vindo atrás de mim, seu idiota. Ainda mais sozinho — falou Wester em sua frente. Estava bem ferido, mas continuava inteiro. Usava um pano encharcado de vermelho para cobrir o machucado em seu olho esquerdo. Quando Lesten recobrou a consciência, a discussão já se instaurara:
— Idiota — murmurou enquanto recobrava a consciência. — Idiota... tu que é o idiota. Eu falei para não sair... eu falei para não tentar bancar... o herói.
Assim que se deu conta, ali estavam seus homens desaparecidos, todos trancados em uma cela no subsolo, mas nunca antes vira uma obra tão bem planejada, era como se já estivesse sendo construída há décadas, longe dos olhos vigilantes dos batedores da superfície.
Lesten levou a mão até a cabeça e percebeu que sua mão estava suja de sangue ressecado.
— Vai ficar uma cicatriz feia — Wester falou. — Pelo menos, acho que agora serei o mais bonito.
— O que  aconteceu aqui, cara? Quem era aquele velhote? Ele me apagou como se estivesse me controlando por dentro.
— E estava. Acreditamos que ele seja um tótines, pois detém uma magia de envenenamento, basta tocar uma ferida para que ele tenha total controle sobre nosso corpo. Muitos curandeiros utilizam tais poderes com propósitos medicinais, mas esse homem a usa de forma perigosa — explicou Wester. — Fomos capturados e levados até essa cela, mas alguns não resistiram.
Lesten ainda respirava com dificuldade, sentia que só agora seu corpo começava a se recuperar dos efeitos do veneno. Antes que compartilhasse mais alguma informação com seus colegas, o sacerdote negro desceu as escadas de ferro acompanhado de dois monstros truculentos com a boca costurada para que não falassem mais do que deviam. Os geckos continuaram sentados, mas Lesten e seu irmão levantaram para confrontá-lo.
— Por que nos mantém cativos aqui? — indagou Wester.
— Um inimigo sempre deve ser tratado com sinceridade, para que então possam vir a servir a sua causa.
O velho olhou para cada um dos lagartos que continuavam vivos e respirando. Sobraram apenas sete deles, incluindo os Irmãos do Vento. Os demais morreram na batalha ou não suportaram seus ferimentos.
— Dizem que os geckos, quando conquistados pelo coração, são as criaturas mais fiéis desse mundo. Um humano pode vir a traí-lo por ganância ou poder, mas o gecko será eternamente entregue à justiça de seus atos. Para ser bem sincero, eu nunca acreditei que pudesse corromper algum soldado inimigo, mas me surpreendi com os resultados e fiz boas amizades.
— Eu já disse que nós jamais trairíamos nosso povo — Wester rugiu. — Eu não sei a quem você serve, mas saiba que não adianta mais se esconder em buracos, pois nós o encontraremos e iremos derrota-lo.
— Não sou apenas um simples mensageiro — ele falou. — Meu nome é Dumag e sou um dos Filhos da Peste. Vocês já devem ter ouvido falar de meu mestre, é incrível como a fama de um fantasma precedeu até os maiores vilões da história. Ainda é cedo para que ele se revele, mas estamos aqui, contaminando tanto corajosos quanto inocentes, proliferando-se como uma doença.
— A Peste Negra — Wester sibilou entre os dentes.
Não eram boatos. Em algum lugar daquelas montanhas frias existia mesmo um fantasma que realizava pequenas investidas às cidades próximas para enfraquecer a capital, quem sabe até estuda-la. Ele planejava um golpe poderoso e, quando atacasse, seu abalo seria sentido em todas as capitais de Sellure.
— Vocês sabem exatamente contra quem lutaram nos últimos anos? Ou estão apenas cumprindo as obrigações de um rei caduco e seu conselho idiota? Parem de lutar por um homem enfraquecido, de tentar proteger velhos farsantes sentados em seus tronos de ouro enquanto os pobres soldados lutam pelo bem da nação. Meu mestre lhes oferece a redenção, uma segunda chance — Dumag lhes esticou uma das mãos. — Basta aceitarem nossa clemência.
Lesten olhou para seus homens, como se esperasse uma resposta por parte deles.
— Se nós aceitarmos lutar pela Peste Negra, você garante que teremos passagem segura para fora daqui?
Dumag sorriu de maneira assustadora no escuro.
— Seguros? Vocês serão como nossos irmãos.
— Lesten, não pense em fazer isso, seu... traidor! — gritou Wester.
Um dos monstros sem face abriu a porta da jaula. Mesmo sem nenhuma arma disponível, geckos ainda eram perigosos por natureza. Usando o breve momento de descuido de seu inimigo, Lesten mordeu o ombro de um enquanto seu irmão captou a mensagem e avançou direto rasgando o pescoço de outro. Dumag afastou-se receoso quando dois soldados geckos iam em sua direção. Ele tropeçou e foi direto ao chão, mas quando os répteis preparam-se para ataca-lo o velho arrancou suas luvas rapidamente e tocou nas feridas no peito dos lagartos. Os dois tremeram e caíram no chão em questão de segundos, começando a cuspir sangue e afogando-se em uma poça esverdeada que os matou por dentro.
Agora restavam apenas cinco membros de seu pelotão, eles formaram um círculo enquanto Dumag se levantava, olhando para eles sem um pingo de compaixão. Dezenas de monstros reforçaram sua defesa, espremendo-se na cena apertada. Lesten e Wester estavam com os ombros encostados, preparados para a morte iminente.
— Quem foi mais idiota: eu que comecei essa baderna, ou você que me acompanhou?
— Sei lá, é tanta idiotice que fica difícil decidir.
— Foi mal, irmão. Você sabe que eu sempre quis sair da sua sombra — Wester admitiu. — Pela primeira vez na vida, eu queria ser digno da minha medalha de ouro.
— Ô, sua anta, se quisesse tanto uma eu te dava! Todas elas, a parede inteira, medalha nenhuma valeria mais do que ti!
— Mas é como você mesmo disse... se não for merecido, não tem valor.
— Não esquenta, capitão — disse-lhe um de seus companheiros. — Mesmo que nossos nomes não sejam lembrados ou que esse momento final seja esquecido pela história, vamos garantir que os espíritos no mundo de baixo comemorem nossa ousadia!
Os três soldados na retaguarda avançaram, atacando os monstros Sem Face que hesitavam em avançar. Eles foram capazes de derrubar sete criaturas até serem golpeados no peito por armas bifurcadas, estavam sem armadura ou proteção alguma, a morte foi instantânea.
Lesten viu cada um de seus amigos caírem ao seu redor até que só sobrou apenas ele e seu irmão.
— Tudo que lhes pedi foi um pouco de confiança — sibilou Dumag com um sorriso franco.
— Vá à merda com sua misericórdia!
— Ah, são tempos difíceis... — lamentou o velho.
Os Irmãos do Vento atacaram em conjunto, matando os monstros na dianteira que caíram diante de seus pés sem demonstrar reação. Eram espantalhos, fantoches e marionetes; podiam ser substituídos com a mesma facilidade que se descarta um brinquedo indesejado.
Não importava quantos deles pudessem derrotar, era preciso cortar a cabeça da serpente.
Mesmo sem armas, Wester tentou arrancar o pescoço de Dumag uma última vez, mas o velho segurou seu rosto e ele sentiu sua energia se esvair. Se suas suspeitas estivessem certas, então Dumag precisava tocar alguma ferida para conseguir inserir seu veneno dentro de alguém. Lesten agiu depressa e a abocanhou, girando para o lado e arrancando-a fora. Dumag gritou e caiu ajoelhado, seu próprio sangue jorrando para fora do membro decepado. Num último gesto de pânico, ele ordenou que todos os monstros batessem em retirada.
— Amaldiçoados sejam! A Peste Negra vai voltar! — gritou Dumag antes de subir as escadarias correndo na companhia de seus fantoches que o seguiam com obediência.
Lesten ajoelhou-se ao lado do seu irmão e o segurou em seus braços. Wester parecia bem por fora, mas era como se algo o afetasse por dentro, uma hemorragia interna que matava lentamente e ninguém poderia fazer nada para curá-lo.
— Que merda, cara, que merda! Olha só pra tu — lamentou o lagarto, aninhando-o contra seu peito e sentindo que sua pele começava a ficar cada vez mais gélida.
— Tá tudo bem, cara... — Wester murmurou com a voz tranquila. — Tá tudo bem.
— Como tu pôde ser tão idiota? Eu falei pra não sair, eu falei pra não tentar bancar o herói!
— Não sei como você sempre consegue ser tão ousado em suas decisões... olha só... na primeira vez em que arrisquei, coloquei a vida de todo mundo em risco, inclusive a sua.
— Pare de dizer bobagens... eu vou tirar todo mundo daqui — Lesten dizia a si próprio, vendo os corpos de seus amigos já sem vida ao seu redor.
— Ei, irmão — disse Wester daquela maneira que lhe passava tanto conforto, sua voz quase desaparecendo no som abafado da cela. — Desculpa por nunca ter dito isso num momento mais apropriado, mas eu te amo, cara.
— Vou tirar a gente daqui... vou salvar todo mundo... vamos ser heróis, nós dois vamos ser heróis.
Wester concordou, mesmo que soubesse que ele nunca seria.
— Obrigado por cuidar de mim... até o fim.

ii

Lesten descobriu que todos os humanos que desapareceram ou terminaram mortos foram capturados ou passaram para o lado do inimigo, sofrendo assim uma lavagem cerebral contra o reino de modo que sentissem orgulho em lutar pelo inimigo. Ao menos a mensagem fora entregue: a Peste Negra era real.
A temperatura caíra de maneira brusca, como se a própria natureza anunciasse a chegada de dias ruins. Naquele dia, Lesten aprendeu que a guerra mostra um caminho para a segurança, às vezes cria uma possibilidade de que exista a chance de se escapar da morte; e somente então, ela ataca — arranca todos que lhe são importantes, tudo que um dia já lutou para conquistar.
Demorou quase uma semana para voltar para casa. Preparou sozinho o enterro do irmão e dos compatriotas. A essa altura, a notícia de que a Peste Negra voltou alcançou a fortaleza e o Conselho entrou em estado de alerta.
Lesten não foi recebido com comemorações ou medalhas. Seus superiores vieram com acusações de incapacidade. Teve de entrar no portão sul que era mais próximo, mas os olhos dos humanos sobre ele o perfuravam como mil navalhas. Naquele dia todas as raças se misturaram para ver o sobrevivente, o capitão que não conseguiu salvar seus soldados, o irmão que falhou em proteger sua família.
 Pyke, o mais novo chefe da Guarda Real, o recebeu envolvendo-o com uma capa para protege-lo do frio. e Não achava justo que ele sofresse tantas acusações.
— Venha, você já passou por muito nos últimos dias.
Lesten negou com a cabeça, só precisava descansar um pouco e logo retomaria seus treinos. Os dois se dirigiam aos dormitórios quando um dos membros do Conselho da Matiz o impediu na altura da ponte transitória — Temmerius, o mais alto e respeitado representante. Ele vinha seguido por dezenas de soldados da Guarda Real, ver Pyke deixar sua posição para consolar um amigo lhe parecera um ultraje.
— Deixe-o! — ordenou Temmerius. — Ele vai se recuperar e aprender a não agir contra as ordens do reino. Quando estiver melhor, será devidamente punido por suas atitudes.
— Ele precisa de ajuda psicológica — respondeu Pyke. — Ele precisa do apoio de sua raça mais do que tudo nessa hora.
— Quem lhe deu a permissão de me contestar? — indagou Temmerius. — Sair em uma busca atrás de um caso perdido? Não era do interesse de vocês, agora a Peste Negra despertou e sua ira cairá sobre nós!  — O velho olhava para o lagarto moribundo que mal conseguia se mover. — Você é o responsável pelas vidas perdidas. Iremos retirar suas medalhas e revogar seus títulos, porque foi incapaz de cumprir com sua palavra ou demonstrar autoridade. Terrível, uma falha tremenda, um...
Lesten levantou-se, caminhou contra o homem que não parava de tagarelar e acertou-o na cara, fazendo o velho cair do outro lado.
Tudo foi tão rápido que nem mesmo os guardas souberam como reagir, ninguém ousava levantar um dedo sequer contra um membro do Conselho da Matiz, eles eram intocáveis, praticamente deuses entre homens. Por uma única atitude tola, Lesten não era mais o herói do povo.
— Ninguém manda em mim, seu velho de merda.
Temmerius explodiu em ultrajes e difamações. Lesten já sabia o que o aguardava.
— E-excomungado! Você está oficialmente expulso da Fortaleza da Pedra Azul, pelo resto de sua vida! Não tem permissão de pisar nessas terras nem sob o consentimento do rei, nem de seu pai! Você é uma vergonha para todos os geckos de Sellure, Lesten, maldito seja!
Lesten voltou para seu quarto e um estranho vazio tomou conta dele. Guardou a lança e a espada juntas, sabendo que elas estariam exatamente onde as deixou. Olhou o quadro de medalhas na parede e respirou fundo, depois socou o vidro com força que se despedaçou em milhões de pedaços. Suas mãos sangravam conforme ele quebrava sua própria imagem, agarrava as placas redondas sem valor e as atirava longe pela janela; derrubou a moldura inteira no chão e depois chutou, mordeu e gritou, como se fosse um animal selvagem. Destruiu colchões e sofás, tudo que demorara anos para conseguir, quebrou o armário e sua pequena caixa de tesouros caiu revirada no concreto. Quando reunia seus pertences, encontrou ali sua primeira medalha de tampinha de garrafa. Ela era a única que ainda valia a pena guardar.
Decidiu que levaria a caixa consigo e reuniu mantimentos para uma longa viagem. Quando estava para sair, Pyke o aguardava na saída.
— Está aqui para me escoltar para fora da fortaleza? Não se preocupe, chefe, eu sei onde fica a saída.
Pyke respirou fundo, observando seu hálito quente formar-se no ar.
— A armadura tem que ficar.
Lesten olhou para ele, àquela altura não havia mais raiva para expelir. Lesten tirou toda a sua roupa até ficar praticamente pelado, estava para entregar as armas também, mas pelo menos isso Pyke permitiu que ele ficasse, pois precisaria se proteger no longo caminho que o aguardava.
O gecko ajeitou seus pertences nas costas e preparou-se para seguir quando ouviu:
— Não foi culpa sua — disse o chefe da guarda real.
— É. Não foi. — O lagarto olhou para as luzes da cidade que um dia já foi seu lar. — Mas você acha justo jogar a culpa em alguém que já está morto?
— A culpa também não foi do seu irmão — Pyke emendou. — É a guerra. É esse lugar. Não se pode ter um vislumbre de felicidade que alguém sempre tenta arrancar isso de nós.
— Eu meio que já me acostumei, cara. Sério, não precisa se importar comigo. Obrigado por me treinar e ensinar tudo que sei, mas agora acabou. Não sei nem como alguém como eu pôde chegar tão longe.
— Aonde pretende ir?
— Para junto do meu irmão, talvez.
Pyke o agarrou pelos ombros, deixando de lado toda sua compostura como chefe da guarda e agindo como um amigo que realmente se importava.
— Não ouse tirar sua própria vida, está me ouvindo? Medalhas podem ser reconquistadas, posições e respeito também, mas a sua vida é única. Não tente, e isso é uma ordem, minha última ordem — falou Pyke. — Vá para a Ilha dos Geckos, a maior cidade de nossa espécie na região de Century. Você será bem recebido, tente recomeçar, mas não vá se meter em confusões. Sua vida pode ter acabado como soldado, embora a alma de um guerreiro jamais saia de você. Viva em memória de seu irmão e pelas pessoas que, como eu, ainda lutam por um mundo melhor.
Pyke estufou o peito e elevou o nariz alongado, unindo as duas pernas e batendo continência para ele. Lesten fez o mesmo.
— Quando a guerra terminar, chefe, espero que possamos sair e tomar todas na melhor taverna da cidade até de madrugada — Lesten tentava sorrir, escondendo suas tristezas. — Nós vamos contar piadas e histórias de superação, depois vamos rir e chorar de cada um desses acontecimentos.
— Tempos melhores ainda estão por vir, meu amigo, tente acreditar.
Quando Lesten saiu pelos portões já era madrugada, o silêncio reinava, não havia ninguém por perto para dizer que sentiria sua falta. Olhou uma última vez para a fortaleza e viu tudo que conhecia ficando para trás.
Atirou no rio sua caixa de medalhas inteira, pois nenhum ouro ou prata lhe trazia mais conforto. No fundo de sua caixa de pertences restou apenas uma  a medalha feita de tampinha de garrafa. Colocou-a no peito como se fosse a maior e mais preciosa conquista de sua vida, e saiu de lá marchando, embora não soubesse aonde o destino iria leva-lo. Só precisava continuar com um belo sorriso estampado no rosto para ocultar as dores de seu passado, assim, ninguém desconfiaria.
A fita vermelha em sua lança dançava no vento.

segunda-feira, 14 de agosto de 2017

Aika - A Canção dos Cinco [Resenha]

"Gattai é um mundo fantástico assolado por estranhas catástrofes naturais e uma interminável guerra entre as raças que o habitam. Em meio ao caos, surge um guerreiro com asas de Fênix destinado a trazer o equilíbrio entre a natureza e suas criaturas. Porém, ele foi amaldiçoado por um terrível demônio que devora sua alma. A única pessoa que pode salvá-lo não pertence à Gattai, e sim ao nosso mundo: Aika Akatsuki dos Anjos, uma estudante japonesa mestiça, nascida no Brasil e grande fã de histórias de magia e fantasia.

A jovem que enfrenta diariamente a dura rotina de estudos e discriminação por sua ascendência vê sua vida transformada com a descoberta da existência de Gattai e de seu grande ídolo. E para salvá-lo, ela terá que enfrentar seus medos, atravessar um portal mágico, lutar contra terríveis criaturas… tudo isso sem ser reprovada no ensino médio. Aika voará em dragões, aprenderá o que é realmente uma guerra e lutará para salvar o herói não apenas de grandes inimigos, mas de si mesmo."

Autor(a): Lúcia Lemos
Idioma: Livro Nacional - Português
Lançamento: 1º edição, Setembro de 2017
Altura e largura: 23 x 15,5 cm
Número de páginas: 368
Publicação Independente

Por que escolhi essa obra?

Antes de mais nada, peço desculpas a quem prefere uma resenha mais direta. Há muitas postagens ótimas que conseguem captar e resumir a essência desse livro, mas quem me conhece sabe que acabo me prologando — às vezes demais da conta , mas sinto que é o mínimo que eu poderia fazer pela autora que se dedicou tanto nessa obra.

Quem é autor nacional sabe das dificuldades que encontramos para colocar nossos livros nas estantes de uma livraria. As chances de alguém estar passeando por aí e simplesmente querer levar uma obra nacional sua ao invés daquele best-seller maneiro que todos os amiguinhos da escola estão falando são... quase nulas. Por isso, o autor é o maior responsável por sua divulgação, e uma das ferramentas mais poderosas que temos hoje em dia é a internet, seja através do facebook, instagram ou youtube.

Faço parte de um grupo chamado Sociedade Secreta dos Escritores Vivos no facebook que vem crescendo consideravelmente. Acabei esbarrando em Aika, mas eu dificilmente saberia de sua existência se a autora Lúcia Lemos não tivesse divulgado seu trabalho. Às vezes temos a impressão de que não adianta nada fazer aquele post que quase ninguém vai curtir, mas nós nunca sabemos quem pode estar olhando, vai saber não era exatamente o que um leitor de fantasia estava procurando?

Quando vai ser publicado? Onde posso comprar?

O livro será publicado na Bienal do Rio de 2017, que vai acontecer em Setembro, mas a autora abriu a pré-venda de algumas unidades e ofereceu também pelo Mercado Livre. Como minha lista de leituras esse ano está meio decepcionante, tratei logo de encaixá-lo no topo.

O valor total foi de 35 reais, 25 do preço de capa e 10 de frete, ou seja. Devo dizer que para um livro com esse tamanho e qualidade o valor foi excelente, a maioria fica em torno de 50 reais se contarmos o frete. Eu recebi o meu autografado e com uma pequena dedicatória, devorei o livro na mesma semana que o recebi!

Capa, Design e Editoração

Lúcia Lemos dá uma verdadeira aula de como produzir um livro para muitas editoras, sejam elas pequenas, médias ou até as grandes. Juro que já comprei obras nacionais onde a sinopse estava ilegível, com capas feitas através de fotomontagem no nível do "filho do vizinho que mexe no Photoshop". O trabalho da autora não terminou quando ela acabou de escrever, Lúcia ainda ilustrou a capa, fez o projeto gráfico e trouxe mais de quinze páginas ilustradas.

Já emendando o assunto sobre a capa, repare no cuidado com as cores  o roxo traz a ideia do abstrato, uma ideia muito presente no livro; causa o efeito de calma e sensatez no cérebro. Já o laranja dá ideia de mudança, expansão e dinamismo. Não precisou centralizar o herói, não precisou colocar uma mulher de vestido bonito e nem fazer a capa parecer um daqueles filmes medievais de baixo orçamento. É clean, atraente e agradável aos olhos.

Logo nas primeiras páginas temos um mapa, mais uma cortesia da autora. E quem não gosta de folhear um livro novo, ainda envolvido em plástico? Pedi o meu pelos correios e folheei a obra inteira de cara, mas as ilustrações não denunciaram o roteiro ou estragaram alguma surpresa, pelo contrário, elas incentivam o leitor e despertam o interesse dos mais curiosos a chegarem o quanto antes naquela cena.

Vamos falar um pouco sobre a fonte agora. Retirei um pequeno traje da página da autora no behance:

Utilizei a fonte "Fontin" para os títulos, devido aos seus terminais semelhantes aos caracteres asiáticos e a fonte "Crimson" para o texto. A Crimson tem uma ótima leitura e grande altura x, podendo ser usada com o corpo menor, a fim de diminuir o número de páginas e baratear o custo do livro. Ambas as fontes são gratuitas para uso comercial."  Lúcia Lemos.
Em design gráfico, temos aulas de tipologia e aprendemos sobre letras e caracteres, serifas, onde devem ser usadas e como foram feitas. Cada fonte deve ser usada em ocasiões específicas. Um exemplo é que a maioria opta pelo Times New Roman, mas não sabe que essa fonte é adequada para leitura rápida em impressos e espaços compactos como uma coluna de jornal, visto que a fonte surgiu em 1931 para uso no jornal Times. Mais um exemplo de que a autora sabia bem o que estava fazendo.

Processo de construção da capa do livro. Link original para o perfil da autora: https://www.behance.net/LuciaLemos

Trabalhar com narrativa visual é uma ótima forma de atrair leitores, mas também ousada. Há quem não goste do estilo de mangá, mas Lúcia nos apresenta o universo de Gattai e seus personagens com tanto carinho que é impossível não nos apegarmos a eles do jeitinho que a autora os imaginou.


Sobre a Obra e a Autora

Aika - A Canção dos Cinco é o primeiro livro de uma história que começou no Wattpad. A autora recebeu um ótimo feedback do público e investiu nesse sonho, na data em que essa resenha foi publicada Aika já contava com mais de 70 mil acessos. Apesar de estar disponível online, muitos leitores se interessaram na compra do livro físico, afinal, quem não se apaixona por aquele cheiro de papel e livro novo?

Desde o momento em que conheci Aika eu senti que seria algo no estilo que eu gosto. Há tempos eu procurava uma fantasia que não se prendesse em uma mitologia complexa, que não usasse nomes retirados direto do "gerador de nomes fantásticos" e que não fizesse uso de raças que já conhecemos bem.

Eu queria mergulhar de cabeça em um universo novo, há tempos eu não ficava tão curioso para saber mais de um, mas Gattai me conquistou. É como ouvir todos seus amigos falarem daquele anime novo que só você não assistiu.

A premissa é, no mínimo, interessante para qualquer fã de mangás, HQs e literatura fantástica — "Se seu herói e o mundo dele existissem, se tal mundo estivesse correndo um grande perigo, você lutaria com ele e por ele? Você lutaria para salvá-lo?"



Certa vez, li em uma postagem que um bom mangá shonen precisa:

1. Um Mundo em que o leitor possa entrar facilmente;
2. Uma razão clara e aceitável pela qual o personagem principal luta;
3. Uma batalha e ataques legais que sejam fáceis de se compreender o que está acontecendo;
4. Um inimigo tão carismático ou ainda mais carismático que o protagonista;
5. Se possível, é bom que tenha uma heroína bonita;
6. Cenas engraçadas e outras dramáticas.

A autora nos apresenta cada um desses elementos na medida certa. No começo, somos apresentados à rotina de Aika Akatsuki dos Anjos e sua vida no Japão. Ela é natural do Rio de Janeiro e sabemos como os japoneses não enxergam os "gaijin" com bons olhos. Estudei a vida toda em uma escola com 80% de japoneses, e eles se fecham em pequenos grupos. A ideia de formar grupos é natural do ser humano desde o tempo das cavernas, mas vemos que para uma garota morena que tenta a sorte na terra do sol nascente isso pode ser um verdadeiro desafio. Aika chega a sofrer bullying por sua cor de pele, por um instante achei que houve até certo exagero, mas trata-se de uma etapa importante para formar a personalidade da personagem e seu laço com o mundo real e o fictício. Há poucos fios que a prendem à realidade da terra — se Aika tivesse a oportunidade, ela com certeza viveria no mundo de seus mangás e animes e esqueceria todo o resto.

Sou descendente de japoneses e também curto muito mangás e animes. Essas histórias nos permitem mergulhar num mundo fictício, existe uma progressão da jornada que é a maior responsável por nos fazer apegar-se tanto a eles. Muitos mangás duraram mais de 10 anos  alguns como One Piece ainda estão em andamento —, então não é de se impressionar que uma geração inteira tenha crescido com eles, essa histórias surpreenderam leitores no mundo todo a cada capítulo. A autora criou um mangá tão bem construído dentro de seu próprio universo que é como se ele também existisse na vida real.

Existem muitas notas de rodapé para explicar a origem de palavras da cultura japonesa, cada detalhe é bem explorado de forma que não pareça que a autora simplesmente escolheu o Japão por gostar dele sem conhecer nada do país. É preciso muito estudo para nos aprofundarmos nos assuntos que não conhecemos, de modo a tornar a experiência mais imersiva.

A história se aprofunda conforme a aventura avança. Aika encontra uma forma de viajar para Gattai, o mesmo mundo que seu herói, e ela se conecta a ele de tal forma que sua vida nunca mais será a mesma. No começo, sentimos o mesmo que a protagonista e é difícil absorver tanta informação, mas Aika serve como ponte entre os dois mundos  autor e leitor.

Por vezes achei engraçado que narrativa é carregada de indignação em certos momentos, são claras as alfinetas ao mercado de mangás no Japão e à grandes produções que exageram no fanservice, colocando as mulheres como objetos. Há também a ideia de uma "origem pura", como o fato da protagonista ser mestiça e vista com maus olhos pela maioria da população japonesa, o que passa uma mensagem de luta contra esse preconceito tanto em Gattai quanto na terra.

A espiritualidade é outro fator muito forte no livro. Quando falamos de mortos e espíritos, trata-se de uma crença comum na cultura japonesa, tal ideia foi demonstrada de maneira notável, a autora explorou o que pode ser compreendido como a religião de Gattai. Deuses, espiritualidade, visões e vida pós a morte fazem parte da fantasia do livro, explorada com muito cuidado em cada palavra de forma comovente e concedível.

Eu diria que a autora é autêntica, ela faz as coisas do seu jeito. Há quem critique alguns detalhes, eu particularmente não sou fã de "PUF! BOOOOM! WAAAAAAH!", mas no contexto dessa obra funcionou, porque é como se fosse um mangá carregado de onomatopeias exageradas. Quanto à revisão, percebi alguns erros de digitação que poderiam facilmente ser consertados numa futura revisão. Vi também muita gente reclamar do uso excessivo de exclamações como alguns leitores citaram, mas, falando sério, nenhum desses problemas afetam em nada a qualidade geral da obra.

Sobre os Personagens
Os protagonistas de Aika - Imagem original no Devianart da autora:
http://lucialemos.deviantart.com/art/Aika-special-647580782
Essa parte com certeza merece um tópico separado! Os personagens de Aika são, sem sombra de dúvidas, um dos pontos mais altos do livro.

Começaremos por Aika, uma protagonista extremamente bem construída que segue evoluindo por todo o livro, cada sentimento seu mexe com o nosso. Ela é muito bem trabalhada desde a primeira página, conhece tudo sobre o mundo de Gattai ao mesmo tempo que precisa "reconhecê-lo", só que dessa vez como parte dele. É muito importante que um livro de aventura tenha um personagem que evolui conforme a história avança, muda de alguma forma. Eles podem se tornar melhores, mais fortes ou piores, por isso é tão interessante tê-la no comando.

Por serem personagens de um mangá popular, é como se todos eles já fossem figurinhas já conhecidas do leitor. Apesar da dupla principal ser formada por Aika e Kurikara, temos o suficiente de Riko e Iruka para nos apegarmos. 


Riko é linda, o tipo de mulher forte que adoro nas histórias. Ela lembra muito a Auria, uma das personagens aqui do Reino de Sellure, pois carrega a determinação para liderar e batalhar por um mundo melhor. Ela é forte e decidida. Uma cena que gostei muito é quando Kurikara diz ver uma imagem ecchi dela no mangá numa cena de banho. Como será que um personagem reagiria se soubessem que são tão sexualizados? Ficariam bravos, envergonhados? Detalhes pequenos como esse fazem toda a diferença no ritmo da história livro, é como um momento de descontração.

Por sinal, as cenas em que eles simplesmente voltavam para a terra para falar sobre o mangá foram ótimas, eu particularmente adoro esses momentos tranquilos mais do que sequências de batalhas e fico feliz que a autora tenha utilizado essas cenas que funcionaram como transição para o próximo arco que se iniciava. Enquanto Aika defendia o mundo de Gattai, ela também precisava tirar um tempo para estudar para a próxima prova de matemática *risos*

Você é um espírito que busca a paz, movido por ideais de amor e compreensão. Movido pela paixão dos que lhe são caros, mas ferido por tantas perdas. Mesmo assim, você persiste na sua fé, lutando pelo mundo que ainda o nega. — p. 303
Outra coisa que eu adorei na história  não existe um casalzinho formado. Aika pode ser apaixonada por Kurikara, afinal, ele é o herói do seu mangás predileto mas isso não significa que ela fará tudo para derrubar qualquer outra que tentasse chegar perto dele para tê-lo só para si. Kurikara também teve duas ou três cenas com Riko, e mesmo que o livro não nos mostre seu passado, eles compartilham de um carinho enorme. Riko também pode ter um "shipping" com Iruka, aquele clássico estilo do cara brincalhão e a garota severa. São tantas opções que a autora não precisa jogar na sua cara: "Oh, o romance é entre esses dois e ponto final." Eles se comunicam com naturalidade, todos se respeitam (dentro do possível, claro, até porque Iruka é um mestre fazer piadas fora de hora e provocar seus amigos com piadas sobre seios. Isso não poderia faltar num mangá, certo? *risos*).

Os vilões que conhecemos no primeiro livro foram bem construídos, eu adorei o bestiário nas últimas páginas e a maneira como Yami-no-Yaku continua sendo uma sombra, um mistério insondável. É incrível a maneira como somos apresentados aos "generais" do inimigo e fico feliz que eles ainda possam voltar a dar as caras no futuro. Algumas contas ainda precisam ser acertadas.

E o que dizer sobre a cena final? A imagem ao lado foi um dos momentos mais emocionantes que compartilhei com essa obra, digna de um final de temporada. Sou sensível a abraços entre amigos e foi um verdadeiro deleite poder contar com uma ilustração para extrapolar de vez os sentimentos. M
eus parabéns à autora pelo trabalho, você colocou seu coração nessa cena!

O universo de Gattai é enorme, promissor. Como num mangá, nos resta esperar que a autora continue se dedicando a obra e que possamos chegar ao desfecho da jornada desses protagonistas tão carismáticos. Você pode acessar o blog da autora, que inclusive um de nossos parceiros. Segue o link:



Considerações Finais

Aika é uma das obras nacionais de fantasia mais incríveis que já tive o prazer de conhecer — e por completo acaso. Esse livro representa a história de uma garota que teve um sonho de infância e lutou para torná-lo real. Com Aika você ri, se diverte, sente raiva, ainda recebe uma pequena aula sobre a cultura nipônica e se diverte com o universo às vezes tão excêntrico dos fãs de mangá.

Me emocionei como há tempos não acontecia, um único livro conseguiu causar uma enxurrada de emoções. A qualidade da obra é surpreendente, mérito da própria autora em publicar um livro independente num país onde tudo relacionado à cultura é mais difícil. O conjunto como um todo, desde a capa,  ilustrações, a escolha das fontes e diagramação é sem sombra de dúvidas um dos melhores trabalhos gráficos que já vi numa publicação independente e deixa muita obra famosa no chinelo.

Aika me faz lembrar porque sou fã de mangás, porque me encanto com os personagens, com cenas de batalha explosivas e sentimentos extrapolados. Como já cheguei a mencionar, não há ninguém melhor no mundo para fazer a divulgação de sua obra do que o próprio autor. 

"O verdadeiro amor não prende. O verdadeiro amor liberta."



quarta-feira, 9 de agosto de 2017

O Passado dos Personagens - Lesten (Parte 1)


Seus dedos coçavam e os pés começavam a formigar. Suportar o peso todo daquela armadura não seria problema, mas a ansiedade em ter seu nome chamado a qualquer momento era difícil de aguentar, independente de quantas vezes já estivesse estado ali.
Cinco longas fileiras de soldados se organizavam eretos e com disciplina diante do palco principal do Palácio Central. Lagartos bípedes brandiam espadas, lanças e machados; seus elmos eram perfeitamente desenhados para cobrir o nariz alongado e deixar uma pequena fresta para que os olhos ficassem expostos como dois faróis. Batiam suas armas e equipamentos no chão com euforia, tinham uma forma diferente dos humanos para comemorar suas conquistas, pois aquele era um dia de vitória para os geckos. Lesten tinha motivo de sobra para comemorar mais do que qualquer outro — era uma conquista exclusivamente sua.
O barulho era tremendo e o brado de seus colegas do exército ecoava como um grito de guerra. O silêncio reinou instantâneo quando dois lagartos velhos subiram ao palco, ambos trajados com mantas finas que se estendiam até o chão, sendo seguidos por um porta-bandeira que carregava o símbolo da Fortaleza da Pedra Azul. Após um início de cerimônia chato e maçante, foram feitos anúncios e agradecimentos em nome de todos ali presentes. Finalmente chegou o momento das honrarias. O primeiro deles foi para um gecko muito alto e encorpado com escamas azuladas, seu nome era Pyke. Aplausos foram ouvidos diante de sua entrada, seu cargo já era notavelmente superior ao dos demais e agora ele acabava de ser nomeado chefe da Guarda Real. Recebeu das mãos de seus superiores um elmo com asas na ponta, característica marcante do cargo junto da longa capa azulada com estrelas de prata. Bastava ver uma de longe para saber que ali estava um guerreiro em grande posição de respeito.
Lesten sentiu um dedo cutuca-lo na fileira de trás.
— O próximo é você, irmão.
O lagarto confirmou com a cabeça e respirou fundo.
— E agora, gostaríamos de convidar o soldado Lesten para que venha receber uma medalha por sua bravura e perícia na batalha pela defesa da cidade de Ribravos, estrategicamente posicionada ao leito do rio, colaborando assim para a proteção de nossas mais importantes torres de vigilância.
O estardalhaço foi tamanho que os oficiais tiveram de pedir que os soldados se comportassem, mas era difícil de segurar. Lesten era conhecido e adorado por todos os seus colegas, estava sempre presente nas confraternizações e era o primeiro na linha de frente a avançar e enfrentar o inimigo. Wester não tinha nem de perto a mesma fama, mas era a mente por trás de ótimos planos e estratégias, sua habilidade com uma espada o tornava uma ameaça a ser considerada. Não havia um gecko sequer que não conhecesse os Irmãos do Vento, onde espada e lança se encontravam.
O lagarto estufou o peito, empinou o nariz e foi seguindo pelo corredor que lhe fora aberto. Ainda podia ouvir seu irmão batendo palmas logo capatrás. No caminho, recebia congratulações e tapas fortes na ombreira, répteis por toda a parte comemoravam sua vitória. Estava dando um grande passo em sua carreira.
— Meus parabéns, meu bom amigo — disse-lhe Pyke.
— Obrigado, capitão! — Lesten respondeu convicto, em seguida, murmurou baixinho perto de seu superior: — Só espero que você ainda possa participar de nossas confraternizações, seu lugar na taverna estará sempre reservado.
Terminada a cerimônia, Lesten voltou para o meio da multidão. O palco de apresentações localizava-se na área central da fortaleza onde todos se misturavam. Os geckos treinavam no leste, os humanos no sul, tótines a oeste e monstros no norte. Cada raça limitava-se à zona que lhe fora delimitada, pois nem toda criatura daquele reino gostava de misturar-se. Logo começaria uma cerimônia para os humanos, e aquilo de pouco lhe importava.
Wester o aguardava de braços cruzados, sentado embaixo do arco de pedra na transição entre as cidades. Ele e seu irmão eram muito parecidos, quando inventavam de misturar suas técnicas e armaduras ficava difícil de diferenciá-los no meio de uma luta, era como se fossem um só. Naquele dia, Wester usava uma armadura leve e móvel, além da fita vermelha presa ao braço direito, uma de suas maiores características.
— Bela medalha — falou o mais novo, apontando para o objeto dourado no peitoral da armadura de Lesten.
— Mais uma para a coleção. Já posso encomendar uma estante nova — divertiu-se o lagarto. — Mas, cara, entre nós agora... Tu não achou sacanagem terem te deixado de fora? É sério, quase que faço um discurso para reclamar disso. Qual é, somos os Irmãos do Vento, não se pode presentear um sem levar o outro de brinde.
— Dá um tempo — Wester falou, levantando-se. — Foi você quem fez tudo dessa vez, eu só fiquei na retaguarda. E bolei o plano inteiro.
— Se eu não soubesse que tu estava atrás, eu jamais avançaria.
Os dois irmãos seguiram juntos, desfilando pelas ruas de pedra azul. Soldados acenavam com cumprimentos no caminho, Lesten se sentia como um herói que era.
Ao chegarem aos dormitórios, Wester pegou a espada e seu irmão jogou-lhe sua lança, ambas as armas foram guardadas no pedestal até que seus serviços fossem mais uma vez requisitados. Ocasionalmente, trocavam seus equipamentos, pois não tinham preferência.
Lesten foi para a sala, onde havia um enorme quadro de medalhas na parede, todas perfeitamente protegidas por vidro e envoltas por um tecido vermelho que enaltecia seu brilho dourado. Havia precisamente dezesseis delas ali — agora dezessete —, das mais diferentes missões e tarefas realizadas nos últimos dois anos de serventia ao Reino de Sellure. Se continuasse naquele ritmo, logo uma parede não seria o suficiente.
— E aí, irmão. O que tu acha? — perguntou Lesten.
— Brilhante — respondeu Wester com sinceridade. — Poderia até cegar alguém.
— Tem como não sentir o impacto e a presença que essas coisinhas nos causam? O que tu acha que diferencia um soldado comum de um general do mais alto escalão? São essas medalhas, cara. O peito estufado, a compostura, o sentimento de quem merece estar ali, liderando as pessoas.
— E você acha mesmo que uma medalha é capaz de fazer tudo isso? Não viaja.
— Exatamente! Que parte tu não entendeu? A medalha é uma memória, ela representa a experiência que alguém passou para conquista-la, embutida com todo seu esforço físico e espiritual — Lesten explicou. — E afinal de contas, onde estão as suas?
Wester deu de ombros, insinuando que aquilo não fazia muita diferença.
— Qual é, tu tem vergonha das suas?
— Claro que não. Eu só não vejo motivo para ficar tão fissurado com uma chapa de metal pintada de amarelo. Não preciso deixa-las a mostra para me lembrar dos meus feitos.
Lesten mordiscou a medalha para ver se seus dentes deixariam alguma marca, comprovando assim sua autenticidade.
— Essa é de ouro mesmo. Não é pintada de amarelo.
Wester tentava não demonstrar, mas frequentemente era deixado na sombra do mais velho. Apesar do título “Irmãos do Vento”, somente um deles era o verdadeiro sucesso, a imagem da bravura em forma física, o lendário Lesten. Wester só estava ali para erguê-lo no alto quando conquistassem mais uma vitória.
Lesten decidiu fazer-lhe uma surpresa. Pegou uma caixa de madeira escondida debaixo no armário e a revirou em cima da cama, espalhando uma porção de itens e coisas sem valor para a maioria, mas que para eles era o tesouro mais precioso que poderiam encontrar.
— Eu não acredito que você guardou tudo isso — Wester vasculhava aquelas raridade com o entusiasmo de uma criança. — Caramba, a primeira ponta de flecha que te acertou na perna!
— Aquilo doeu pra porra.
— A primeira garrafa de uísque que tomamos juntos — Wester continuou. — E com assinatura!
— O fóssil que encontramos perto do Monte Rocha Sólida.
— A escama do maior peixe de água-doce do reino.
— O dente de um crocodilo selvagem. Ou será que esse era meu?
Os dois riram, pois agora eram como pesquisadores que fazem uma incrível descoberta.
— Cara, isso é incrível... — falou Wester, não encontrando palavras para definir o quanto aqueles objetos eram importantes para ele. — Mesmo depois de todo esse tempo?
— Quando eu digo que não sou nada sem você, eu não estou mentindo — Lesten forçou um sorriso, não escondia que também adorava a parcela mais peculiar de sua coleção. — Para a maioria, pode parecer apenas um monte de tranqueiras, mas eu sou um colecionador de memórias. Cada um desses itens significa alguma para nós dois. Ah, mas o que eu queria te mostrar mesmo era isso.
Wester reconheceu imediatamente a tampinha de garrafa. Quando ainda eram filhotes, um dia desafiou Lesten a acertar o alvo em uma árvore velha. A pontaria foi perfeita: ao invés da árvore, ele acertou um javali selvagem que passava por perto e garantiu o jantar da família. Wester se viu na obrigação de arranjar alguma forma de retribuir, se seu irmão era tão fissurado por medalhas, então ele fora o responsável.
— É a minha favorita — respondeu Lesten, observando a tampinha contra a luz, como se ela fosse banhada em ouro. — A melhor medalha de todas foi feita com uma tampinha de garrafa.
— E por que não está junto com as outras?
— Ah, sabe como é... Ela ficaria meio deslocada no meio de tantas douradas.
— Sei, sei.

Naquela noite, enquanto jantavam, puderam ouvir alguém na porta. Wester foi atender e deparou-se com Pyke, o mais novo chefe da guarda real. Ele estava trajado em sua armadura completa, vestia o elmo e o manto azulado, carregava também um enorme escudo com o símbolo dos geckos e a lança de prata recém-forjada.
— E então? O que achou?
— Incrível, capitão. Muito elegante.
— Obrigado. Pena que pesa demais, provavelmente porque agora não posso mais ficar no campo de batalha e preciso me concentrar na torre. Acho que vou sentir falta de nossas aventuras — disse Pyke. — O Lesten está?
— Não é como se eu pudesse me livrar dele tão cedo — Wester respondeu com uma risada.
Lesten aprontou-se rapidamente e saiu na companhia de seu superior.
Os dois se afastaram até alcançarem o terceiro andar da torre que dava visão para a ala norte da Fortaleza da Pedra Azul, em direção das montanhas. Aquela era uma das maiores e mais poderosas capitais de Sellure, nela residiam alguns dos melhores guerreiros já treinados, além de ser a morada do Rei e do Conselho da Matiz. Foi o palco central da Guerra das Espadas, um dos marcos da história de Sellure.
— Agora que farei parte da guarda real, minha rotina vai mudar — concluiu Pyke.
Durante anos fora o capitão do pelotão, mas seus soldados vinham ganhando destaque e não poderiam ficar sem um líder agora que fora promovido.
— Vamos sentir tua falta, chefe. A zoeira nas tavernas nos fins de semana nunca mais serão iguais — disse Lesten com uma risada.
— Não fale como se nunca mais fôssemos nos ver. A única diferença é que agora meu dever requer maior responsabilidade, mas continuarei servindo como eterno mentor e amigo.
— Agradeço o voto de confiança. Vamos comemorar qualquer dia desses!
— Pois bem, agora ao que interessa. Eu gostaria de fazer-lhe uma oferta, Lesten, e tenho certeza que não irá me decepcionar. Preciso que assuma meu lugar como capitão no pelotão. Você se tornará responsável por todos seus companheiros.
Seus olhos de lagarto se esbugalharam, estava incrédulo. Recebera honrarias e uma promoção no mesmo dia, em menos de dois anos no exército após ter sido enviado da academia e já alcançava um posto invejável.
— Você é habilidoso tanto com uma espada quanto com a lança. O povo gosta de você porque os faz sentir-se seguros através de bom humor e coragem. Não há ninguém melhor e de maior confiança para assumir meu lugar.
Lesten apoiou os braços no encosto da janela e respirou fundo. Eram muitos elogios vindo de alguém que tanto respeitava. Seu ego já estava mais inflado que o de costume, mas reconhecia que precisaria analisar a situação com cuidado.
 — E quanto ao meu irmão?
Pyke meneou a cabeça.
— Por mais que ambos tentem liderar, você sabe que no fim das contas um sempre acaba por se esforçar mais e merecer o crédito. Wester é um guerreiro ardiloso, mas falta-lhe... ousadia. Ele não arrisca o suficiente — concluiu Pyke, antes de dar aquela noite como encerrada. — Minha oferta é única e exclusivamente para você. Pense a respeito.

i

A semana seguinte começou com outra cerimônia e a experiência repetiu-se: Lesten foi recebido com aplausos — o mais novo capitão dos geckos! Apesar de pensar que seu irmão ficaria amargurado por sua decisão, devia ter se enganado, Wester é quem mais o apoiou e comemorou a vitória.
A primeira decisão de Lesten foi colocar seu irmão como comandante, em sua ausência, era ele o responsável pelas tropas e a ordem. Ainda eram os Irmãos do Vento.
Nas missões que seguiram, Lesten comprovou sua ousadia. Hordas de monstros eram frequentes arredores, suspeitava-se do ressurgimento de uma ameaça nas montanhas ao sul de Constantia. Após o enforcamento de Rudsi no Castelo Escarlate, diziam que um fantasma intitulado Peste Negra seguiu o legado dos Três Soberanos, buscando reacender a chama da guerra. Fosse ele homem, monstro ou fantasma, sabia-se apenas que vinha construindo um exército em algum lugar desconhecido, em completo segredo, tirando o sono dos altos oficiais e do Conselho que precisava exterminar tal ameaça.
Naquele mês, houve uma fatalidade. Cerca de cem soldados humanos que eram transferidos da academia mais próxima foram pegos em uma emboscada e não chegaram ao seu destino, causando discórdia entre o povo a respeito da segurança das bases e dos novatos que sequer começaram o treinamento para a guerra. O grupo desapareceu quando atravessava uma região rochosa próxima ao Lago Fantasma, evitando a floresta onde fora avistada atividade inimiga. Aquela zona era evitada por abrir oportunidades para investidas em sigilo, era impossível dizer o que existia entre a neblina espessa e suas águas profundas.
Um grupo de soldados do pelotão se reuniu numa taverna enquanto discutiam o ocorrido. Wester estava entre eles e não se conformava.
— Se os humanos foram idiotas o bastante para atravessarem aquela área, não me surpreende que tenham caído em uma armadilha — disse um dos soldados. — Eles não foram feitos para escalarem montanhas ou conviverem com a natureza, seu corpo não foi adaptado para isso, só funcionam efetivamente em zonas fechadas!
— Mas nós devemos ajuda-los — retrucou Wester. — Investigar, reunir reforços, pode haver sobreviventes! Sei que não somos da mesma raça e muitas vezes tivemos desavenças com os humanos, mas estamos do mesmo lado nessa guerra, eles precisam de nós!
— Se um lagarto sequer corresse perigo, tenho certeza que todos voltaríamos para ajudar — falou um segundo.
— Eles eram tão jovens, ainda me lembro de quando fui selecionado — ponderou outro, sentindo-se profundamente amargurado. Nunca gostara de humanos, mas também não desejava mal a eles.
Wester bateu na mesa e ficou de pé.
— Vamos reunir nossos melhores homens e patrulhar a área — afirmou com convicção —, tenho certeza que se descobrirmos qualquer pista, será uma ajuda bem vinda. Geckos são ótimos rastreadores, é o nosso trabalho e não somos pegos desprevenidos com tanta facilidade.
— Ninguém vai a lugar algum.
A atenção dos demais integrantes dirigiu-se ao capitão que entrou na taverna e sentou-se sozinho no balcão, pedindo duas canecas de chope. Lesten geralmente era alegre e gentil, adorava entrar chutando a porta e seu primeiro pedido era que aumentassem a música e começassem a cantoria, mas, naquele dia, parecia que o desgaste vinha prevalecendo.
Ele levantou-se, levou uma das canecas até seu irmão e sentou-se ao seu lado.
— É impressão minha ou você estava organizando um ataque, comandante? — Lesten o testou.
— Eu estava apenas comentando os boatos, capitão — respondeu Wester.
— Pelo que eu saiba, nós não recebemos nenhuma ordem de nossos superiores. Esses humanos provavelmente já estão mortos.
Lesten tomava sua bebida quando foi interrompido:
— Você é o superior agora, você decide as coisas. Quando finalmente nos tornamos mais do que meros soldados, viramos capachos do Conselho? Quando foi que o grande Lesten obedeceu a ordens de alguém? Quando foi que começou a tentar falar certo só para passar uma impressão? Quando foi o que meu irmão negou um pedido de socorro dos necessitados?
Lesten olhou bem nos olhos de Wester.
— Minha decisão é que todos vocês parem de discutir essas ideias loucas e voltem para suas casas. Nós não temos nada a tratar com humanos. A diversão terminou.
Era a primeira vez que a confraternização terminava antes da meia noite. Os demais soldados levantaram-se e deixaram a taverna, os dois ficaram a sós. Lesten continuou a beber tranquilamente, fingindo não ver Wester que cerrava os punhos prestes a soltar o que não devia.
— Como pode ser tão egoísta?
— Eu só estou me preocupando com a segurança dos meus homens — respondeu Lesten. — Inclusive a sua.
— Pois parece o oposto! É como se tivesse esquecido que somos irmãos, agindo como um capitão idiota que só gosta de mandar. Cadê as suas medalhas de ouro? Por que não anda com todas elas presas no peito, seu idiota?
Lesten ergueu seu braço, mas acabou por derrubar a caneca de Wester, que agachou no chão para limpar a sujeira. Enquanto esfregava o piso sólido e úmido, o lagarto não pôde deixar de comentar:
— Eu só queria o meu irmão de volta...
Lesten ficou muito triste ao ouvir aquelas palavras, mas também não encontrou uma forma de retribuir.
— Ele tá bem aqui, cara... Tá bem aqui. Pode ser meio difícil para você ver, mas sei que está em algum lugar. Desculpa, parceiro. Só estou tentando fazer o que parece certo.
— Não tem problema. Relaxa. Salvar humanos, que ideia idiota. Eu nem sou um herói.
Wester saiu da taverna, deixando o capitão sozinho com seus pensamentos no silêncio.

Durante a madrugada, Wester provou seu lado mais imaturo e impulsivo — reuniu quinze lagartos de seu grupo que concordaram em segui-lo, eles começariam a rastrear imediatamente os humanos desaparecidos e voltariam quando tivessem alguma posição. Quando Lesten tomou conhecimento do ocorrido, ficou furioso. Inimigos estavam à espreita por toda Constantia, e no momento que mais precisavam de cautela, seu irmão agia de forma imprudente.
— ...mas eu mato aquele desgraçado! Como é que pôde ser tão cabeça dura? — Lesten gritava para quem quisesse ouvir, batendo na mesa e derrubando peças, torres e miniaturas de soldados pelo mapa. Outros dois capitães ficaram em silêncio, mas Pyke conhecia a figura.
— Tente manter a calma por hora — sugeriu Pyke. — Não vá agir com impulso semelhante e fazer alguma besteira. Já basta uma. O Conselho não vai ficar nada contente.
— O Conselho que vá à merda! Eles não ligam pra soldado nenhum. Acha que aqueles velhos de roupa brega se importam com os humanos que morreram? É numa hora como essa que eles vão ter certeza de quem está obedecendo a suas ordens, não duvido nem que isso faça parte de um plano!
— Pare de dizer bobagens, Lesten. Você precisa esfriar a cabeça.
— É. Preciso mesmo.
O lagarto terminou de chutar uma mesa e quebrar uma cadeira quando enfim saiu do alojamento.
— Aonde pensa que vai? — Pyke perguntou.
— Sei lá, esfriar a cabeça, você mesmo falou... Não me procure nos próximos dias.
— Não vá fazer nenhuma besteira.
— Besteira, eu? — Lesten o desafiou com ironia. — Não me faça rir.
Se Wester era conhecido por ser o mais sensato da dupla, então Lesten tinha fama pela ousadia. Nunca ficaria parado, nem esperava que seus superiores liberassem um pequeno grupo que marcharia lentamente em busca de seu irmão para depois voltar sem respostas. Jamais lhe concederiam o aval.
Foi correndo pegar sua lança nos dormitórios quando percebeu que ela não estava lá, provavelmente seu irmão já a levara, por isso teve de ficar com a espada. Dispensou a armadura pesada por uma leve e de fácil manuseio. Não iria representando o exército, mas sim, como um caçador. Estava na hora de colocar suas habilidades e perícias de lagarto para funcionar.
Lesten partiu quando o sol ainda nem tinha nascido. Deixou a Fortaleza da Pedra Azul e cruzou o rio até alcançar a área rochosa onde o ataque ocorreu, preferindo dar a volta até as vias cruzadas que separavam a região de Constantia, Myriad, Helvetica e Perpetua. Farejou o ar e estudou o chão, concluindo que uma tropa de geckos passara por ali. Eles rumaram para o sul.
Procurava manter-se sempre silencioso, quando alcançou uma zona montanhesca onde a temperatura começou a cair e suas habilidades motoras foram prejudicadas.
— Cara, como eu odeio frio — reclamou o lagarto, tendo apenas uma pele de urso que caçara para abrigar-se. Geckos eram conhecidos por ter o sangue frio, lutar em temperaturas quentes ou frias ao extremo afetava, e muito, seu desempenho.
Quando alcançou uma floresta de árvores secas, ouviu certo movimento na estrada. Escondeu-se atrás de rochas cinzentas e estudou o local, notando um grupo de monstros que acampava ali. Era uma espécie que não tinha nome, conhecidos apenas como marionetes ou espantalhos, pois tampavam o rosto com sacos, máscaras ou elmos de ferro que roubavam de suas vítimas. Suas armaduras inteiras eram espólios de guerra, sempre que matavam um inimigo eles vasculhavam seus pertences até encontrar algo de interesse para usar como proteção. Lesten notou que havia muito do material que os geckos utilizavam, desde espadas e escudos até ombreiras rachadas e manchadas de sangue verde; mas sua atenção foi para a fita vermelha que um deles usava preso a uma lança — a lança do seu irmão.
Reagindo aos instintos, Lesten pulou e atacou o pequeno grupo de criaturas. Os monstros foram pegos de surpresa e tentaram revidar, mas falharam miseravelmente. Estavam cansados e aparentemente já tinham sofrido perdas, sem contar que não faziam parte de um exército treinado, tratava-se apenas de um grupo selvagem.
Dez deles não foram páreos para a habilidade de um gecko. Lesten poupou três para um interrogatório.
— Onde conseguiram esses espólios?
O monstro não sabia falar. A maioria não conseguia. Lesten cortou sua garganta lentamente até ele ficar imóvel como um pedaço de madeira. Tais criaturas não sangravam, elas simplesmente se desfaziam como se fossem feitas de palha.
Em seguida foi para o próximo, repetindo a pergunta:
— Onde conseguiram?
O segundo também não soube dizer, ele soltava apenas murmúrios e por isso teve o mesmo destino. Quando chegou ao terceiro, este tentou movimentar sua boca torta com ares de pânico:
— Geckos! Nós enfrentamos. Sacerdote levou. Recompensa. Espólios! Espólios!
Lesten meneou a cabeça, satisfeito com a resposta. Mesmo assim, cortou a cabeça do monstro que se desfez em sua frente.
Antes de partir, recuperou a lança e amarrou com cuidado a fita vermelha do irmão para devolvê-la quando o encontrasse.

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