O Passado dos Personagens - Lesten (Parte 2)
Com o frio
da região de Perpetua começando a intensificar, tornou-se impossível acompanhar
os rastros pela estrada. Lesten estava na fronteira de Constantia com a
província mais gélida do reino, infiltrando-se nas proximidades do antigo
castelo onde os Três Soberanos travaram a Guerra das Espadas há mais de
cinquenta anos. Suas consequências perduravam até os dias de hoje. Os arredores
eram evitados desde então, diziam que uma magia negra tão poderosa assolou
aquela terra que os fantasmas e espíritos de baixo eram vistos com maior
frequência — uma área muitíssimo perigosa, de fato.
A caçada se
prolongava mais do que deveria, mas tinha confiança de que logo encontraria
seus homens e seu irmão. Quando a noite caiu, a temperatura despencou junto e
Lesten viu em seu corpo a necessidade de fazer uma parada. Havia uma cabana
abandonada na encosta da montanha, um bom lugar para recuperar as energias e
descansar. Caso seus anfitriões se recusassem a recebê-lo, poderia usar seu
cargo em nome do exército para fazê-los mudar de ideia, uma técnica que
aprendera com outros oficiais que diziam nunca falhar.
Foi
arrastando a neve no chão até conseguir bater a porta. Ninguém atendeu — estava
aberta. Era um simples depósito com diversos caixotes e baús, provavelmente já
havia sido saqueado há muito tempo. Reuniu toras e pedaços de madeira podre,
precisava de lenha para aquecer-se, os geckos eram muito prejudicados por
mudanças drásticas na temperatura. Vasculhou seu alforje em busca de uma pequena
caixa dourada, retirando dali um simples selo, instrumentos que eram utilizados
em todo o reino e tinham como objetivo oferecer uma pequena parcela de magia
para quem não nascesse com aquele dom. O selo foi atirado na madeira e
imediatamente acendeu as chamas, desta forma, garantindo um pouco do calor que precisava
para seu sangue frio.
Lesten não
queria adormecer, mas estava tão cansado que precisava descansar por algumas
horas ou não iria suportar a caminhada no dia seguinte. Quando se deitou, sentiu o
peso de uma viagem solitária, não tinha mais o irmão para acordá-lo nas
emergências ou amigos que mantivessem a guarda noturna. Pelo menos ainda
contava com seus instintos, só precisava manter os olhos na porta e os ouvidos
atentos a qualquer ruído.
A lua não
podia ser vista no céu nublado. Lesten roncava alto quando três criaturas
moveram alguns dos caixotes e saíram de um alçapão debaixo da terra. O lagarto
estava de costas para eles, monstros foram saindo um por um e começaram a
cerca-lo à espera de alguma ordem. Lesten estivera à espreita, ele
imediatamente saltou para longe a agarrou suas armas, golpeando um deles no
tórax com a espada e acertando o pescoço de outro com sua lança.
As
criaturas se movimentavam aturdidas, mas se quisessem matá-lo, já o teriam
feito. Lesten derrubou quase uma dúzia deles até que fossem necessários cinco
Anons para imobilizar seus braços e pernas. Quando um deles abriu
a porta, viu-se um velho franzino coberto por um capuz enegrecido. O homem caminhou até o gecko que se debatia
ferozmente. Quando ele ergueu o braço em sua direção, Lesten quase arrancou sua
mão fora com uma dentada só, os Sem Rosto tentavam controlá-lo desesperadamente.
O velho pôs uma das mãos sobre o rosto do réptil que se debatia, mas não
parecia querer feri-lo.
— Por que
não me mata logo?
O velho lhe
dirigiu um olhar abatido, retirou o capuz e revelou cabelos grisalhos penteados
para trás acompanhados de rugas da idade.
— Por que
eu haveria de querer ferir um possível aliado? Eu apenas vou precisar marcá-lo,
não vai doer nadinha.
A unha do indicador do velho era tão longa que
mais parecia um bisturi. Ele fez um corte profundo no olho esquerdo de Lesten,
que gritou de dor, despejando o sangue verde. Deveria estar infectada, pois começou a sentir tontura. Sem
compreender o real propósito do velho, ele grunhiu entre os dentes:
— Não
resista, criança. É o melhor que pode fazer por hora.
Lesten ajoelhou-se
no chão, sua visão cada vez mais turva. O velho retirou uma das luvas brancas e,
assim que tocou seu rosto, o corpo do lagarto foi tomado por uma dor latejante
quase instantânea. Ele caiu sem oxigênio, gemendo e com dificuldades em manter
a consciência.
O guerreiro
fechou os olhos e apagou completamente, sem a certeza de que iria acordar.
i
Podia jurar
que estava de frente a um espelho. Provavelmente nunca tinha olhado no rosto de
seu irmão por tanto tempo para saber como eram parecidos.
— Não era
para você ter vindo atrás de mim, seu idiota. Ainda mais sozinho — falou Wester
em sua frente. Estava bem ferido, mas continuava inteiro. Usava um pano
encharcado de vermelho para cobrir o machucado em seu olho esquerdo. Quando
Lesten recobrou a consciência, a discussão já se instaurara:
— Idiota — murmurou enquanto recobrava a consciência. — Idiota... tu que é o idiota. Eu
falei para não sair... eu falei para não tentar bancar... o herói.
Assim que
se deu conta, ali estavam seus homens desaparecidos, todos trancados em uma cela no subsolo, mas nunca antes vira uma obra tão bem
planejada, era como se já estivesse sendo construída há décadas, longe dos
olhos vigilantes dos batedores da superfície.
Lesten
levou a mão até a cabeça e percebeu que sua mão estava suja de sangue
ressecado.
— Vai ficar
uma cicatriz feia — Wester falou. — Pelo menos, acho que agora serei o mais
bonito.
— O que aconteceu aqui, cara? Quem era aquele velhote? Ele me apagou como se
estivesse me controlando por dentro.
— E estava.
Acreditamos que ele seja um tótines, pois detém uma magia de envenenamento, basta tocar uma ferida para que ele tenha total controle sobre nosso corpo. Muitos curandeiros utilizam tais poderes com propósitos medicinais, mas
esse homem a usa de forma perigosa — explicou Wester. — Fomos capturados
e levados até essa cela, mas alguns não resistiram.
Lesten
ainda respirava com dificuldade, sentia que só agora seu corpo começava a se
recuperar dos efeitos do veneno. Antes que compartilhasse mais alguma informação com seus colegas, o
sacerdote negro desceu as escadas de ferro acompanhado de dois monstros
truculentos com a boca costurada para que não falassem mais do que deviam. Os
geckos continuaram sentados, mas Lesten e seu irmão levantaram para
confrontá-lo.
— Por que
nos mantém cativos aqui? — indagou Wester.
— Um inimigo sempre deve ser tratado com sinceridade, para
que então possam vir a servir a sua causa.
O velho
olhou para cada um dos lagartos que continuavam vivos e respirando. Sobraram
apenas sete deles, incluindo os Irmãos do Vento. Os demais morreram na batalha
ou não suportaram seus ferimentos.
— Dizem que
os geckos, quando conquistados pelo coração, são as criaturas mais fiéis desse
mundo. Um humano pode vir a traí-lo por ganância ou poder, mas o gecko será
eternamente entregue à justiça de seus atos. Para ser bem sincero, eu nunca
acreditei que pudesse corromper algum soldado inimigo, mas me surpreendi com os
resultados e fiz boas amizades.
— Eu já
disse que nós jamais trairíamos nosso povo — Wester rugiu. — Eu não sei a quem
você serve, mas saiba que não adianta mais se esconder em buracos, pois nós o
encontraremos e iremos derrota-lo.
— Não sou
apenas um simples mensageiro — ele falou. — Meu nome é Dumag e sou um dos Filhos da Peste. Vocês já devem
ter ouvido falar de meu mestre, é incrível como a fama de um fantasma precedeu até
os maiores vilões da história. Ainda é cedo para que ele se revele, mas estamos
aqui, contaminando tanto corajosos quanto inocentes, proliferando-se como uma doença.
— A Peste
Negra — Wester sibilou entre os dentes.
Não eram
boatos. Em algum lugar daquelas montanhas frias existia mesmo um fantasma que
realizava pequenas investidas às cidades próximas para enfraquecer a capital,
quem sabe até estuda-la. Ele planejava um golpe poderoso e, quando atacasse,
seu abalo seria sentido em todas as capitais de Sellure.
— Vocês
sabem exatamente contra quem lutaram nos últimos anos? Ou estão apenas
cumprindo as obrigações de um rei caduco e seu conselho idiota? Parem de lutar
por um homem enfraquecido, de tentar proteger velhos farsantes sentados
em seus tronos de ouro enquanto os pobres soldados lutam pelo bem da nação.
Meu mestre lhes oferece a redenção, uma segunda chance — Dumag lhes esticou uma
das mãos. — Basta aceitarem nossa clemência.
Lesten
olhou para seus homens, como se esperasse uma resposta por parte deles.
— Se nós
aceitarmos lutar pela Peste Negra, você garante que teremos passagem segura para
fora daqui?
Dumag
sorriu de maneira assustadora no escuro.
— Seguros?
Vocês serão como nossos irmãos.
— Lesten,
não pense em fazer isso, seu... traidor! — gritou Wester.
Um dos
monstros sem face abriu a porta da jaula. Mesmo sem nenhuma arma disponível,
geckos ainda eram perigosos por natureza. Usando o breve momento de descuido de
seu inimigo, Lesten mordeu o ombro de um enquanto seu irmão captou a mensagem e
avançou direto rasgando o pescoço de outro. Dumag afastou-se receoso quando
dois soldados geckos iam em sua direção. Ele tropeçou e foi direto ao chão, mas
quando os répteis preparam-se para ataca-lo o velho arrancou suas luvas rapidamente
e tocou nas feridas no peito dos lagartos. Os dois tremeram e caíram no chão em
questão de segundos, começando a cuspir sangue e afogando-se em uma poça
esverdeada que os matou por dentro.
Agora
restavam apenas cinco membros de seu pelotão, eles formaram um círculo enquanto
Dumag se levantava, olhando para eles sem um pingo de compaixão. Dezenas de
monstros reforçaram sua defesa, espremendo-se na cena apertada. Lesten e Wester
estavam com os ombros encostados, preparados para a morte iminente.
— Quem foi
mais idiota: eu que comecei essa baderna, ou você que me acompanhou?
— Sei lá, é
tanta idiotice que fica difícil decidir.
— Foi mal,
irmão. Você sabe que eu sempre quis sair da sua sombra — Wester admitiu. —
Pela primeira vez na vida, eu queria ser digno da minha medalha de ouro.
— Ô, sua anta, se quisesse tanto uma eu te dava! Todas elas, a parede inteira, medalha
nenhuma valeria mais do que ti!
— Mas é
como você mesmo disse... se não for merecido, não tem valor.
— Não
esquenta, capitão — disse-lhe um de seus companheiros. — Mesmo que nossos nomes
não sejam lembrados ou que esse momento final seja esquecido pela história,
vamos garantir que os espíritos no mundo de baixo comemorem nossa ousadia!
Os três
soldados na retaguarda avançaram, atacando os monstros Sem Face que hesitavam
em avançar. Eles foram capazes de derrubar sete criaturas até serem golpeados
no peito por armas bifurcadas, estavam sem armadura ou proteção alguma, a morte
foi instantânea.
Lesten viu
cada um de seus amigos caírem ao seu redor até que só sobrou apenas ele e seu
irmão.
— Tudo que
lhes pedi foi um pouco de confiança — sibilou Dumag com um sorriso franco.
— Vá à merda
com sua misericórdia!
— Ah, são
tempos difíceis... — lamentou o velho.
Os Irmãos
do Vento atacaram em conjunto, matando os monstros na dianteira que caíram
diante de seus pés sem demonstrar reação. Eram espantalhos, fantoches e
marionetes; podiam ser substituídos com a mesma facilidade que se descarta um
brinquedo indesejado.
Não
importava quantos deles pudessem derrotar, era preciso cortar a cabeça da
serpente.
Mesmo sem
armas, Wester tentou arrancar o pescoço de Dumag uma última vez, mas o velho
segurou seu rosto e ele sentiu sua energia se esvair. Se suas suspeitas
estivessem certas, então Dumag precisava tocar alguma ferida para conseguir
inserir seu veneno dentro de alguém. Lesten agiu depressa e a abocanhou, girando para o lado e arrancando-a fora. Dumag gritou e caiu ajoelhado,
seu próprio sangue jorrando para fora do membro decepado. Num último gesto de pânico, ele ordenou
que todos os monstros batessem em retirada.
— Amaldiçoados sejam! A Peste
Negra vai voltar! — gritou Dumag antes de subir as escadarias correndo na
companhia de seus fantoches que o seguiam com obediência.
Lesten
ajoelhou-se ao lado do seu irmão e o segurou em seus braços. Wester parecia bem
por fora, mas era como se algo o afetasse por dentro, uma hemorragia interna que
matava lentamente e ninguém poderia fazer nada para curá-lo.
— Que
merda, cara, que merda! Olha só pra tu — lamentou o lagarto, aninhando-o
contra seu peito e sentindo que sua pele começava a ficar cada vez mais gélida.
— Tá tudo
bem, cara... — Wester murmurou com a voz tranquila. — Tá tudo bem.
— Como tu pôde ser tão idiota? Eu falei pra não sair, eu falei pra não tentar bancar o
herói!
— Não sei
como você sempre consegue ser tão ousado em suas decisões... olha só... na
primeira vez em que arrisquei, coloquei a vida de todo mundo em risco,
inclusive a sua.
— Pare de
dizer bobagens... eu vou tirar todo mundo daqui — Lesten dizia a si próprio,
vendo os corpos de seus amigos já sem vida ao seu redor.
— Ei, irmão
— disse Wester daquela maneira que lhe passava tanto conforto, sua voz quase
desaparecendo no som abafado da cela. — Desculpa por nunca ter dito isso num
momento mais apropriado, mas eu te amo, cara.
— Vou tirar
a gente daqui... vou salvar todo mundo... vamos ser heróis, nós dois vamos ser
heróis.
Wester
concordou, mesmo que soubesse que ele nunca seria.
— Obrigado
por cuidar de mim... até o fim.
ii
Lesten
descobriu que todos os humanos que desapareceram ou terminaram mortos foram
capturados ou passaram para o lado do inimigo, sofrendo assim uma lavagem
cerebral contra o reino de modo que sentissem orgulho em lutar pelo
inimigo. Ao menos a mensagem fora entregue: a Peste Negra era real.
A
temperatura caíra de maneira brusca, como se a própria natureza anunciasse a
chegada de dias ruins. Naquele dia, Lesten aprendeu que a guerra mostra um
caminho para a segurança, às vezes cria uma possibilidade de que exista a
chance de se escapar da morte; e somente então, ela ataca — arranca todos que
lhe são importantes, tudo que um dia já lutou para conquistar.
Demorou quase
uma semana para voltar para casa. Preparou sozinho o enterro do irmão e dos
compatriotas. A essa altura, a notícia de que a Peste Negra voltou alcançou a
fortaleza e o Conselho entrou em estado de alerta.
Lesten não foi
recebido com comemorações ou medalhas. Seus superiores vieram com acusações de
incapacidade. Teve de entrar no portão sul que era mais próximo, mas os olhos
dos humanos sobre ele o perfuravam como mil navalhas. Naquele dia todas as
raças se misturaram para ver o sobrevivente, o capitão que não conseguiu salvar
seus soldados, o irmão que falhou em proteger sua família.
Pyke, o mais novo chefe da Guarda Real, o
recebeu envolvendo-o com uma capa para protege-lo do frio. e Não achava justo
que ele sofresse tantas acusações.
— Venha,
você já passou por muito nos últimos dias.
Lesten
negou com a cabeça, só precisava descansar um pouco e logo retomaria seus
treinos. Os dois se dirigiam aos dormitórios quando um dos membros do Conselho da
Matiz o impediu na altura da ponte transitória — Temmerius, o mais alto e respeitado representante. Ele vinha seguido por
dezenas de soldados da Guarda Real, ver Pyke deixar sua posição para consolar
um amigo lhe parecera um ultraje.
— Deixe-o! — ordenou Temmerius. — Ele vai se recuperar e aprender a não agir contra as ordens do reino. Quando
estiver melhor, será devidamente punido por suas atitudes.
— Ele
precisa de ajuda psicológica — respondeu Pyke. — Ele precisa do apoio de sua
raça mais do que tudo nessa hora.
— Quem lhe
deu a permissão de me contestar? — indagou Temmerius. — Sair em uma busca atrás
de um caso perdido? Não era do interesse de vocês, agora a Peste Negra
despertou e sua ira cairá sobre nós! — O velho olhava para o lagarto moribundo que mal conseguia se mover. — Você é o responsável
pelas vidas perdidas. Iremos retirar suas medalhas e revogar seus títulos, porque foi incapaz de cumprir com sua palavra ou demonstrar autoridade. Terrível, uma
falha tremenda, um...
Lesten levantou-se,
caminhou contra o homem que não parava de tagarelar e acertou-o na cara,
fazendo o velho cair do outro lado.
Tudo foi
tão rápido que nem mesmo os guardas souberam como reagir, ninguém ousava
levantar um dedo sequer contra um membro do Conselho da Matiz, eles eram
intocáveis, praticamente deuses entre homens. Por uma única atitude tola, Lesten não era mais o herói do povo.
— Ninguém
manda em mim, seu velho de merda.
Temmerius explodiu em ultrajes e difamações. Lesten já sabia o que o aguardava.
— E-excomungado!
Você está oficialmente expulso da Fortaleza da Pedra Azul, pelo resto de sua
vida! Não tem permissão de pisar nessas terras nem sob o consentimento do rei,
nem de seu pai! Você é uma vergonha para todos os geckos de
Sellure, Lesten, maldito seja!
Lesten
voltou para seu quarto e um estranho vazio tomou conta dele. Guardou a lança e
a espada juntas, sabendo que elas estariam exatamente onde as deixou. Olhou o
quadro de medalhas na parede e respirou fundo, depois socou o vidro com força
que se despedaçou em milhões de pedaços. Suas mãos sangravam conforme ele quebrava
sua própria imagem, agarrava as placas redondas sem valor e as atirava longe
pela janela; derrubou a moldura inteira no chão e depois chutou, mordeu e
gritou, como se fosse um animal selvagem. Destruiu colchões e sofás, tudo que
demorara anos para conseguir, quebrou o armário e sua pequena caixa de tesouros
caiu revirada no concreto. Quando reunia seus pertences, encontrou ali sua
primeira medalha de tampinha de garrafa. Ela era a única que ainda valia a pena
guardar.
Decidiu que
levaria a caixa consigo e reuniu mantimentos para uma longa viagem. Quando
estava para sair, Pyke o aguardava na saída.
— Está aqui
para me escoltar para fora da fortaleza? Não se preocupe, chefe, eu sei onde
fica a saída.
Pyke
respirou fundo, observando seu hálito quente formar-se no ar.
— A
armadura tem que ficar.
Lesten olhou
para ele, àquela altura não havia mais raiva para expelir. Lesten tirou toda a
sua roupa até ficar praticamente pelado, estava para entregar as armas também,
mas pelo menos isso Pyke permitiu que ele ficasse, pois precisaria se proteger
no longo caminho que o aguardava.
O gecko
ajeitou seus pertences nas costas e preparou-se para seguir quando ouviu:
— Não foi
culpa sua — disse o chefe da guarda real.
— É. Não
foi. — O lagarto olhou para as luzes da cidade que um dia já foi seu lar. — Mas
você acha justo jogar a culpa em alguém que já está morto?
— A culpa
também não foi do seu irmão — Pyke emendou. — É a guerra. É esse lugar. Não se
pode ter um vislumbre de felicidade que alguém sempre tenta arrancar isso de
nós.
— Eu meio
que já me acostumei, cara. Sério, não precisa se importar comigo. Obrigado por
me treinar e ensinar tudo que sei, mas agora acabou. Não sei nem como alguém
como eu pôde chegar tão longe.
— Aonde
pretende ir?
— Para junto
do meu irmão, talvez.
Pyke o
agarrou pelos ombros, deixando de lado toda sua compostura como chefe da guarda
e agindo como um amigo que realmente se importava.
— Não ouse
tirar sua própria vida, está me ouvindo? Medalhas podem ser reconquistadas,
posições e respeito também, mas a sua vida é única. Não tente, e isso é uma
ordem, minha última ordem — falou Pyke. — Vá para a Ilha dos Geckos, a maior
cidade de nossa espécie na região de Century. Você será bem recebido, tente
recomeçar, mas não vá se meter em confusões. Sua vida pode ter acabado como
soldado, embora a alma de um guerreiro jamais saia de você. Viva em memória de
seu irmão e pelas pessoas que, como eu, ainda lutam por um mundo melhor.
Pyke estufou o peito e elevou o nariz
alongado, unindo as duas pernas e batendo continência para ele. Lesten fez o
mesmo.
— Quando a
guerra terminar, chefe, espero que possamos sair e tomar todas na melhor
taverna da cidade até de madrugada — Lesten tentava sorrir, escondendo suas
tristezas. — Nós vamos contar piadas e histórias de superação, depois vamos rir
e chorar de cada um desses acontecimentos.
— Tempos
melhores ainda estão por vir, meu amigo, tente acreditar.
Quando Lesten
saiu pelos portões já era madrugada, o silêncio reinava, não havia ninguém por
perto para dizer que sentiria sua falta. Olhou uma
última vez para a fortaleza e viu tudo que conhecia ficando para trás.
Atirou no rio sua caixa de medalhas inteira, pois nenhum ouro ou prata lhe trazia mais conforto. No fundo de sua caixa de pertences restou apenas uma — a medalha feita de tampinha de garrafa. Colocou-a no peito como se fosse a maior e mais preciosa conquista de sua vida, e saiu de lá
marchando, embora não soubesse aonde o destino iria leva-lo. Só precisava
continuar com um belo sorriso estampado no rosto para ocultar as dores de seu
passado, assim, ninguém desconfiaria.
A fita
vermelha em sua lança dançava no vento.
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