sexta-feira, 26 de agosto de 2016

O Passado dos Personagens - Lee e Hayley (Parte 3)


Estava aprisionado em sua cama, e por algum motivo não conseguia sair. Os móveis estavam todos no mesmo lugar, mas sua visão era um emaranhado confuso de formas que se mesclavam umas nas outras, com exceção de uma massa negra esguia e uniforme que se destacava de tudo ao seu redor. Ele estava ali, parado, observando-o de longe com um par de olhos fundos e sem pálpebras; andava apoiado nas patas traseiras e tinha feições caninas, mas seu corpo não era revestido por pelos ou traços animalescos. Com um salto ágil, caiu exatamente ao lado da cama. Primeiro farejou seu rosto para certificar-se de que não havia ninguém acordado, mas um som ali perto o fez afastar-se acuado, desaparecendo na escuridão de onde surgira..
Lee levantou-se com um salto, sentindo o suor escorrer pelo seu corpo. A cama estava desarrumada e Hayley roubara todo o cobertor para ela, enrolada perto de sua perna onde dormia serenamente. Lee ainda respirava com dificuldade quando os raios da manhã passaram por entre as persianas e iluminaram o recinto. Trabalhou sua mente para afastar o pesadelo e enfim conseguiu levantar.
Não passava das oito da manhã, o céu continuava cinzento e uma cortina fina de geada cobria a grama rala nos arredores. Lee vestia apenas uma calça de abrigo e regata quando saiu da cama e foi esticar as pernas lá fora e alongar-se, depois se agasalhou melhor com um gorro, moletom surrado e seus óculos escuros para que não fosse reconhecido. Gostava de fazer caminhadas matinais, costumava andar 10km todos os dias de manhã para aquecer, mas naquele dia decidiu que daria uma volta por fora da cidade e tentaria quebrar o seu recorde de tempo até chegar em casa. Fazia tudo sem suar. Depois de quase duas horas, voltou para preparar um café da manhã reforçado — ovos com bacon, e quando o cheiro tomou conta da casa, Hayley ergueu o narizinho e atiçou suas orelhas.
— Que cheiro gostoso — a feneca falou, ainda sonolenta. — Qual o motivo do banquete?
— Estou com visita — respondeu Lee com uma risada. — Você come essas coisas, ou tem algum código moral que a impeça de comer carne?
— Eu adoro. E para ser bem sincera, faz anos que não como, tudo que tenho são algumas frutas que pego dos pomares vizinhos e outros alimentos que... encontro por aí — respondeu Hayley. — Sabe me dizer que horas são?
— Quase dez horas — Lee fez uma manobra com a panela fervendo em sua mão. — Você tem um sono bem pesado, sabia? Pelo menos, admito que parece um bichinho de pelúcia dormindo, por isso eu nem quis acordá-la.
Hayley corou e voltou a se enrolar nos cobertores.
— Ainda é tão cedo, posso continuar aqui...?
— Fique à vontade — o rapaz riu indiferente. — Mas o que exatamente você está fazendo?
Hayley enfiava a focinho no travesseiro que Lee usara enquanto se enrolava toda no lençol.
— É que a cama tem o seu cheiro.
— Às vezes você é bem estranha, sabia?
Hayley continuou a observá-lo trabalhar o tempo todo. Era a primeira vez que acordara com alguém ao seu lado, e ainda por cima cozinhando algo tão delicioso que não se lembrava de ter sentido cheiro igual. Estava acostumada a despertar aos chutes quando morava nas ruas, mas ver um homem forte e musculoso com roupas casuais e avental preparar-lhe uma refeição foi uma experiência completamente nova.
Lee terminou um dos pratos e pediu que ela comesse logo antes que esfriasse. Hayley deu um pulo da cama e não demorou em agarrar os ovos com bacon com suas próprias patas para depois devorá-los. Ela percebeu que Lee a olhava de relance, e por isso sentiu vergonha, somente então se dando conta dos talheres ao seu lado na mesa.
— Desculpe, eu devo ter parecido um animal faminto agora. É que não consigo mais usar as ferramentas humanas direito. Não é fácil controlar meu corpo nessa forma, acho que o que mais sinto falta é de um polegar opositor... — ela disse encabulada.
— Sem problemas — Lee respondeu, apoiando-se na bancada e indicando que comeria com as mãos também. — Sinta-se em casa.
Os dois se banquetearam e Hayley repetiu mais algumas vezes até fartar-se. Ela se ofereceu para lavar as louças, mas sempre acabava deixando alguns pelos nos pratos o que obrigava Lee a limpá-los novamente.
De repente, uma coceira percorreu o nariz do rapaz ele espirrou fazendo um barulhão, o que a fez rir.
— Não vai me dizer que você é alérgico a mim? — brincou Hayley.
— Acho que é só um resfriado — respondeu Peter. — Isso que dá ficar andando por aí nesse frio sem roupas decentes.
— Ah, deixe-me fazer um teste em você!
A feneca saltou até uma estante de livros e puxou uma banqueta para pegar um livro que se lembrava de ter guardado ali no último dia. Tratava-se de um livro sobre Curandeiros, como eram conhecidos os usuários da magia branca naquele reino. Hayley esfregou as patinhas e pediu para que Lee se sentasse em sua frente.
— Muito bem, você pode não saber, mas além de ser uma criatura misteriosamente fofa e incomum, também tenho poderes de cura.
— Duvido — respondeu Lee, cético como era. — Vai ter que me mostrar.
Sentindo-se desafiada, Hayley concentrou suas energias e a mana dentro de si, criando uma pequena esfera azulada em sua mão. A esfera iluminou o recinto, ela a assoprou contra o nariz de Lee que fechou os olhos e franziu o cenho por sentir algo completamente estranho dentro de seu corpo. Poucos segundos depois parecia que seu resfriado já havia passado e o nariz não estava mais entupido.
— Nossa, e não é que funcionou? — disse a própria Hayley, impressionada. — Geralmente eu só utilizava em mim mesma para curar feridas, mas... muitos tentaram capturar-me para utilizar-se desses poderes. Eles me viam como um tesouro peculiar, uma experiência a ser estudada.
Lee ouvia tudo atentamente. Foi então que Hayley percebeu que o nariz dele ficava estranhamente avermelhado, tão vermelho que parecia um morango. Ela começou a rir sem parar, e quando o rapaz foi olhar-se no espelho percebeu como estava terrível — o resfriado voltara duas vezes mais forte e agora ele mal conseguia respirar.
Por conta do incidente, Lee teve de ficar dois dias inteiros na cama.
Hayley se oferecera para preparar o café, almoço e janta; além de estudar algum feitiço para consertar o incidente que ela própria cometera. Pelo menos Lee não se importou muito,
Os dois passaram os próximos dias se conhecendo melhor, e a primeira conclusão que Lee chegou foi de que as habilidades culinárias da feneca eram péssimas. Vez ou outra ele compartilhava histórias sobre sua vida e suas vitórias no torneio de Bodoni, assim como sua vontade de participar do Sellureville, o maior e mais importante torneio do reino. Também contou sobre o incidente com Ronald Rollout e sobre como adquirira o olho vermelho, as pessoas agora o consideravam um monstro, seu sonho teria de sofrer uma rápida mudança no roteiro para adequar-se a esta nova realidade. Sempre quisera ser um herói para o mundo, mas talvez o mundo não quisesse mais recebê-lo. Não naquelas condições.
— Eu gostaria de ter histórias legais como as suas para contar — disse Hayley, admirada. — As minhas são todas trágicas, e ninguém gosta de ouvir histórias com finais tristes. Mas, sério, eu jamais diria que você seria capaz de ferir alguém! Você parece ser um cara tão bacana, é gentil e atencioso... E eu que não tenho absolutamente nada para contar!
— Nossa, imagina se tivesse? Você fala mais do que deve, também é desastrada e vive cometendo enganos — disse Lee num tom sério que fez Hayley ficar entristecida, em seguida continuou: —, mas tem um coração enorme. Não se pode simplesmente dar as costas a alguém que só quer ajudar.
Eles se olharam e Hayley agradeceu as palavras sinceras. Lee espirrou, sentindo que seu resfriado não passaria tão depressa. Após um rápido intervalo de silêncio, uma voz de menina foi ouvida:
— Acho que você é a minha melhor história.
Lee revelou um sorriso de canto entre os lábios.
— É estranho pensar que eu posso morrer a qualquer momento — ele teve de admitir, entrelaçando suas mãos e sentindo que lá no fundo elas tremiam de medo. — Hoje o dia está horrível, frio, nublado e chuvoso; do jeito que eu odeio. Tenho tantas expectativas e vontades, mas é difícil simplesmente deixar tudo para trás e seguir uma aventura da qual não tenho controle nenhum. Realizar sonhos é difícil...
— Pelo menos você tem um.
Hayley foi até perto de sua perna, sentou-se no chão e encostou a cabeça em seu joelho.
— Hoje é um bom dia. Devíamos aproveitá-lo.
— Como?
— Cuidando um do outro — disse ela com a voz tranquila.
— Acho que estou começando a gostar de dias assim.

i

Ao final da primeira semana, Lee assustou-se com uma visita inesperada sentada no sofá de sua casa.
— Eu te dei a permissão de usar minha cama?
— Mestre Hugh! — falou o rapaz, tentando manter a compostura e jogando seu cobertor em cima de Hayley para escondê-la.
— Se minha memória não me falha, eu disse que você poderia ficar com a casa, mas seu lugar sempre foi aqui — ele deu dois tapinhas no sofá em que estava sentado, depois riu e fez sinal para que esquecesse tudo aquilo. — Só estou brincando, filho. Venha, precisamos conversar lá fora, só não faça barulho para não acordar esse camundongo gigante.
— Ah, você a viu... Não se preocupe, a casa poderia pegar fogo que ela não acordaria...
Lee vestiu seu moletom surrado com gorro, pois seu resfriado só estava começando a melhorar agora. A frente fria se aproximava com ainda mais força, o inverno seria rigoroso naquele ano. Ambos caminhavam lado a lado, Hugh trajado com sua jaqueta marrom, o cachecol velho no pescoço e a boina na cabeça; seu hálito quente fazia formas no ar conforme ele compartilhava os resultados que sua busca rendera na última semana.
— Existe uma pessoa capaz de reverter sua maldição.
Peter Lee soltou um suspiro aliviado, aguardando mais informações.
— E então? Como eu posso encontrá-lo?
— Trata-se de uma feiticeira que mora na Ilha-S, localizada no sudeste da província de Century. Mas já vou avisando que ela é uma bruxa terrível, dizem que ela é capaz de congelar sua alma e prendê-la num jarro para que nunca mais ame alguém, seus feitiços quebram corações, e...
— É a sua ex-esposa, não é?
Hugh parou de falar e ficou quieto por um instante, depois confirmou com a cabeça.
— Quer dizer que esse tempo todo de investigação se resumiu a um encontro familiar?
— Não posso sequer me aproximar dela, filho. Por motivos pessoais, claramente. Passei por vilarejos afastados nas montanhas do norte de Bodoni e fiz alguns contatos, mas ninguém me apresentou uma resposta adequada para a cura, e o tempo está contra nós, eu precisaria de mais alguns meses para seguir com a pesquisa... Por ora esta é a única solução que encontrei — explicou Hugh. — Todos recorrem à feiticeira quando suas esperanças acabam. Sua especialidade são exatamente as maldições, e além de ser uma pessoa formidável, você precisa provar um pouco de seus biscoitos com gotas de neve. Infelizmente, eu não poderei acompanhá-lo nessa jornada, mas seguirei com minhas pesquisas.
— Você disse que ela é boa com maldições, será que ela também poderia curar a Hayley?
— Quem é Harley? O rato gigante?
— Ela não é um rato gigante, na verdade é uma garota humana que foi amaldiçoada e está tentando recuperar sua forma original.
Hugh abriu a boca em sinal de surpresa, interligando algumas peças que começavam a se conectar. Apontou para ele com o indicador e deu uma risadinha provocativa que só os tios chatos das festas sabem dar.
— Bem que eu achei que você se daria melhor com as mais novas, garanhão. Agora já posso fazer piadinhas sobre namoradas!
— O quê?! Se você não percebeu, somos de duas raças inteiramente diferentes! Eu sou um humano, e ela é um... sei lá! Eu tenho quase um metro e noventa de altura, ela não passa da minha cintura! E até agora não sei se ela se enquadra como um animal ou na raça dos monstros, mas... Ei, pare de tentar confundir a minha cabeça.
— Ah, filho, muitas vezes nos apaixonamos pelas pessoas mais improváveis... Os opostos se atraem, foi assim que conheci sua mãe, e...
— Do que você está falando?
Hugh parou quando percebeu a gafe que cometera.
— Desculpe, por um instante confundi você com... Deixe para lá... Onde estávamos? — disfarçou o velho, procurando mudar o assunto o mais rápido que pudesse. — Ah, sim. Obviamente, também estive tentando informar-se sobre as consequências dos olhos vermelhos. Por um acaso você tem sentido a aproximação de espíritos malignos? Coisas que mais ninguém enxerga?
— Não. Ou melhor, não vejo nada.
— Esses demônios, ou espíritos invisíveis, como quiser chamar, são responsáveis por mudar drasticamente a atitude de pessoas. Se um deles assumisse o seu corpo, você poderia ferir alguém que ama sem nem ter consciência disso. Não há nada confirmado, mas eu acredito que os olhos vermelhos tenham alguma ligação com isso. Talvez seja alguma criatura que o vinha seguindo nos últimos anos, fazendo-o agir com mais raiva e violência do que o costume, e quando encontrou a brecha perfeita — um momento de fraqueza espiritual e mental — ele apossou-se de você.
— Quer dizer que podemos retirá-lo de mim? — perguntou Lee.
— Ninguém nunca conseguiu. Os amaldiçoados morrem antes.
— Muito inspirador...
— E pesadelos? Você ou o camundongo-fêmea sofrem de pesadelos?
— Se ela ao menos acordasse depois de um. Embora eu tenha sido perseguido por um sonho frequente onde uma estranha criatura está me observando, e só o fato dele ficar ali me olhando me incomoda bastante...
Hugh concordou com a cabeça, mas não respondeu. Lee pensou que ele estava para apontar algo importante, mas sua mente parecia ainda estar com os biscoitos de neve de sua ex-esposa.
— Tente encontrar a feiticeira, ela pode ser a solução para as duas maldições, tanto a sua quanto à da raposa felpuda. Não há nada nesse mundo que ela não possa resolver — falou Hugh. — E se for realmente visita-la, diga que o velho Burnout mandou um “oi”.
— Não vou mandar nada.
— Vamos lá, realize o último desejo deste pobre senhor...
— Como pode confiar tanto nessa mulher?
Hugh parou de andar. Respirou fundo e soprou no ar, e seu hálito quente transformou-se em uma mulher de cabelos esfumaçados e vestido longo. Ela dançava sozinha e exibia toda sua sensualidade, até que a imagem se desfez levada pelo vento.
— Eu ainda a amo mais do que tudo nesse mundo.

Hugh recebeu muito bem a nova companhia em sua pequena casa. Agora que o verdadeiro proprietário estava de volta, o ambiente revelou-se muito mais divertido e alegre. Hugh também não era um bom cozinheiro, mas tinha seus truques na manga: ele transformava as labaredas de fogo em pequenas criaturas incandescentes com vida própria, e elas, por sua vez, preparavam todo o almoço sem que ele precisasse mover um dedo. Hayley adorou conhece-lo, e via no velho homem a imagem de um pai que nunca teve. Suas histórias eram sempre cheias de emoção, romance e aventura; e ele as contava como se tivesse feito parte de cada uma delas.
— ...e então eu fiquei frente a frente com o temível dragão, e para proteger os meus amigos, arranquei a cabeça dele!
— Você arrancou mesmo? Isso é demais! — Hayley perguntava incrédula, inflando o ego do velho. Lee fingia cochilar ali perto com os braços cruzados, cansado das tantas vezes que ouvira a mesma história.
Os dias se prolongaram e a longa temporada de inverno chegou — eles viviam de forma simples, compartilhando interesses e auxiliando um ao outro no que podiam. Hugh ensinou Hayley a controlar melhor seus poderes, e encontrou uma explicação para seu cansaço extremo: sempre que ela fazia uso de magia branca, um pouco de sua própria energia era drenada, por isso tais poderes deveriam ser usados com cautela e responsabilidade. Hayley aprendia com velocidade, era tão habilidosa e dedicada em sua área quanto Lee em seus treinos. Há meses ele não tinha notícias dos torneios em Bodoni, mas chegara aos seus ouvidos que seu título de campeão fora revogado e seu nome aparecia em diversos cartazes de foragido; aos poucos tais memórias foram abandonando sua mente, e até Wendy parecia vir de um lugar muito distante em suas lembranças.
Em uma tarde fria os três decidiram sair juntos para fazerem compras. As ruas estavam cheias de gente bem vestida por conta do frio delicioso que fazia lá fora, era um dia perfeito para passar em um bar e tomar um bom chocolate quente com direito a fondoue de chocolate. Bodoni fazia frio grande parte do ano, não tanto quanto a província de Perpetua e sua neve permanente, mas os dois extremos do reino eram conhecidos pelas temperaturas amenas. No passado, Bodoni recebeu o apelido de “região das neblinas” por sempre ter uma camada espessa que cobria a cidade ao alvorecer.
Lee vestia sua blusa e colocou o capuz junto dos óculos escuros. Queria estar irreconhecível, ainda via muitas autoridades nas ruas, mas se conseguisse se misturar à multidão não haveria problemas. Hayley andava hesitante entre os dois homens, preferindo esconder-se atrás dele sempre que alguma criança curiosa a encarava por muito tempo.
— Ei, Lee...
— O que foi, Hayley?
— Eu queria ir embora logo... Nem todos os humanos gostam de mim.
Lee ficou pensativo, e talvez fosse verdade, Hayley andava sobre duas patas como gente, seria difícil escondê-la com aquelas orelhas enormes e o focinho alongado. Foi Hugh quem teve a ideia de entrar em uma loja de roupas e acessórios, comprou vestes para crianças que a cobriam de seus pés até a cabeça, além de um enorme chapéu onde poderia esconder as orelhas da pequena. Levou também um pente para tentar ajeitar os pelos da feneca de modo que se parecesse com fios loiros, e gostou do resultado. Estava bem convincente.
— Isso é horrível — Lee a analisou com cuidado. — Alguma vez você já comprou roupas na sua vida?
— Sua opinião é quase insignificante para mim nesse momento, meu jovem — respondeu Hugh com uma risada, agachando para ficar na altura da pequena. — Como se sente?
— Me sinto uma capivara gorda ambulante — admitiu Hayley, que já se desacostumara a usar roupas. — Sério, elas coçam muito. Como vocês conseguem usar essas coisas por tanto tempo?
— Se quiser voltar a viver entre humanos, vai ter que se acostumar — respondeu o velho.
Os três voltaram a andar pelo centro de Bodoni, e dessa vez sem chamar muita atenção. Diante de tantas raças e criaturas diferentes que existiam naquele mundo, Hayley poderia ser apenas mais um viajante incomum. O maior problema de encontrar um animal com o poder da fala seria enquadrá-los em uma raça inteiramente nova, capaz de opinar, dialogar e sentir; a caça passaria a ser expressamente proibida em todos os lugares. Da mesma forma que as quatro raças se respeitavam mutuamente, a inserção dos animais neste meio mudaria completamente a geração que viria a seguir.
Lee caminhava depressa, quando Hayley foi ficando para trás, teve de correr e segurar sua mão para que não perdesse o ritmo. O rapaz olhou para ela, mas não ligou. Hugh, que os vinha acompanhando de longe, não pôde deixar de fazer um comentário:
— Sabia que eu tenho uma filhinha também? Hoje ela deve ter o seu tamanho.
— Sério? Então ela tem muita sorte de ter um pai como você — respondeu Hayley.
— Eu gostaria que isso fosse verdade, mas como pode ver, estou aqui, longe dela e incapaz de acompanhar seu crescimento em uma das fases mais importantes de sua vida... Eu a vi dar seus primeiros passos e formar suas primeiras palavras, mas estarei longe quando ela tiver dificuldade em sua lição de casa, ou quando não conseguir dormir de noite por medo do escuro, ou encontrar seu primeiro namoradinho... Não poderei fazer piadas com nada isso.
— E você... não pode voltar a vê-la? Não pode retornar para a sua família?
— Não, querida. Não posso. Não até que algumas coisas sejam resolvidas.
Hayley correu em sua direção e abraçou sua perna com força. Hugh parou de andar e cedeu completamente ao gesto de carinho, ficando de joelhos para envolve-las com seus braços quentes como os de um pai que renova todas as suas energias.
— Não fique triste, tá bom? — pediu Hayley. — Eu posso ser sua filha.
— Puxa, olha só o que vocês estão fazendo comigo, chorar cancela os efeitos do meu poder — disse o velho homem com um sorriso. — Eu estou longe de meus filhos de sangue, mas também estou feliz por ter ganhado novos.
— Eu sei que esse é um momento bonito e tudo mais, mas podemos continuar andando? — perguntou Lee. — Tipo, vocês estão parados no meio da calçada e atrapalhando o movimento de todo mundo.
— Você está com inveja porque não está envolvido no nosso abraço — disse Hugh. —Venha aqui, seu menino invejoso e sentimental, sempre tem espaço para mais um!
Hayley teve o dia mais feliz e diferente de sua vida desde que perdera a memória. Ganhou até mesmo uma boneca para substituir a criatura sem cabeça que ela levava em sua caixa de brinquedos. Eles só deixaram a cidade quando já estava escurecendo, um grupo de jovens passava por ali, Hayley prendeu a respiração quando passava perto deles, pois pressentia que eles falavam mal a seu respeito. Aprendera a temer grupinhos como aquele, que eram exatamente o tipo de gente que praticava maldades com ela quando estava indefesa. Lee segurou sua mão — ou pata, como preferir — e Hugh fez o mesmo do outro lado. Eles seguiram de cabeça erguida, ainda que a voz das garotas cochichando baixinho chegasse até seus ouvidos aguçados:
— Viu só aquele casal? Mas ele é tão alto, e ela tão baixinha...
— Não percebeu que são de raças diferentes? Deve ser um humano e um monstro... — respondeu a outra com ares de censura. — Essa coisa de espécies se misturando perturba o equilíbrio.
Peter Lee não chegou a ouvir a conversa, mas Hayley ouvira como se estivessem ao seu lado. Abaixou a cabeça e pensou sobre si mesma, sobre quem era e o que se tornara. Estava começando a gostar muito daquela gente que a aceitara de tão bom grado, mas sempre que pensava em humanos era pega pela incerteza. Por algum motivo eles se revelavam cruéis quando menos se espera.
— Às vezes eu penso que fui amaldiçoada a ficar sozinha no mundo — murmurou Hayley, rompendo o silêncio.
— "É melhor ficar sozinho com seus pensamentos do que com outras pessoas que o façam sentir-se vazio" — citou Hugh.
Hayley concordou com a cabeça, e tentou mudar seus pensamentos de forma pensativa. Queria acreditar que estava com as melhores companhias do mundo.
Em uma época tão fria, tudo que gostaria era de ficar no calor e no aconchego da pequena casa ao pé da montanha. Hugh fazia com que a temperatura ambiente fosse sempre agradável, e ele teve ainda de comprar dois colchões para que houvesse espaço. No fim do dia todos ficavam juntos e amontoados no sofá, sair para passear era um evento novo, mas os três concordavam que preferiam aproveitar a companhia mútua sem precisar interagir com pessoas de fora ou se esconder no mundo. Ali, naquele lugarzinho esquecido, ninguém os desapontaria e eles não precisariam de nada, além de si mesmos.

ii

Alguns meses se passaram desde que Hayley se mudara de sua caixa de papelão embaixo da ponte até sua nova moradia.  Numa manhã fria de inverno, Hugh ordenara Lee a ir até as montanhas do norte de Bodoni, próximo à Floresta dos Cheiros, para recolher a lenha da melhor árvore que só crescia lá. Lee partiu muito contra sua vontade, mas apostou que conseguiria fazer a tarefa em menos de quatro horas. Neste meio tempo, Hugh e Hayley ficaram a sós na casa. O velho aproximou-se da lareira vazia, encheu-a de papelão velho e disparou fagulhas de suas mãos que imediatamente acenderam o fogo. Eram chamas misteriosamente quentes e aconchegantes, que não demoravam em se alastrar e jamais perdiam o controle. Hayley adorava seus feitiços. Hugh enfim ajeitou-se perto do fogo e afundou no sofá.
— Você deve estar se perguntando o porquê de eu ter mandado o garoto treinar nas montanhas. Bem, eu só queria um momento para conversarmos algumas coisas em particular.
“Peter Lee é um jovem dedicado, mas às vezes precisa de um empurrãozinho para continuar seguindo, ou ele se acomoda facilmente, ainda mais com você por perto. Se dependesse dele, vocês passariam o inverno inteiro dentro dessa casa. Ele adora um bom relacionamento e uma companhia agradável, há muito do romance antigo em seu coração de menino.”
— Ele é muito dedicado mesmo — respondeu Hayley. — Eu me sinto segura perto dele.
— E ele a protege como se fosse a irmãzinha mais nova dele.
Hayley concordou com a cabeça, mas não disse nada. Hugh olhou bem para a criaturinha sentada no chão em sua frente, brincando com o fogo como uma criança curiosa que enxerga nas chamas uma capacidade de purificação que outros não são capazes. Ele respirou fundo e coçou a barba, tocando em um assunto um tanto quanto delicado:
— Só que você está se apaixonando por ele, não é?
Hayley ainda encarava o fogo bem de perto quando ouviu a pergunta. Sua cabeça estava longe, então nem soube como responder ao certo. Ela abaixou as orelhas e parou de brincar, pensando em como transformar tantos pensamentos em palavras que continuavam presas em sua garganta.
O Lee é bonito, alto e forte; gosto do cabelo dele, dos lábios dele, do sorriso de canto sem mostrar os dentes, das mãos grandes e do peitoral definido. Quando estou com ele, eu tenho pensamentos indecentes, quero trocar carícias, abraça-lo e andar de mãos dadas. Eu só queria que ele não pensasse que eu sou tão criança e inocente quanto parece que sou... Ele deve me achar tão pura, mas eu iria preferir não ser colocada em um pedestal onde mais ninguém possa me alcançar.
Hugh riu de sua poltrona.
— Falando assim você até parece uma menininha de verdade, e não uma alma enfeitiçada. Talvez o rapaz a considere assim por ter medo de te perder, ele acaba de sair de um relacionamento duradouro, às vezes isso é difícil de lidar. Dê tempo ao garoto.
— Então... Não tem nada a ver com nós dois sermos de raças diferentes?
— Eu me apaixonei pela Rainha do Gelo, enquanto eu sou um autêntico Guerreiro do Fogo. Quer algo mais controverso do que isso? — Hugh falou num tom divertido. — Ouça, querida. Ouça o que seu coração está dizendo.
Eu só gostaria de viver com ele para sempre...
— Viver com humanos é estranho. Posso ter esta forma como você me enxerga agora, mas eu sou um tótines e também compartilho de uma aparência mágica. Vivi com humanos os últimos anos, e cada dia que passa eu os acho mais e mais estranhos; cheios de suas incertezas e dúvidas, mas com uma força de vontade imensa para alcançar seus sonhos mais impossíveis — disse Hugh. — Se este é o seu sonho, ficar com ele para sempre, então lute por isso. Ainda deve existir um pedacinho da determinação humana dentro de seu coraçãozinho de camundongo.
— Mas eu sou um feneco — corrigiu Hayley.
— Não faço nem ideia do que seja isso — Hugh caiu na risada.

Lee voltava das montanhas de madrugada, abrigado dos pés ao pescoço entre casacos de pele e botas felpudas. Estava cansado e com sono, retornava daquela viagem frustrante e no caminho sempre se deparava com monstros famintos. Alguns já eram até velhos conhecidos e só apareciam para atrapalhá-lo e atrasar no retorno. O mais maçante o frio de quase cinco graus, não chegava a cobrir o chão de neve, mas a sensação térmica era ainda inferior e seus passos deixavam para trás um rastro por cima da geada.
Pelo menos teria Hayley quando voltasse. E isso já era o suficiente.
Ele estava no alto do penhasco perto da casa de Hugh quando notou uma estranha cortina de fumaça negra esgueirar-se nas alturas. Parecia ser fogo, mas tinha de ser muito forte para superar o vento. De fato, quando forçou a visão percebeu tratar-se de um pontinho verde incandescente. Temeu pelo pior. Ajeitou a madeira em suas costas e começou a correr. Suas suspeitas eram colocadas à prova, largou as toras e correu o mais depressa que pôde, mas quando chegou tudo já ardia em chamas. O fogo verde se alastrava para todos os lados, se tentasse entrar ali teria algumas queimaduras muito sérias para lidar.
Lee entrou em desespero. Tinha força, mas ela de nada lhe servia numa hora como aquela. Ajoelhou-se no chão ao imaginar que Hugh e Hayley ainda estavam lá dentro, as únicas pessoas que realmente importavam em sua vida.
Não, não, não!! — berrou em plenos pulmões.
Estava prestes a entrar na casa quando a porta foi aberta, e dali de dentro Hugh saiu carregando a pequena feneca em seus braços, toda encolhida entre cobertores para que não fosse ferida pelas chamas misteriosas. Lee arregalou os olhos, Hugh estava intacto, sem nenhuma queimadura ou ferimento. Ela estava desacordada de tanta fumaça que inalara.
— Alguém ateou fogo na casa enquanto dormíamos — disse Hugh de forma breve,
— Fico feliz que você tenha conseguido sair inteiro — falou Lee, incrédulo.
— Acho que todos esses anos tomando café fervendo me deram resistência — brincou o velho. — Mas eu não sou capaz de controlar estas chamas. Elas são ferozes, isso não é natural e nem obra de algum ser vivo. Eu poderia facilmente consumir as labaredas de uma floresta inteira, mas aqui está um tipo de fogo que nunca vi antes, por isso a fumaça sobe negra e transforma o céu em escuridão.
Lee olhou para os lados à procura do causador daquela tragédia. Não via nada além da noite, mas imerso nas trevas surgiu um par de olhos que brilhavam às cegas. Havia um monstro ali de quase dois metros, grande o bastante para ser do tamanho de um lobo adulto, com o focinho longo e feições animalescas, sem pelo algum cobrindo o corpo desnudo. Ele andava apoiado nas pernas traseiras, mas não era um animal; seus braços eram finos, conectando mãos finas com garras longas e pontiagudas. O monstro ficava olhando para ele o tempo todo, como se fizesse questão de que soubesse que ele os estava observando, vigiando, acompanhando há muito tempo.
— Você está vendo aquilo, Hugh? — perguntou Lee.
O velho olhou para a noite e forçou a vista desgastada.
— Do que você está falando?
Os olhos vermelhos de Peter Lee arderam em chamas. O rapaz retirou as vestes pesadas e começou a caminhar em direção da sombra que continuava parada, imóvel. Hugh chamou-o, mas Lee não respondeu, começou a correr contra o monstro e ergueu o punho para acertá-lo na cabeça, mas a criatura desapareceu e ressurgiu logo atrás do rapaz, arranhando suas costas e abrindo uma ferida mortal.
Hugh não conseguia enxergar a criatura, mas sabia que algo atacava o seu pupilo. Lee caiu no chão agoniando, mas logo se levantou e berrou novamente:
— Onde está? Não tem coragem de me enfrentar?
Não estou aqui por você, disse a criatura de olhos famintos. Onde está a criança?
Somente Lee era capaz de ouvi-lo. Independente dos motivos, jamais entregaria Hayley.
— Você nunca a terá. Eu vou acabar com você agora mesmo!
Não importa. Vocês podem continuar fugindo do Lobo, mas o Lobo é paciente. Um dia o Lobo alcança.
Lee tentava acertá-lo com socos e chutes normais, mas nada poderia fazer frente às criaturas do mundo inferior. Estava perdendo o controle, sua raiva era tamanha que não poderia mais controla-la. A sombra atacava na furtiva, acertava-o pelas costas, praticamente brincava com sua preza. Lee caiu de joelhos no chão quando sentiu algo cortar seus calcanhares, como se uma chuva de canivetes o perfurassem e imobilizassem no chão. Ergueu o rosto com dificuldade e teve tempo de ver o monstro caminhar em direção dos panos onde Hayley jazia desacordada.
— E-eu não posso deixa-lo leva-la...
O monstro olhou para trás. Seus olhos sem pálpebras enxergaram nele uma fonte de vida imensa, um jovem tão imerso na violência e na crueldade que era só questão de tempo até que espíritos fossem atraídos aos montes em sua direção. Lee bateu no chão com o punho e seu corpo começou a mudar de forma até dobrar o tamanho, suas roupas se rasgaram e sua face tornou-se deformada. Os dentes ficaram à mostra como os de um crânio, seus músculos saltaram para fora e os dedos de suas mãos também se transformaram em garras. Era a primeira vez que deixara todas as energias negativas de seu corpo tomar posse, Hugh lera que todo amaldiçoado com os olhos vermelhos tinham uma forma demoníaca adormecida em seu corpo. Os olhos de Lee se tornaram vazios como os de um crânio, ele ergueu o braço retorcido e mergulhou contra a sombra, cortando-o ao meio. A criatura urrou e se dispersou na escuridão, seus olhos como lanternas em uma noite vazia.
Lee se transformara em um monstro de verdade. Ele arfava com dificuldade, não tinha controle do que havia se tornado, mas certamente não era daquele mundo. Do outro lado, Hugh carregava Hayley entre os braços e erguia uma única mão contra a nova ameaça que se formava.
— Filho, pare com isso imediatamente.
Lee virou-se para ele e viu ali apenas um homem velho e cansado — mas não o distinguiu de um verme que deveria ser eliminado. Ergueu o braço para arrancar sua cabeça, e neste instante uma explosão de fogo saiu das mãos de Hugh e explodiu bem diante da criatura que caiu no chão berrando de dor, os dentes à mostra num sinal de possessão. Uma gota de suor escorreu pelo rosto de Hugh.
— Filho, volte para nós — ele ainda conseguia falar com a voz mansa, como um pai que suplica ao filho que volte para ele. — Este não é você.
O monstro ergueu-se, e com velocidade avançou em sua direção. Nada parecia ser capaz de detê-lo, e Hugh sabia muito bem que a única forma de combater monstros descontrolados era impossibilitando-os de continuar. Lee fez uma investida, Hugh escorregou para o outro lado e procurou deixar Hayley em segurança longe da batalha e do fogo na casa. O velho arrancou um pedaço de ferro com suas próprias mãos e o transformou em brasas, como uma espada de fogo. Quando o monstro atacou novamente, Hugh golpeou a perna esquerda da criatura onde ele já parecia mancar devido ao ferimento causado pelo Lobo, fazendo-a cair de joelhos no chão.
Peter Lee, você é mais forte do que essa maldição, mais forte do que qualquer criatura que deseje exercer controle sobre você. Revele o prodígio, o guerreiro, o campeão; liberte-se e venha cuidar daqueles que realmente precisam de você!
O monstro virou-se para Hugh com uma fome voraz. Sua mão negra transformou-se em uma lança e ele veio cercado de ódio, perfurou o peito de Hugh, atravessou até o outro lado e o prendeu no ar. O velho cuspiu sangue, sua boina caiu e seu cachecol foi levado pelo vento. A cor vermelha agora cobria sua barba e a camisa da mesma cor.
Num gesto desesperado, ele segurou na cabeça do monstro e causou uma explosão de fogo tão grande que a terra tremeu. O monstro berrou, contorcendo-se até perder totalmente o controle e desaparecer no escuro, deixando para trás apenas um frágil e indefeso humano.

iii

Hayley despertou com o céu cinzento e o sereno em seu rosto. Não sabia quantos dias estivera desacordada, ou teriam se passado apenas algumas horas? Ao seu lado via o que restou da pequena e tão adorável casa onde fora acolhida, além de Hugh Burnout envolto em uma poça de sangue para seu desespero.
— O q-que aconteceu aqui? — berrou a feneca, correndo para socorrê-lo. — Senhor Hugh, senhor Hugh!
Ela tinha tantas lágrimas nos olhos que não conseguia enxergar, tentava utilizar os poderes de cura que vinha aperfeiçoando, mas nem mesmo isso parecia adiantar, o machucado em seu no peito era profundo demais e estava além das habilidades de qualquer curandeiro em Sellure. Não havia nada que pudesse fazer além de prolongar o inevitável.
O velho mal conseguia abrir a boca para dizer alguma coisa, e pela primeira vez ele pareceu sentir frio — um frio mortal. Com a mão trêmula, ele apontou para os destroços da casa e suplicou:
— Caixa... embaixo da cama... por favor.
Hayley compreendeu a mensagem e correu para o local quase irreconhecível. O chão ainda estava quente e suas patinhas ardiam em contato com as brasas deixadas para trás, mas ela localizou a cama onde passara tantas noites quentinhas junto de Peter Lee. Escondido debaixo de duas toras havia uma pequena caixa vermelha, completamente intocada pelo fogo.
Ela correu e trouxe a caixa de volta para Hugh que demonstrou um olhar de alívio por saber que seu objeto mais precioso não fora destruído. Ele ainda tinha dificuldade com as palavras, mas conseguiu formar frases o suficiente para compartilhar seu último desejo.
— Leve... para minha esposa... minhas crianças... todos juntos...
— Sim, sim, com toda certeza eu farei isso — Hayley também se esforçava para conter as lágrimas. Hugh apontou para Lee, que continuava imóvel no chão.
— Diga para ele... ser uma boa pessoa, ouviu...? Ele não é um monstro, é um rapaz bom...  vocês foram como meus filhos, prometam-me que irão realizar seus sonhos... um vai cuidar do outro, e vocês estarão sempre juntos... encontrem a feiticeira, revertam a maldição... tenham uma vida perfeitamente... normal... longe das estranhezas do mundo... longe do perigo...
A voz de Hayley vacilou, e por um breve instante ela quase permitiu que a esperança desaparecesse de dentro de si.
— E se a feiticeira não conseguir?
Hugh sorriu, encarando o céu cinzento.
— Só diga a ela que estarei esperando no Unferis... onde todas as almas se reencontram.
O brilho branco de seu poder de cura desapareceu, escapando por entre suas patinhas felpudas. O corpo de Hugh ficou gelado e não houve mais motivos para rir e nem alegrar-se.
Lee continuou imóvel por várias horas, e Hayley sentiu-se completamente sozinha de novo. Ela tinha apenas uma caixa vermelha em suas mãos, e sua curiosidade pediu que a abrisse: encontrou ali centenas de cartas lacradas das mais diferentes datas. Hugh escrevia para seus filhos havia pelo menos oito anos, mas nunca enviou nenhuma carta para eles por medo de que o rastreassem e descobrissem onde viviam as pessoas mais importantes de sua vida, ou por simplesmente julgar que ainda não era hora. Talvez a hora nunca chegasse.

“Ao meu grande filho.
À minha doce e amada filha.
À minha amorosa e mais do que perfeita esposa, Isadora.”

Desolada, Hayley não ousou abrir nenhuma delas, mas chorou até não poder mais, lágrimas muito além do que qualquer dor física que já sentira até então. Ela esfregava seus olhos como se deles saíssem a própria chuva, e mesmo assim ninguém podia ouvi-la.
Foi naquele dia que Hayley decidiu que seu sonho seria o de nunca mais deixar um amigo ou até mesmo desconhecido sofrer. Seu sonho seria realizar os sonhos dos outros, e ela iria até o fim somente para entregar aquela pequena caixinha ao seu destino, mesmo que aquilo custasse a sua vida.
Quando Lee finalmente abriu os olhos Hayley encheu-se de alívio, pensava que nunca mais os veria, mas dessa vez compreendeu o perigo que representavam os olhos vermelhos. Ele parecia lembrar-se de tudo que fizera, embora não tivesse controle nenhum de seu corpo.
Ela lhe contou que usara um feitiço para que Lee não sentisse dores, mas o rapaz quase perdera o movimento da perna esquerda. Parecia que alguém tinha levado uma parte de si. Lee agora fitava o vazio sem expressão alguma, frustrado consigo mesmo por não ter sido capaz de controlar os monstros que viviam dentro dele, até porque sem uma das pernas nunca mais conseguiria lutar, nunca.
— Hugh Burnout é um idiota por desejar que eu continue batalhando para entrar no Sellureville e ser o maior lutador do mundo, agora faço jus ao título que me deram nos tempos de iniciante: Canhão de Vidro. Bato como ninguém, mas quebro em mil pedaços quando levo uma surra. Esse corpo humano... é uma merda.
— Não se preocupe, você vai aprender a conviver com ele, dentro de seis meses acho que já conseguirá andar, e inclusive....
— Não importa, Hayley — ele a interrompeu. — Não importa mais.
Lee virou a cara e Hayley imaginou que ele deveria estar muito bravo por ela não ter sido capaz de curar Hugh quando ele mais precisou. Os dois ficaram sentados um ao lado do outro no sereno da chuva quando ouviu-se um gemido, e para sua surpresa, Lee tampava o rosto com uma das mãos, envergonhado por não ter sido forte o bastante e impedido as lágrimas de caírem.
— Eu não posso mais. Eu não consigo. Deixei morrer a única pessoa que se preocupava comigo, devia ter sido eu no lugar dele. Não aguento mais essa maldição, Hayley, faça ela parar... Faça ela parar!
Lee apertou seus olhos com tanta força que poderia tê-los estourado ali mesmo se não fosse pela feneca que correu e segurou seu rosto. Era a primeira vez que eles ficavam tão perto um do outro, Lee podia enxergar todos os detalhes e a pelagem cor de areia dela, mas os olhos, por algum motivo, ainda pareciam ser os olhos de uma humana.
— Pare de dizer bobagens, Peter Lee! Seu mestre não viveu o suficiente para dizer suas últimas palavras a você, mas ele as passou para mim: Você não é um monstro, você é um bom rapaz, e vai realizar todos os seus sonhos, está me ouvindo? Você será eternamente responsável por mim, e eu serei por você. Nós dois vamos enfrentar isso juntos, e nós vamos vencer, porque todos nesta terra são vencedores!
Após erguer a voz o mais alto que pôde, Hayley sentou-se no chão e voltou a chorar.
— Eu achei que ao seu lado eu poderia estar segura, mas no fim das contas eu só trouxe azar e consequências... Me desculpe, nem sei direito o que estou dizendo!
Hayley estava tão imersa em seu próprio lamento que não reparou quando Lee arrastou-se para seu lado e a abraçou. Sentado, eles ficavam quase da mesma altura. A feneca chorava como gente, ambos perderam alguém muito estimado, mas tinham de ser fortes o bastante para continuar lutando.
— Eu não quero passar por isso nunca mais — suplicou Hayley, aninhando-se em seus braços. — Eu nunca mais quero perder alguém...
Lee preferia ficar quieto, mas sabia que precisava dizer algo.
— Não vai — foi a primeira promessa que lhe veio à mente, e ele odiava fazer promessas. — Eu não vou deixar. Desculpe por me desesperar.
Os dois enterram Hugh ali mesmo, próximo às cinzas da casa destruída, onde era seu lar. A fumaça negra se extinguira, o vento varrera muitas das lembranças, deixando para trás apenas as consequências. Quando Lee se pegou pensando no “Para Sempre” de Wendy, nunca imaginou que acabaria preso a alguém por obrigação, sendo que na realidade cuidar de Hayley era como adotá-la como sua outra cara metade, alguém que entre tantas incertezas e dificuldades na vida, encontrou aquele que tinha a mesma vontade de vencer e continuar seguindo em frente.
— Ei, Lee — falou Hayley. — Meus livros de contos de fada estavam todos ali dentro.
— Pois é. Acho que agora não estão mais.
— Um dia vou tentar escrever uma história, cheia de cavaleiros e heróis, monstros e dragões, amor e sexo, e, principalmente, finais felizes. Alguém precisa de um final feliz nessa vida.
Lee deu um sorriso de canto sem mostrar o dentes, descansando a cabeça na parede de pedras entrepostas e observando o céu cinzento e frio que por um instante pareceu-lhe a única lembrança que tinha dos dias claros e quentes do verão.

sexta-feira, 19 de agosto de 2016

O Passado dos Personagens - Lee e Hayley (Parte 2)

Original image by: EllaWilliams

Não passava das seis da manhã quando um estranho entrou na padaria, encapuzado e de óculos escuros.  Olhou para um lado e depois para o outro, procurava chamar pouca atenção. A garçonete  muito contra sua vontade  foi atendê-lo, mas não teria demorado tanto se soubesse que ali estava o mais novo campeão dos torneios de luta em Bodoni, detentor do Cinturão Púrpuro.
Ou melhor, até que o conselho decidisse se iriam revogar seu título e sua carreira como lutador.
Peter Lee gostava do sucesso, mas preferia evitar a mídia e preferia ser deixado em paz pelos fãs que o assediavam, Wendy costumava ser a responsável por lidar com suas finanças e também adorava usar do dinheiro das vitórias para comprar presentes. Ele sentou-se discreto e ficou algum tempo brincando com os palitos de dente, não demorou muito para um velho senhor de boina também entrar com um jornal debaixo do braço, acompanhando-o até a mesa.
— Por favor, quero um café bem quente, o mais quente que conseguirem, quase fervendo; o outro pode ser normal e com açúcar. Para acompanhar algumas batatas fritas e quatro hambúrgueres.
A garçonete fez uma cara estranha para os dois, mas anotou os pedidos.
          — É que ele está em fase de crescimento — comentou o velho, piscando para o rapaz ao seu lado.
O campeão ficou o tempo inteiro silêncio, pensando nos acontecimentos da noite passada e em como sua vida iria diferir a partir de agora. A garçonete logo voltou com os pedidos, Hugh deu uma pitada no café e reclamou que ainda não estava quente o suficiente, mas não pediu que trocassem.
— Se eu não te conhecesse, jamais diria que por baixo dessa montanha de músculos existe um cara sensível, carinhoso, e que gosta de café com bastante açúcar e lê livrinhos de romance — Hugh falou entre um sorriso brincalhão e Lee deu de ombros, já habituado com a brincadeira.
— Vá se ferrar — ele tomou o café só depois de se assegurar de que estava bem doce, logo partindo para o primeiro hamburguer. — E então... O que fazemos agora?
Os dois respiraram bem fundo.
— Sinceramente, ainda não sei. E pensei nisso a noite toda — respondeu Hugh. — Mas tenho algumas informações que talvez lhe sejam úteis, embora não seja necessariamente o que você precise ouvir num momento como esse.
— Já estou ferrado mesmo — resmungou Peter Lee, esticando os braços no encosto de seu assento. — Pode mandar.
— Pois bem. Você vai morrer.
— Conte-me algo que ainda não sei.
— O que quero dizer é que você pode morrer... agora!
Hught Burnout bateu na mesa com força, assustando duas senhoras que compravam alguns pãezinhos na recepção. Até mesmo Peter Lee não esperava por um susto como aquele, nunca se acostumara às metodologias de seu mestre Hugh que adorava surpreendê-lo e agora ria como uma criança pentelha de quarenta anos de idade.
— Desculpe, só estou tentando quebrar um pouco gelo. Tanto é que meu elemento é o fogo, entendeu?
— Sem trocadilhos.
— Estou rindo, mas não estou brincando, filho. Os amaldiçoados pelos olhos vermelhos podem morrer a qualquer instante, seja dormindo ou no meio de uma refeição, e sem motivos aparentes. Eles simplesmente caem e... morrem, como se sua vida tivesse sido completamente drenada. E isso pode demorar meses, anos, ou até uma vida inteira; mas também, quem sabe até alguns poucos segundos.
Peter Lee brincava com sua xícara, refletindo sobre as palavras do homem.
— Então como foi que eu consegui essa... coisa? Eu herdei de família?
— Não, não. Ninguém sabe o que é ao certo a maldição, ela assola muitas pessoas que vão e voltam vivas da guerra, e poucos vivem o bastante para contar como foi a experiência. Mas é notável que você tenha se tornado mais agressivo, um reflexo de suas ações na luta contra Ronald Rollout e seu desencontro com Wendy na saída há alguns meses — explicou-lhe seu mestre. — Você está perdendo o controle e não percebe.
— Eu não estou perdendo o controle.
— Está sim.
Num reflexo ligeiro, Peter Lee apertou seu punho com força e seu mentor percebeu.
— Está vendo? O que pretendia fazer em seguida, me bater?
— Este sou eu naturalmente, sou impaciente e não gosto de ser contrariado, não tem nada a ver com uma doença que aparentemente contraí de um dia para o outro.
Hugh massageava suas pálpebras, buscando a paciência que já tivera algum dia.
— Nós vamos dar um jeito. Até lá, trate de ficar longe dos holofotes por algum tempo. Vou lhe dar a chave de casa para que você se tranque lá dentro, leia algumas daquelas histórias chatas de romance que só você gosta, tire um tempo para pescar, sentir o vento e olhar a grama. Sei que vai ser um desafio intenso para um cara estressado como você, mas acha que consegue superá-lo?
— Posso quebrar algumas paredes se eu ficar quieto tempo demais, mas traga o meu saco de pancadas que está na academia e acho que eu me resolvo.
— Vou te trazer alguns livros, é a única coisa que te faz ficar quieto — Hugh sorriu, beliscando algumas batatinhas. — Preciso que você seja forte agora, ouviu? Não se pode vencer essa batalha. — ele respirou fundo e relaxou o corpo sobre o sofá acolchoado da padaria. — Receio que não haja muito o que fazer, mas farei o possível para prolongar a disputa.
— O que você está querendo dizer?
— Na última noite encontrei-me com um conhecido do exército para entender mais sobre a maldição. Ele me contou o que eu precisava confirmar. Não existe cura ao certo, mas para tudo nessa vida damos um jeito. Os amaldiçoados vivem o resto de seus dias como pessoas normais, não sentem dor alguma e não há sintomas, mas que quando você julgar que tudo anda bem demais, é possível que não acorde para ver o sol nascer. É como se ela se alimentasse de seus bons momentos, se tudo andar bem demais... este pode ser o seu último.
Lee já não conseguia ouvir com clareza todas aquelas explicações exaustivas e sem fundamentos de seu mestre. Passara a noite em claro, Hugh Burnout era um homem inteligente, mas claramente não sabia do que falava, era apenas um velho dando palpites em algo que ele não compreendia muito bem. Precisou pedir mais um café, e dessa vez decidiu saborear melhor o seu salgado de queijo como se fosse o último, porque talvez fosse mesmo. Sentia medo, raiva e vontade de chorar ao mesmo tepo; uma mistura angustiante que não saberia nem explicar o que era. Era tão injusto.
— Então é isso. Acabou. — Lee murmurou, exausto só de ouvir. Hugh meneou a cabeça.
— Pare de dizer bobagens. Você ainda tem um sonho para realizar. Sellureville acontece todos os anos, e você foi o melhor da sua temporada, receberá um convite com toda certeza independente de ter um título e um cinturão ou não. Se voltássemos a treinar como antes, tenho certeza que conseguirá controlar suas vontades, e...
— Mestre — Lee ergueu a voz, cruzando os braços na mesa. — Não dá. Não dá mesmo. Provavelmente eles irão revogar o meu título, e eu serei caçado como um... monstro. Não sei se consigo encarar de novo a Wendy me olhando daquela forma...
— Com se tivesse medo de você?
Lee fez uma pausa, respirou fundo e concordou com a cabeça.
— De herói para vilão. Que dia, hein?
— E pretende se esconder por conta disso? — disse Hugh, pegando algumas batatas fritas de seu prato. — Está vendo essas coisinhas deliciosamente apetitosas? São tão boas que vicia. Eu me lembro de quando você apareceu na academia com aquelas porcarias de “pílulas mágicas” que diziam torna-lo mais forte. Você ainda não tinha nem quinze anos. Eu lhe respondi: Filho, se vai treinar comigo, vai seguir os meus treinos. Aquelas pílulas eram drogas, aquilo poderia ter acabado com sua carreira e, pior ainda, com você! Mas aqui está um garoto forte e saudável. Alguma vez deixei de cuidar do meu garoto?
Lee negou com a cabeça.
— Já que posso morrer a qualquer instante, preciso saber de uma coisa. Você arrancou a cabeça de um dragão mesmo?
— Eu só fiz isso para proteger meus amigos — Hugh falou com uma risada entre os dentes. — E não tente fazer o mesmo. Você não é um matador sem coração de olhos vermelhos, e apenas a necessidade faz o herói.
Lee riu e concordou com a cabeça. Hugh levou sua mão para a dele, e por instante ele achou estranho outro homem de mãos enrugadas tocá-lo, mas o velho sorria revelando as rugas e as marcas de expressão em seu rosto se tornavam evidentes.
— Deixe isso para o seu velho. Eu vou descobrir uma cura.
— É mais fácil você descobrir qual o segredo daquelas Pérolas Sagradas que você vive falando do que isso. Suas pesquisas nunca rendem em nada!
— Algum dia você deixou de acreditar em mim? Enquanto estivermos vivos, temos tempo para conseguirmos o que eu quisermos — Hugh levantou-se vestiu sua jaqueta, ajeitando a boina na cabeça. — E você, filho, trate de ir para casa e se esconder.
— Então eu sou um criminoso agora?
O velho olhou para trás e umedeceu seus lábios.
— Não. Aos olhos do mundo, você é pior.
Hugh deixou a chave da casa na mesa para que Lee se hospedasse lá enquanto não tivesse para onde ir, tinha de evitar todos os lugares movimentados que frequentava para que os membros do conselho ou do exército não o encontrassem. Hugh já tinha ido embora e Lee estava para fazer o mesmo quando a garçonete o interrompeu e pediu que ele pagasse a conta.
— Aquele velho desgraçado... — murmurou Lee, pedindo outras duas porções de batatas fritas para a viagem.

i

Fazia um frio agradável lá fora, Lee ergueu o gorro da blusa e enfiou as mãos no bolso enquanto caminhava disfarçado entre as pessoas. Era bom ter um tempo para si, sem que ninguém o interceptasse alegando tê-lo visto nas últimas notícias da temporada como uma das celebridades daquele ano. O sol ainda se escondia por trás das nuvens cinzentas, uma brisa leve soprava e toda a cidade era dominada por uma aura tranquila e sonolenta de preguiça. Era um bom dia para ficar em casa e ler um livro, ainda sentia dores desde a última luta, logo não pretendia retomar os treinos tão cedo. Seguia o caminho de sua casa pela estrada de pedras púrpuras, as maiores cidades das províncias de Sellure recebiam nomes pelas cores de suas cidadelas, fortalezas e castelos; tal como o cinturão que conquistara. Agora havia soldados em cada ruela, talvez fosse melhor que nem o vissem treinando, seu futuro como um lutador era incerto. Não se sentia mais um campeão.
Pelo menos enquanto Hugh estivesse fora pesquisando uma cura para a maldição, teria de ficar sozinho, como há muito tempo não ficava. Vivera os últimos meses na casa de Wendy, e não tinha um momento sequer que ela o deixasse a sós. Suas energias estavam esgotadas, e no fundo sentia a necessidade de passar algumas horas apenas com seus pensamentos.
Havia uma ponte que ligava a estrada até fora da cidade onde Hugh morava, porá baixo dela passava um riozinho de águas rasas que desaparecia na curva. Ventava bastante, Lee passava por ali quando notou um estranho movimento vindo debaixo. Havia uma trilha de frutas, restos de comida e pequenos objetos espalhados até a área inferior, imaginou que alguém os teria perdido no caminho, então começou a juntá-los e desceu com tudo que conseguira carregar nos braços.
Debaixo da ponte havia apenas algumas caixas velhas espalhadas contendo objetos sem valor como montes de flechas quebradas, pontas de espada, frutas e livros rasgados. Um dos caixotes — o maior deles — estava escrito com tinta branca escorrida: Loja da Hayley.
— Olá? — Lee chamou, e no primeiro instante que ouviu a voz de um humano, uma estranha criatura felpuda saltou para fora da caixa de orelhas erguidas.
Ela tinha o focinho fino e pelos cor de areia, as patinhas se apoiaram para fora e ela quase caiu tamanha foi a sua empolgação. Lee imaginou tratar-se de uma espécie de gato ou raposa, imaginando o que estaria fazendo em uma cidade grande como Bodoni e por que estaria morando debaixo de uma ponte.
— Oi — falou Lee, ficando de joelhos para acariciar sua cabeça. — Onde está a sua dona?
Sua pelagem era macia, mas a criatura era muito maior do que uma raposa normal, tinha quase a altura de uma criança. Seu corpo era coberto por pelos, e dentro da caixa havia cobertores que ela utilizava para se aquecer no frio. Lee se surpreendeu ao conseguir encará-la nos olhos e perceber que eles pareciam entender perfeitamente cada palavra sua.
— Ela saiu? — perguntou o rapaz, e a raposinha fez que não. Estava conversando com um animal que realmente entendia a língua dos humanos. — Então... você mora aqui sozinha? — Dessa vez ela fez que sim, e com uma das patinhas apontou para o nome pichado em branco na caixa. — Você é a Hayley?
A raposa ergueu as sobrancelhas e sorriu encantada.
— Essas coisas são todas suas? — perguntou Lee, dando uma boa olhada nos arredores. — Bom, o que você vende aqui? Tem alguma coisa que eu poderia comprar para ajuda-la?
A raposa ergueu a pata como se pedisse para que ele esperasse, saltou para fora da caixa e foi correndo até os fundos, trazendo de volta várias maçãs vermelhas e suculentas que ela colhera de uma árvore nas proximidades.
— Uau — Lee olhou para as frutas e forçou um sorriso. — Eu não como maçãs.
A raposa não compreendeu. Voltou para os fundos da ponte e dessa vez trouxe um livro, colocando-o em frente ao rapaz. Tratava-se de um livro para crianças, muito surrado e antigo, e nas imagens das páginas seguintes trazia diversas histórias infantis famosas como a Branca de Neve, Cinderela e a Bela Adormecida.
Hayley abriu o livreto no capítulo em que a Branca de Neve é envenenada pela bruxa má ao comer uma maçã. Lee começava a perceber que aquele animalzinho era mais inteligente e curioso do que imaginara.
— Está insinuando que eu não aceitei sua maçã porque penso que você vai me envenenar? Fica tranquila, eu só não gosto de maçãs mesmo.
Hayley sorriu e fez um sinal com a mão de que estava aliviada.
— Vejo que você gosta de contos de fada — a raposa fez que sim com a cabeça, como se só estivesse no aguardo daquela pergunta.
A raposa correu para os fundos e dessa vez trouxe pelo menos dez livros infantis em uma pilha, colocando-os um em cima do outro. Mostrou ao visitante Chapéuzinho Vermelho e A Bela e a Fera, e cada vez que suas patinhas percorriam as imagens ela soltava um suspiro.
— Esses são seus preferidos, não? — Lee sorriu, e a raposa mostrou como Bela era linda, amável e gostava de livros; enquanto a Fera era uma criatura detestável que todos evitavam.
Lee foi analisando com cuidado os aquela misteriosa criatura que tanto lhe cativara a atenção, era um animal que nunca antes visto, mas diferente de qualquer raça, parecia entender perfeitamente os humanos, o que certamente não era normal mesmo no Reino de Sellure. Poderia ter ficado horas ali e a raposa não terminaria de mostrar tudo que havia em sua lojinha, mas Lee estava cansado e precisava voltar para casa.
— Bem, foi muito divertido conhecê-la. Agora vou andando!
A raposa foi correndo até sua calça e puxou a barra, indicando que ele levasse um dos livros infantis, pelo menos.
— Nossa, obrigado — agradeceu o rapaz, que quando estava para sair foi repreendido pela raposa que lhe esticou um pote de vidro com algumas poucas moedas. — Ah, sim, o pagamento. Quase que esqueço.
Lee ia lhe dar o troco da padaria, mas encontrou mais um punhado de moedas de ouro que deixara no bolso da blusa antes da luta contra Ronald Rollout. Ali havia o suficiente para que a raposinha se alimentasse por um ano inteiro, seus olhos brilharam e ela se enrolou numa das pernas do rapaz em sinal de agradecimento. Lee acariciou sua cabeça e foi embora com o livro debaixo do braço.

ii

Nunca acertava as chaves de primeira, e aquilo já estava começando a irritar. Por que Hugh tinha de andar com cinco chaves se só precisava de uma para entrar em casa? Provavelmente eram de seu antigo lar quando ainda morava com sua esposa em alguma ilha deserta, como certa vez ouvira, e mesmo assim não fazia nenhum sentido.
Quando finalmente conseguiu entrar, um vento abafado soprou pela porta. A última vez que estivera ali devia ser quando recebera a dispensa do exército, desde então nunca achou que precisaria de um lugar para chamar de casa, pois tinha hospedagem garantida em pousadas, hotéis caros e, principalmente, na cama de Wendy.
Olhando com olhos de alguém que vivera do bom e melhor, agora a casa parecia apenas um depósito velho e de espaço limitado. Ae enorme cama de lençóis brancos continuava no lugar, mas o sofá e armários estavam em outra posição, as panelas continuavam sujas na cozinha, e ele poderia jurar que estavam assim desde que fora embora. Hugh era um velho solteirão que nunca tivera aptidão nenhuma com as tarefas de casa. Lee não conhecia muito de sua história, mas acreditava que ele fosse divorciado e por isso acabou indo morar naquelas condições.
Pelo menos era o suficiente para ficar bem e confortável. Havia crescido ali de forma simples, quando perdeu seu pai foi Hugh quem o adotou e o colocou para treinar. Era um refúgio longe dos casarões e hotéis antes das lutas, longe dos quartos luxuosos de Wendy e da comodidade.
Lee saiu para a varanda onde deu de cara com uma rede entre dois pilares que sustentavam a casa. Sua primeira ideia foi deitar ali e balançar até dormir, e quando finalmente fechou os olhos, pensou ter encontrado a mais plena paz.
Porém, a maldição ainda assolava seus pensamentos. Não se sentia diferente, nem agressivo e nem violento. Era o mesmo Peter Lee de sempre, talvez um pouco mais cansado e abatido — e sem Wendy —, mas o mesmo cara de sempre. Precisava acalmar sua mente, pegou o livro infantil que comprara na lojinha da raposa e começou a folhear — acabou-o em menos de cinco minutos, pois só havia imagens em sua maioria, logo não demorou em adormecer.
Não tinha muita noção de quanto tempo se passara até que ouviu alguém tocar a campainha do outro lado da casa. Hugh não poderia ter voltado com informações sobre os olhos vermelhos tão depressa.
Levantou-se e foi atender, mas não havia ninguém, só uma caixa escrita com tinta: “Loja da Hayley”.
— O que aquela criaturinha está tramando...? — murmurou para si mesmo.
Lee fechou a porta e deixou o pacote lá fora. Virou-se por um breve segundo para juntar a bagunça pela casa, mas alguém tocou a campainha de novo e ele teve de ir atender.
A caixa continuava ali, imóvel. Dessa vez decidiu chutá-la de leve para depois abri-la, onde encontrou diversos acessórios, cobertores e uma boneca de pelúcia sem cabeça. O nível de esquisitice beirava as alturas. Lee estava para pegar o pacote e jogá-lo no lixo quando a mesma raposa de antes pulou de trás de um arbusto e parou exatamente em frente à porta.
— D-dá licença, moço...
Sua primeira reação foi arregalar os olhos, depois ele deixou a caixa cair e abriu a boca num sinal de surpresa, puxando a criaturinha para o alto onde pudesse encará-la nos olhos.
— P-por favor, não me coma!
— Você fala? — ele indagou incrédulo, agora conversando com a raposa que tremia no ar.
— Você vai me comer?
— Claro que não — Lee a devolveu para o chão, procurando alguma explicação conveniente para o que estava acontecendo. Sabia que no Reino de Sellure existiam muitas criaturas mágicas com o poder da fala, os geckos eram lagartos humanoides com a capacidade de brandir uma espada e ir para guerra, monstros enormes se comunicavam e eram vistos com frequência nas cidades, mas era a primeira vez que via um animal comum falar.
Mesmo depois de coloca-la no chão, a raposa ainda tremia, fosse de medo ou do frio que fazia lá fora.
— O que é você, e por que está me seguindo?
— Eu não sei, eu não sei! — A raposinha puxou suas enormes orelhas, como se prestes a surtar. — Não me faça perguntas difíceis! Quando você foi até a minha lojinha hoje cedo eu senti que deveria vir agradecê-lo de forma apropriada, ainda mais por ter me dado tanto dinheiro. Seria injusto deixar você pensar que eu era só um animal burro e fofo que nem a maioria, mas é que você foi tão legal comigo, e eu pensei que deveria retribuir contando o meu segredo, e...
Lee ergueu a mão, pedindo para que ela parasse de falar um pouco. Agachou em seus joelhos para ficar na mesma altura e procurou manter a calma.
— Qual é o seu nome? Você é a Hayley mesmo?
— Sou, sim — ela disse, envergonhada. — Eu não tenho dona. Sou um feneco, mas poucos sabem que animal é esse então a maioria pensa que eu sou só uma raposa ou algum outro tipo de aberração que anda sobre duas patas.
Lee concordou com a cabeça, procurando ser compreensivo.
— Então você está aqui porque queria me agradecer.
— Sim... — Hayley juntou suas patinhas, contente.
— Já agradeceu. Hora de ir embora.
Lee estava para voltar para dentro da casa, mas quando olhou para trás e viu a expressão desolada daquele animalzinho perdido soube que teria de fazer alguma coisa.
— Precisa de alguma coisa?
— É que eu pensei que talvez você pudesse me ajudar... — Hayley encolheu-se toda, olhando para os lados. — Por um acaso precisa de uma emprega ou servente? Eu posso limpar e arrumar, também sei cozinhar um pouquinho, talvez você esteja precisando de alguém para realizar essas tarefas mais simples e eu posso me candidatar!
— Não — Lee respondeu de imediato. Um vaso terminou de cair e se espatifar no chão ao seu lado, e ele nem precisou olhar. — Acabo de chegar, e não preciso de ajuda. Chega de empregados, não quero gente me servindo, só quero ficar sozinho.
— M-mas você é cheio da grana — Hayley respondeu, olhando com atenção para o corpo dele. — Se você só me deixar ficar por perto já seria de grande ajuda, então o que acha de...
— Não é não — Lee começou a arrumar as coisas espalhadas da “Loja da Hayley” que mais parecia uma gaveta de brinquedos em seus braços. — É sério, estou bem assim, mas agradeço a preocupação. Não posso contratar os serviços de um animal mágico que nem sei o que é, por um acaso já te registraram em alguma raça, ou você seria uma espécie completamente nova?
— É disso que estou falando! — Hayley berrou. — Eu não sei o que eu sou e nem o que eu fiz, mas preciso muito de ajuda!
Lee aspirou fundo. Nunca resistia a um pedido de socorro, especialmente vindo de uma dama, por mais que Hayley não passasse de uma raposa — ou melhor, feneca. Ele coçou a cabeça e olhou para os lados, só para ter certeza de que ninguém os ouvia.
— Tudo bem, então. Vamos tentar recomeçar. Meu nome é Peter Lee, você já deve ter ouvido falar de mim.
Hayley fez que não com a cabeça.
— Como não? — Lee encostou o braço no batente na porta numa tentativa frustrada de mostrar seus músculos e fazer pose. — Lutador profissional. Dezessete combates, dezessete vitórias por nocaute. Ontem enfrentei Ronald Rollout nas finais do campeonato de Bodoni e saí vitorioso, só falam meu nome na cidade.
— Você luta? Então você é um... lutador — disse Hayley, que até mesmo sendo irônica era divertida. — Dãã, é claro que é, basta olhar para o tamanho desses braços!
Lee arqueou uma das sobrancelhas. Ah, então ela percebeu. E agora estava corando ou era impressão sua?
— Quando aprendeu a falar e entender os humanos?
Hayley olhou para os lados e encontrou um exemplar de "A Bela e a Fera" que trouxera em sua casa. Ela o pegou com cuidado e o entregou nas mãos do homem, depois ficou de pé em sua frente, batendo quase na altura de seu quadril, como se fosse gente.
— Eu estava tentando te falar isso lá na ponte, mas você parecia não entender... Eu fui amaldiçoada.
O rapaz até ajeitou-se para ouvir a história com mais atenção. Por um momento aquela criaturinha tornou-se mais interessante, afinal, agora não havia um único amaldiçoado no recinto.
— Então você nem sempre foi assim?
— Eu era humana, como você. Mas... — Hayley olhou para as próprias patinhas peludas. — Um dia eu acordei e estava nessa forma... Eu acho. Eu não sei o que aconteceu, não sei quem me fez isso, mas desde então alguma coisa têm me perseguido e eu vivo fugindo. É difícil confiar em estranhos, é difícil sobreviver, e então eu encontrei... você.
Lee continuava sério e carrancudo do outro lado.
— E? Vai dizer que você confia em mim como se eu fosse a solução para todos seus problemas?
— É que você parece ser um cara tão legal...
— Só que eu não sou um cara legal — ele disse, sério, e depois não escondeu uma risada abafada —, ou melhor, na maior parte do tempo eu não sou.
— Ninguém consegue ser legal o tempo todo — Hayley ergueu os ombros e também riu. — Digo, a menos que você tenha problemas em ser visto com uma criatura estranha como eu... M-mas eu posso me esconder, posso fingir ser um casaco de pele ou um cachecol no inverno!
— O problema não é você, consegue entender? Sou eu. Eu sou o problema. Eu sou a aberração.
— Não parece.
Lee respirou fundo e retirou os óculos escuros, mostrando seus recém adquiridos olhos vermelhos.
— Uau — Hayley falou, encantada. — Seus olhos são lindos.
— O quê? Não, não. Eles são vermelhos, garota. Não reparou?
— Ah, sim. Você deve gostar de vermelho, né? É lente?
Lee levou a mão até seu rosto. Ela certamente não sabia dos perigos que um olho vermelho representava, e talvez por isso não ligava.
— Tudo bem, acho que nós dois não somos tão diferentes um do outro. Você até pode ficar por um tempo, pelo menos até o inverno passar. Não tem muito espaço, então tente se ajeitar... por aí.
— Sem problemas! — Hayley disse empolgada, virando toda a caixa de papelão no chão de novo e se encaixando dentro dela. — Eu durmo aqui mesmo. Você vai estar por perto?
Lee sorriu e concordou com a cabeça, afinal, não tinha para onde ir mesmo.

O dia se passou tranquilo, na maior parte do tempo Hayley tentava organizar a casa, mas era tão desastrada que mais atrapalhava do que ajudava, obrigando Lee a levantar-se para socorrê-la nas tarefas mais difíceis. Enquanto ela ajudasse nos serviços domésticos, teria alimento e moradia garantidos. As estantes de Hugh tinham livros o suficiente para passar o inverno e entreter-se. Nenhum dos dois esperava sair daquela casa nos próximos meses.
Quando Lee enfim deitou-se, pela primeira vez em muito tempo sentiu-se sozinho. Ainda pensava em Wendy e em outras garotas com quem já compartilhara algumas noites. Ainda no escuro, sentiu algo subir na cama e andar em círculos até estar confortável e enrolar-se perto de sua perna.
— O que está fazendo aí? — Lee perguntou, no escuro.
— Tá frio — respondeu a voz de Hayley.
— Mas você tem pelos, eles não esquentam?
— Mais ou menos. Ainda devo sentir algumas coisas de quando era humana.
Os dois ficaram em silêncio por alguns minutos, apenas ouvindo o barulho do vento que soprava por entre as frestas da janela.
— Como foi que isso aconteceu? — Lee enfim perguntou. — Digo, quem a amaldiçoou?
— Eu juro que não sei. Um dia acordei e estava nessa forma de aberração... Desde então tenho sido perseguida.
— Por quem?
— Pelo Lobo.
Lee quis rir ao ouvir aquilo. No fundo Hayley deveria ser apenas uma criança carente que ainda vivia seus contos de fada. Ela era a Chapeuzinho Vermelho sendo perseguida pelo Lobo Mau, e seu papel era o do Caçador. Por algum motivo Hayley sentia-se profundamente segura ao lado dele, e a sensação de oferecer proteção a alguém em necessidade o fez sentir-se um verdadeiro herói.
— Então eu vou te proteger, pode ser?
Lee não pôde enxergar, mas sentiu que agora Hayley sorria como nunca.
— Talvez eu tenha sido uma menina meiga e muito bonita, que nem nos contos de fadas, só que ao inverso; pois eu devo ter feito algo realmente cruel para merecer essa punição.
— Tipo “A Bela e a Fera”?
Hayley concordou.
— É. Tipo “A Bela e a Fera”. Só que eu sou a fera.
— Às vezes a vida nos castiga só para aprendermos a enfrentar as dificuldades que virão pela frente, ou ela espera que tiremos alguma lição dessas experiências. Mas tudo tem um motivo — Lee pensava em sua própria maldição, mas não queria demonstrar dúvida, muito menos em frente à pequena Hayley que tanto carecia de confiança. — Um dia de cada vez, tudo bem?
          Hayley não respondeu, mas continuou a esquentar suas pernas, e aquilo já era o suficiente.


    

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