O Passado dos Personagens - Ralph (Parte 3)
Ralph começou a frequentar aulas de reforço no período da
tarde pLorque seu avanço em algumas matérias era mais lento que o de seus
colegas. Na área de leitura e interpretação de texto, seu desempenho continuava
fraco, mas nem de perto se comparava a matemática. Ralph nunca tinha feito
cálculos ou contas antes, geckos não eram muito bons com números (ele teria uma
agradável surpresa quando descobrisse a física e química).
Sentia-se um estranho por ser o único a ficar na sala após o
meio dia. Todos tiravam um tempo para o almoço e depois saíam para brincar,
alguns voltavam com suas famílias para casa, mas Ralph permanecia na sala de
aula debaixo de sol ou de chuva, preso junto a Srta. Clover por três horas até
que ambos enjoassem da cara um do outro.
Era um dia muito quente de verão em meados de Junho. Clover
passara uma tarefa sobre História contando um pouco sobre a origem de Sellure e
os antigos heróis de guerra, um assunto que Ralph adorava, mas por algum motivo
ele estava ainda mais desatento naquele dia.
Impaciente, Clover fechou o livro e chamou sua atenção.
— O que há de tão interessante lá fora? — perguntou a
professora. — Duvido que a grama seja mais interessante do que eu, ou talvez o
som da brisa seja mais acolhedor do que minha voz. Você está me ouvindo?
Ralph costumava rir daquele tipo de ocasião, mas permaneceu
em silêncio soltando um longo suspiro na sequência.
— Professora, me desculpe por fazer você passar por isso...
Clover olhou para o relógio sobre a lousa e percebeu que já
havia passado das três e meia. Eles nem haviam chegado a discutir a Guerra dos
Heróis e Ralph não fizera avanço nenhum.
— Por que está dizendo isso, querido?
— Eu sei que eu dou trabalho. Sei mesmo. Você poderia estar
descansando na sua casa, mas tem que ficar até tarde tomando conta de mim. Me
desculpe por isso.
Clover foi tomada por uma onda compaixão e pena da criança.
Ele vinha se esforçando muito, mas simplesmente não conseguia acompanhar os
demais. A mulher puxou uma cadeira e sentou-se ao seu lado enquanto abanava o
rosto com um caderno fino.
— Querido, eu escolhi essa profissão porque ensinar é a minha
maior paixão. Não pense que estou aqui por obrigação, porque nem sou remunerada
para isso, mas ensinar é a minha vida! Já não tenho mais idade para sair e me
aventurar pelo mundo, mas faço questão de passar adiante o aprendizado que
adquiri para que vocês tenham essa oportunidade.
— Mas e se eu crescer e me tornar um adulto ruim?
— De pequenos filhotes, as criaturas com
asas se tornam pássaros. É o destino, então não tenha medo de crescer. Você
precisa crescer bem para ser um adulto bom, uma pessoa que sabe qual é sua
verdadeira identidade, superando medos e ultrapassando obstáculos em cada etapa
de sua vida.
Clover fechou o grosso livro de história e trouxe
então um livro menor, mais casual, onde era escrita a mesma história dos
primeiros heróis do mundo e suas façanhas de uma maneira fantasiosa que
inspirava gerações mesmo 100 anos depois. Ela começou a ler em voz alta,
cativando a atenção do menino que enxergou aquela tarde não apenas como um
atraso seu, mas como a oportunidade de estar com quem gosta, feliz, e aprender
sempre mais.
Durante as férias de julho, a Kylie Kalma ficava vazia
e sem cor. Dos professores e funcionários que moravam na escola apenas dois ou
três permaneciam nos arredores, em partes para cuidar dos alunos restantes e em
outros casos porque simplesmente não tinham aonde ir. Aquelas seriam as
primeiras férias de verão que Ralph passaria com seus amigos, mas Claus e
Rebecca voltaram para sua casa em Campos Verdes sob ordem de sua mãe. Bomba foi viajar para a praia
com os pais e Dello também passou seus dias vagos ao lado da família em Constantia.
Os planos do menino foram se desfazendo, de forma
que as férias de verão em uma cidade perigosa e desconhecida já não lhe
parecessem tão interessantes.
Bem, pelo menos
ainda posso explorar os lugares secretos da cidade, como uma aventura,
Ralph pensou, já de malas prontas para aventurar-se além das paredes da Kylie Kalma.
O garoto estava de passagem pelo portão quando
sentiu seus pés mais pesados. Ao olhar para o chão, viu que as raízes das
árvores o impediam de continuar. A própria grama balançava frenética, os caules
das plantas se amarravam em torno de seus tornozelos. Quando pensou em
livrar-se dele, ouviu alguém chama-lo lá de cima:
— Aonde pensa que está indo, mocinho?
Era a Srta. Clover. Seus cotovelos estavam apoiados sobre o
encosto da janela aberta que deveria ser de seu quarto. Ela estava com os
longos cabelos soltos e sem os óculos, o que fez com que o garoto quase não a
reconhecesse.
— Vou andar por aí — falou Ralph.
— Com que permissão? Os alunos que ficam na escola são
totalmente de nossa responsabilidade. E, levando em conta que não há mais
ninguém aqui, eu me torno a responsável por você mais do que nunca — ela falou
tomando um gole de sua xícara de chá.
— É que todos meus amigos foram embora, Srta. Clover...
Por um breve instante ele sentiu-se sozinho e abandonado.
Lembranças de um tempo que desejava esquecer. O verão em Helvetica era muito
quente, mas ocasionalmente tinha pancadas de chuvas vindas de Myriad, Clover
entendia bem o tempo e preferia que o garoto ficasse dentro da escola, em
segurança. O difícil seria mantê-lo ali.
— Venha. Suba aqui. Não se preocupe, não vou passar nenhuma
prova surpresa — disse Clover antes de fechar a janela. — A menos que você não
se comporte direitinho.
Ralph sentiu as plantas e raízes soltarem seus membros. Ele
voltou para a escola e seguiu pela escadaria que dava no corredor dos
professores onde só passara uma ou duas vezes, Claus é quem vivia por ali de
tantas advertências que recebia.
Ele não sabia direito onde Clover morava, mas pôde vê-la de
longe vestindo calças jeans e uma camisa informal. Clover sorriu ao vê-lo e
indicou com a cabeça para ele entrar.
Ralph aproximou-se encabulado, atento à mobília de sua casa.
Era um lugar pequeno, porém agradável e aconchegante. Havia três quartos,
sendo um deles uma suíte; o outro era utilizado como escritório, já a terceira
porta estava fechada. A cozinha era marcada por um enorme caldeirão no centro,
Ralph lembrou-se do mesmo instante das histórias que ouvira dos outros alunos
sobre sua professora ser uma espécie de bruxa.
— Se quiser saber, eu não cozinho crianças ali dentro —
Clover riu, sentando-se em uma poltrona de espreguiçar muito aconchegante. — Eu
preciso do caldeirão para confeccionar selos, mas admito que a presença dele já
espantou muitos caras que tentei conhecer.
Claus e os demais iriam adorar ouvir aquela história. Clover
parecia ser uma mulher muito solitária. Um radinho de canto estava ligado em
uma rádio que tocava músicas antigas, as paredes eram repletas de estantes
suspensas com livros de todos os tipos e matéria, principalmente acadêmicos. Em
dias frios ela ligava a fogueira sem grandes dificuldades utilizando um selo de
fogo, era o local perfeito para acomodar-se no sofá, ler um bom livro e
simplesmente esquecer-se de todos os problemas do mundo.
— Você já almoçou hoje? — perguntou Clover.
Ralph fez que não com a cabeça. Só comera uma maçã antes de
sair, mas estava sem fome.
Quando sua professora levantou-se e começou a cozinhar, ele
descobriu que ela tinha mais habilidades extraordinárias além das mostradas na
aula. Clover era uma mestra na cozinha, e não era fruto de magia. O cheiro
estava delicioso e já lhe dava água na boca, não fazia ideia do que era. Ralph
precisou amargurar por uma longa hora e meia até que Clover saísse de lá
trazendo uma forma com lasanha à bolonhesa recheada de queijo.
— Coma à vontade. Me deleita ver que você tem tanto apetite. Gosto
de cozinhar algo diferente quando recebo visitas, porque às vezes até eu me
enjoo da minha comida — disse a professora.
— Isso está delicioso! É a melhor coisa que eu já me comi,
isso que nem sei o que é — respondeu Ralph.
Clover preparou um terceiro prato, mesmo aparentemente não
havendo ninguém mais na casa.
— Quer conhecer uma bruxa de verdade? — a mulher fez um
mistério proposital.
Ralph a acompanhou e Clover o levou até a terceira porta que
estava sempre fechada. Ao abri-la, ali estava uma velha senhora sentada numa
cadeira de balanço numa sala de madeira com cama, mesa e um lindo carpete
vermelho. Aquela era a mulher humana mais velha que ele já vira, agora entendia
porque Clover ficava tão brava quando a chamavam de senhora. Devia imaginar-se
no lugar de sua avó com mais de cem anos.
— Oi, vovó. Eu trouxe visita — disse Clover, agachando para
conversar com ela enquanto segurava a sua mão.
— Oh, Trevor, você voltou — disse a velhinha, o que causou
certo desconforto em Clover.
— O nome dele não é Trevor, vovó... Esse é o Ralph.
— Que menino bonito você é, Trevor. Muito bonito.
Clover respirou fundo, mas não a contrariou mais. Ela deixou
o pedaço de lasanha na sala e depois saiu.
— Desculpe perguntar, mas quem é Trevor? — perguntou Ralph.
— Querido, você já tomou
milk-shake? Vou fazer um de morango delicioso para nós dois! — Clover respondeu de forma breve e logo emendou o assunto.
Ralph passou a tarde inteira na casa da Srta. Clover. Em
momento algum eles discutiram sobre matérias escolares, sua professora também
evitou dar os puxões de orelha costumeiros. Sua avó não estava muito sã, para
ela qualquer criança que entrasse naquela casa se chamava Trevor. Clover lhe contou que no passado sua avó realmente fora uma feiticeira
muito poderosa, dizia ela que acabara de completar 96
anos, mas a verdade era que já perdera a conta há muito tempo; Dona Hortênsia participara de muitas guerras e sobrevivera para compartilhar sua experiência.
A mãe de Clover falecera muito jovem, deixando sua filha para cuidar da avó com muita dedicação.
— Obrigada por hoje, Ralph. Quero que
saiba como estou feliz de ter alguém aqui. Há tantas histórias que eu gostaria
de compartilhar! — disse Clover, por um instante agindo como uma
garotinha que recebe uma visita apaixonada em sua casa.
Ela passava as férias de verão inteira sozinhas naquela casa.
Às vezes saía com os professores — na realidade já saíra com todos eles, até
com as mulheres — mas nunca encontrou seu par perfeito. Ralph não entendia por
que uma mulher amável e inteligente como ela ainda estava solteira, achava
aquilo uma tremenda injustiça. Se fosse trinta anos mais velhos, ele a pediria
em casamento sem a menor das dúvidas.
— Você sempre quis ser professora?
— Com certeza! Sou apaixonada pelo conhecimento, amo transmiti-lo para os outros — disse Clover. — Estou muito satisfeita com minha atual situação. Não tenho que me
preocupar em cozinhar para um marido preguiçoso e nem cuidar de filhos, tenho muito tempo
para cuidar de mim mesma.
— Você queria ter?
— Um filho? Que Araya me livre, já não basta todos esses alunos sapecas?
— Mas você já gostou de alguém, professora? Tipo, gostar de verdade.
Clover ficou em silêncio, remexendo seu copo vazio enquanto
era levada em uma viagem no tempo. Ela parecia abalada sempre que tocavam
naquele assunto, por isso o evitava.
— Todos nós amamos em algum ponto de nossa vida, querido — disse Clover com a voz carregada de lembranças. — Agora,
vou precisar da sua opinião. Estou pensando em cortar o cabelo bem curto, acha
que vai ficar bonito?
— Acho que você é bonita de qualquer forma.
— Acho que você é bonita de qualquer forma.
Por ser uma
professora da ala infantil, Clover se cansava com facilidade e dormia cedo para
recuperar o sono de longas horas acordada corrigindo provas e preparando o
material da próxima semana. Sua casa era sempre cheia de papéis, às vezes ela
voltava da aula com tinta e glitter por todo o corpo, mas se orgulhava de cada
dia concluído com sucesso.
— Vou tomar um banho, querido, mas fique à vontade para andar
pela casa — disse Clover. — Tem mais milk-shake na
geladeira. Pode tomar tudo.
Ralph foi direto para a geladeira encher o seu copo e Clover
se retirou para seu aposento. O garoto ficou na sala observando os títulos dos
livros nas estantes, mas sem pegar nenhum. Achava-os lindos enfileirados um ao
lado do outro, mas preferia que alguém lesse para ele. Seu campo de visão foi
disperso no instante em que ele avistou um porta retrato encostado a um abajur
no armário. A imagem era de duas crianças, um menino e uma menina. A garota
deveria ser Clover, porque era ruiva e tinha os cabelos bem curtinhos. Ela
parecia muito travessa porque estava sorrindo e lhe faltava um dente, ao seu
lado estava um garoto todo engomadinho e com cabelo penteado, mas ele não soube
dizer quem era.
Clover saiu do banho e uma cortina de fumaça se dissipou no
banheiro. Ela vestia uma camisola laranja e estava com os cabelos molhados; não
vestia sutiã e também não usava maquiagem alguma. Ela parecia real ali, quase
humana, como qualquer outra mulher. Cheia de seus segredos e mistérios.
— Ah... Eu deveria ter tirado esse quadro daí faz muito tempo, mas algo sempre me impede — disse Clover ao perceber que Ralph fitava sua fotografia. — Acho que não vou
mais conseguir esconder essa história de você.
— Essa menina é você quando criança? Nossa, mudou bastante!
— Espero que tenha sido para melhor. Ainda não sei como alguém conseguiu se apaixonar por mim — disse Clover com uma risada graciosa, aproximando-se do quadro para
segurá-lo. Ela o fazia como se fosse algo perigoso, que tentasse evitar, mas
nunca conseguia. Ela lhe mostrou outros dois porta-retratos, um deles era de uma criança. — Esse homem foi o eterno amor da minha vida. E esse garotinho é o Trevor... ele teria a sua idade hoje.
Ralph não soube como respondê-la, mas Clover poupou-lhe
daquele constrangimento.
— Ele gostava de milk-shake tanto quanto você.
— E tem como não gostar? Seria uma injustiça não ter ninguém para provar
sua comida!
Ralph aproximou-se dela e a abraçou com carinho. Clover
ruborizou tanto que esqueceu-se completamente do que estava para dizer.
— Eu te adoro, professora. Obrigado por tomar conta de mim e
meus amigos.
A mulher riu e acariciou a cabeça do garoto de maneira
amável. Ralph não se lembrava de sua mãe humana, mas achava que Clover era o
mais próximo de como uma deveria ser. Humanos e geckos agiam de maneiras
diferentes e demonstravam afeto de formas completamente apostas, mas ele amava
os dois lados com a mesma intensidade.
— Sou agraciada por ter alunos tão especiais que nunca me
deixam para baixo. Eu não trocaria essa vida por nada.
i
As férias de verão passaram como num sopro. Logo a Kylie Kalma estava cheia de novo, Ralph passara tanto tempo longe de seu dormitório que já
começara a sentir saudade. Durante o dia, deliciava-se com os pratos
apetitosos da Srta. Clover, aprendeu também
a fabricar selos em segredo e voltou para casa com um selo com sabor de morango
para comer quando quisesse.
O fim do ano se aproximava e logo a temperatura diminuía. O
frio constante de Perpetua se alastrava pela região e a temperatura beirava os
cinco graus de madrugada, todos se vestiam e se agasalhavam muito bem. Clover
concentrou-se na geografia de Sellure e ensinou cada detalhe sobre as oito
províncias do reino, desde o clima tropical em Myriad até as misteriosas
neblinas que se formavam no norte, em Bodoni.
Era uma sexta-feira à noite quando os meninos voltavam para o
dormitório para se divertirem com jogo de tabuleiro que os pais de Bomba lhe
deram. Claus percebeu que havia certo movimento próximo à cozinha, por isso
decidiram investigar. Ao se dirigirem para o local, encontraram diversos selos
misteriosamente colados nas paredes.
— O que está acontecendo aqui? — perguntou Dello, prestes a
tocar o selo quando Ralph subitamente o puxou e o impediu de cometer um grave
erro. Nos últimos dias com Clover aprendera muito bem a identificar e entender
como aquele tipo de magia funcionava.
— É melhor tomar cuidado! Se tocarmos num selo, ele pode
imediatamente ser ativado. Precisamos primeiro identificar do que se trata.
— E o que seria esse símbolo, uma poça d’água? Pela
quantidade de selos nas paredes, parece até que estão se preparando uma
inundação — falou Bomba.
— O símbolo de água é diferente, cara, é uma gota... —
concluiu Claus. — Isso aqui parece tinta.
O som de passos foi ouvido no corredor de forma que os jovens
imediatamente se escondessem entre o balcão e a dispensa de mantimentos. Nefele
estava ali com as outras veteranas, elas usavam selos de luz como lanternas
para se locomoverem no escuro em silêncio e pareciam planejar algo.
— Cara, se envolver com essas meninas é furada, vamos dar o
fora logo daqui! — alertou Bomba.
— O que elas estão fazendo? Isso me cheira a trote, e olha
que sou um veterano nisso também — falou Claus.
A conversa cessou no instante em que a porta da dispensa foi
aberta e uma luz cegou seus olhos por um breve instante. Nefele ouvira os
murmúrios e estava certa em suspeitar que estava sendo vigiada. Não poderia
haver cúmplices nem denúncias de seus atos.
— Vejam só o que temos aqui, meninas — disse Nefele num ar
autoritário. Ela ainda nem havia começado a jogar pra valer, mas já ganhara o
prêmio final.
— Esses não são os alunos da Srta. Clover? — perguntou outra
garota. — Céus, eu odiava aquela mulher.
Ralph sentiu uma pulsação de raiva quando a ouviu falar
daquela maneira de sua professora. Nefele puxou-os com força para fora,
planejando o que fazer com os quatro pequenos invasores.
— Estamos planejando algo grande aqui e não pode haver
interferência — alertou-lhes Nefele.
— Que isso, Neffie... A gente já tava de saída, né não,
galera? — murmurou Dello, assustado.
— O que exatamente vocês estão planejando fazer aqui? — Claus
se intrometeu.
— A maior festa que a Kalma já viu! — respondeu Nefele. —
Estamos a um mês preparando selos em segredo, tivemos aulas com sua professora
e ela nos ensinou alguns esquemas. Nós produzimos selos de tinta, confete,
arroz e até fogos de artifício. Fala sério, não se acha um desses com tanta
facilidade!
— Agora vamos passar a madrugada camuflando tudo nas paredes do
refeitório, e amanhã bem cedo, quando todos ainda acordarem, sejam pegos pela surpresa preparada por nós! Haverá tinta por toda parte, será o melhor trote da história! — disse uma menina loira. — Vamos nos
formar no fim do ano e depois seremos encaminhadas para as academias de
treinamento no Bosque Peridota. Temos que aproveitar ao máximo para deixar nossa marca aqui.
— Isso é tão idiota — disse Claus entre os dentes. — Sério
que cinco garotas como vocês só conseguiram pensar em um plano bobo desses? Me dê três dias para bolar algo épico
— Quem você pensa que é para falar assim, moleque?
Nefele aproximou-se de Claus e puxou seu braço, arrancando
uma das luvas do garoto por acidente. Ela soltou um grito tão alto que todos se
assustaram, suas amigas ficaram paralisadas com o que viram. Claus tinha apenas
quatro dedos, eram esguios e tortos como os de um lagarto, com unhas pontiagudas
e escamas. Claus cerrou o punho e tentou escondê-la por baixo da camisa, mas
todos já haviam visto o que ele escondia, mesmo no escuro.
O som de passos apressados se aproximando eram ouvidos da
sala dos professores. Não seria nada adequado para as veteranas serem retidas
em seu último mês na escola, nem dava para imaginar o problema que isso
causaria além dos atrasos que eram terrivelmente mal vistos por familiares.
— M-me perdoe — Neffie gaguejou ainda incrédula com o que
vira. — Eu não imaginava que...
— Só vai embora! — respondeu Claus com preocupação. Ele tentava
não ser rude, mas queria desesperadamente sumir dali e não pretendia sacanear
com a vida de ninguém.
Nefele e suas amigas desapareceram pelos fundos no instante
em que três professores chegaram, o professor de matemática estava sem camisa e
Clover estava vestida com um pijama de flanela, pantufas e bobes na cabeça
ruivo para deixar seus cabelos cacheados. Teria sido uma cena cômica se todos
não parecessem tão preocupados e eufóricos.
— O que os senhores pensam que estão fazendo na cozinha? —
perguntou o professor sarado. Agora Ralph entendia por que Rebecca e todas as
alunas da sala iam bem na matéria dele.
— Estávamos só... querendo fazer um lanchinho em segredo —
respondeu Ralph, o pior mentiroso da história.
— Pode crer. Acha que é fácil manter esse corpinho de sereia?
— Bomba acariciou sua barriga.
Clover não se distraiu com a conversa fiada das crianças. Atentou-se
a Claus que estava com um semblante péssimo, mais silencioso que o de costume e
com a mão pressionada contra o peito. Ela imediatamente compreendeu o que
estava acontecendo, por isso logo dispensou os outros dois professores.
— São meus alunos. Deixe que eu cuido deles.
Clover convidou os quatro para a sua casa no andar de cima.
Clover pediu um breve instante para retirar os bobes da cabeça e estar um pouco
mais apresentável, vestiu apenas um roupão por cima do pijama e foi logo para a
cozinha preparar quatro xícaras com chocolate quente. Ela acendeu a lareira
porque fazia frio e sentou-se em sua poltrona grande e macia, pedindo que os
três ficassem de pé em sua frente e começassem a explicação.
— Podem começar — ela falou como se começasse um
interrogatório, mas ninguém queria denunciar o culpado ou entregar tudo que
acontecera, nem mesmo Ralph. — Eu sei que vocês não estão envolvidos nessa
história. Quem foi?
— Ninguém, senhora — respondeu Ralph. — Foi só um acidente.
Cover tentou sorrir. Admirava o fato deles não quererem
entregar os culpados, embora já tivesse suspeitas.
— Uma porção de selos mágicos presos nas paredes e eu sequer
ensinei essa matéria para a turma de vocês. Com exceção de Ralph, não acredito
que alguém aqui seja capaz de confeccionar algo. Mas não entraremos em
detalhes, o importante é que impedimos um belo susto. A equipe de faxina os
agradecerá de coração.
Os garotos continuavam quietos. Talvez o chocolate quente
estivesse bom demais, ou algo ainda os impedia de falar.
— Vejo que vocês descobriram o segredo de seu amigo Claus —
comentou Clover.
Ralph não parecia ser o único surpreso com o que viu. Bomba e
Dello também não faziam ideia, Claus era muito bom em guardar segredos mesmo
dos mais próximos.
— Quer contar para eles a sua história, querido?
As quatro crianças se ajeitaram no carpete. Claus estava de
pernas cruzadas e ainda meio receoso, mas tirou suas duas luvas e revelou que
no lugar delas realmente tinha braços e mãos de lagartos, exatamente como os de
um gecko.
— Minha mãe é uma mulher humana e o meu pai é um gecko. Foi
por causa dessa relação que eu e minha irmã surgirmos — ele olhava para as
próprias mãos com nojo de si. — Essas... aberrações. Eu odeio a forma como eu
e minha irmã fomos punidos por decisões idiotas que nem tivemos a oportunidade
de escolher.
— Isso quer dizer que a Rebecca também é assim? — perguntou
Dello.
Claus acenou com a cabeça.
— Minha irmã tem pernas e um rabo de lagarto, por isso ela os
esconde por baixo da saia e da capa. Ela sempre se viu como um monstro, por
isso tem vergonha de garotas e até mesmo de suas amigas mais próximas. Ninguém
pode descobrir o segredo dela. A Rebecca gosta de desenhar bichos estranhos no
seu caderno, porque dessa forma ela se sente parte desse mundo também —
contou-lhes Claus. — Mas, por favor, não contem que vocês sabem ou ela
morreria de vergonha... É por isso que eu odeio geckos, eu odeio meus pais, foi
graças a eles que eu nasci assim.
Ele fez uma pausa e respirou fundo após colocar todas aquelas
confissões para fora.
— Eu só queria ser um garoto normal, nem que seja uma vez na
vida...
Ralph segurou sua mão como na vez do refeitório, mas ao
inverso. A vida toda o garoto sentira a textura de escamas por conta de seus
pais adotivas, sempre fora tocado por mãos como aquelas e não via nada de
errado naquilo.
— Você é o cara mais maneiro que eu conheço, Claus Tudo bem
que não conheço muitos humanos, mas continua sendo o melhor, porque você é único.
Que nem eu. Todos nós temos algo especial, eu sabia que iria encontrar.
— É, cara! Tipo, não é porque você tem garras que nem um
lobisomem que a gente vai parar de gostar de você — respondeu Dello, recebendo
um cutucão do amigo. — Quero dizer, agora ficará mais divertido porque você
também vai ter um apelido: Claws, hm?
— Vocês são os caras mais idiotas que eu conheço — Claus
limpou uma lágrima discreta que rolou por seu rosto. — Mas são os melhores
idiotas do mundo.
— Venham cá, está na hora de um abraço em conjunto — disse Clover,
chamando as quatro crianças. — O que estão esperando? Vocês ainda são jovens,
não precisam ter vergonha de abraçar, é melhor fazerem isso antes que fiquem
velhos e chatos como eu, e aí sintam falta de todas as pessoas que deixaram de
abraçar algum dia.
Ralph foi o primeiro a levantar. Logo Bomba e Dello fizeram o
mesmo, seguidos por Claus que estava meio receoso de tocar em seus amigos agora
que eles sabiam de seu segredo, mas sua professora fez questão de segurá-lo e
demonstrar que não havia nenhum problema com ele.
— Vocês são o meu maior tesouro, sabiam disso? Lembrem-se
que existem muitas pessoas percorrendo caminhos diferentes atrás de seus sonhos,
não importa o quão tolo ou sem esperança isso parecer, nós só precisamos de
algumas palavras que nos façam continuar seguindo. Quero que continuem
unidos nesses longos anos aqui na Kylie Kalma, um deverá cuidar do outro, ouviram
bem? Vocês podem confiar em mim para qualquer coisa. Eu sou sua professora e
vou cuidar de vocês.
Dizem que os tempos de escola passam depressa, e somente anos
após o término é que sentimos a saudade.
Nos cinco anos que se passaram em Kylie Kalma, Ralph ganhou e
perdeu algumas amizades.
Nefele, sua vizinha no Vale do Vento, nunca conseguiu
agradecê-lo por não tê-la dedurado aquele dia. Sentia-se envergonhada
pelo que fizera e prometeu ser uma pessoa melhor quando entrasse na academia, onde
usaria o dinheiro adquirido para ajudar sua mãe no vilarejo.
Bomba acabou deixando seus estudos mais cedo. Seus pais
acharam que ele não estava sendo bem tratado na Kalma, perdera alguns quilinhos após fazer um regime com plantas passado pela Srta. Clover, mas
seus pais quiseram que ele entrasse no exército e por isso o inscreveram na Base Granada. Seus amigos sentiram muita falta das piadas e risadas ao lado dele. Dello também precisou voltar para casa quando recebeu a notícia da morte do pai na
guerra, e ninguém mais teve notícias dele por alguns anos,
Claus e Rebecca retornaram sob ordem de sua mãe, Valentina Copperplate, dona de uma enorme fortuna na região de Helvetica. Ela prometeu tratamentos para que seus filhos se recuperassem de seus “terríveis defeitos”, e passou a educá-los por si mesma.
Antes que as aulas terminassem de fato, Ralph viu-se sozinho
mais uma vez. Ao menos ele ainda tinha sua doce e adorada professora, Clover
foi como uma mãe para ele. Quando Ralph não tinha mais companhia no dormitório,
convidava-o para ficar até tarde em sua biblioteca particular, onde poderia ler
e ouvir algumas histórias contadas por sua avó. Clover não seria capaz de
curá-la de sua dislexia, o garoto continuava disperso na hora de escrever e
passou com a nota mínima em algumas matérias, mas só o fato de vê-lo crescer
saudável e feliz era sua recompensa como professora.
Quando finalmente completou 15 anos, chegou a hora de
partir. Ralph foi encaminhado para a Vila das Pérolas onde começaria os
testes para o exército. De todos os inscritos era quem estava mais ansioso e preparado
para começar — e amava o que fazia, amava as
pessoas, amava a ideia de apegar-se tanto a algo que daria sempre o seu melhor.
— O mundo o aguarda, meu querido — foram as últimas palavras
de sua professora.
— Um dia vou voltar para busca-la e você será parte do meu
time, está bem? Nós vamos mudar o mundo juntos — disse Ralph, que guardou aquela
amizade em seu coração sob sete chaves.
Em sua despedida, a Srta. Clover fez questão de leva-lo até a
estação de trem que iria partir às 13h. Ela acenava com o coração partido de
uma mãe que tem de deixar o filho partir. Ralph passou seus últimos dias na Kylie Kalma junto dela, despediu-se com um beijo na bochecha e disse
o quanto sentiria sua falta.
Finalmente acomodou-se em seu assento e colocou a espada de
madeira do outro lado. Lignum fora muito importante em seu amadurecimento e seu
crescimento como pessoa, agora mais do que nunca compreendia como ela era
especial.
O trem liberou fumaça assim que começou a deslizar pelos
trilhos, deixando para trás lembranças, aprendizados e experiência. Em breve
estaria realizando seu grande sonho de tornar-se um famoso guerreiro, começaria
sua própria história, diferente de todas as outras que ouvira nos livros ou estudara
nas matérias escolares.
Uma história para chamar de sua.
Só digo uma coisa... Raças Híbridas são as melhores! kk
ResponderExcluirEu tenho uma grande ''pancada'' por híbridos... Eu sempre adorei híbridos!
Como eu já disse num comentário algures por aqui, é um tema muito interessante de explorar e um pouco raro de se encontrar em historias de fantasia, é algo considerado diferente e que pode ser encarado de diversas maneiras.
Os Híbridos tanto podem sair de aparência linda e perfeita, ou então realmente mutantes e feios, cheios de defeitos terríveis ao longo do corpo...
Mas o melhor de tudo está nos próprios pais, eles lutaram contra o preconceito da sociedade? Ou simplesmente foi um ''acidente''? Um relacionamento de lutar por amor puro ou uma violação?
E a situação das crianças híbridas? São rejeitadas e sofrem? São mortas? Presas e usadas para experiências? (É algo que pode varias dependendo da Raça dominante e da comunidade onde o Híbrido se encontra)
No caso de Rebecca e Claus, eles próprios odeiam a sua vida, possivelmente excluídos por muitas pessoas que sabem sobre a situação deles. O meu palpite é que as suas historias futuras vão ter relação com a busca da verdadeira identidade, aceitar quem nós próprios somos.
Pode também existir a situação em que a criança não se formou devidamente no útero da mãe e esta acabou com um ''aborto''. Ou então a criança nasceu quase morta e muito fraca e doente, com uma saúde frágil.
Por outro lado os Híbridos podem ganhar força e habilidades de duas raças ao mesmo tempo, se tornando então guerreiros mais únicos e muito mais fortes naturalmente em comparação com os indivíduos das raças originais, assim podem ser considerados superiores em suas capacidades, ou então guerreiros muito perigosos.
Como vê, a situação dos Híbridos pode formar temas muito vastos, personagens lindas e historias mais únicas, é uma questão de pensar bem nas possibilidades que tal situação pode gerar.
Eu adoro trabalhar com as raças Híbridas, por isso vou terminar este comentário com algo estúpido que poucos vão entender mas tem relação com os Híbridos, suas liberdades, direitos e principalmente abortos.
Viva a Rainha Branca!
Oi, Shii. É possível trabalhar algumas ideias bem legais envolvendo híbridos mesmo, geralmente eles são cheios de rancor por terem nascido dessa forma, mas também há o lado que deixa uma mensagem para os leitores refletirem.
ExcluirEu pretendia explorar o Claus e a Rebecca somente no livro 2, mas encontrei uma brecha de falar um pouco mais sobre eles nesses capítulos especiais do blog. É legal falar sobre esses temas mais complexos, você pensa na relação proibida, na forma como o munda receberá essas crianças. São muitos pontos legais a serem trabalhados. Pelo forma como você falou, imagino que também tenha híbridos em Dreamian. Boa sorte com eles :)
Viva a Rainha Branca
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