quarta-feira, 9 de agosto de 2017

O Passado dos Personagens - Lesten (Parte 1)


Seus dedos coçavam e os pés começavam a formigar. Suportar o peso todo daquela armadura não seria problema, mas a ansiedade em ter seu nome chamado a qualquer momento era difícil de aguentar, independente de quantas vezes já estivesse estado ali.
Cinco longas fileiras de soldados se organizavam eretos e com disciplina diante do palco principal do Palácio Central. Lagartos bípedes brandiam espadas, lanças e machados; seus elmos eram perfeitamente desenhados para cobrir o nariz alongado e deixar uma pequena fresta para que os olhos ficassem expostos como dois faróis. Batiam suas armas e equipamentos no chão com euforia, tinham uma forma diferente dos humanos para comemorar suas conquistas, pois aquele era um dia de vitória para os geckos. Lesten tinha motivo de sobra para comemorar mais do que qualquer outro — era uma conquista exclusivamente sua.
O barulho era tremendo e o brado de seus colegas do exército ecoava como um grito de guerra. O silêncio reinou instantâneo quando dois lagartos velhos subiram ao palco, ambos trajados com mantas finas que se estendiam até o chão, sendo seguidos por um porta-bandeira que carregava o símbolo da Fortaleza da Pedra Azul. Após um início de cerimônia chato e maçante, foram feitos anúncios e agradecimentos em nome de todos ali presentes. Finalmente chegou o momento das honrarias. O primeiro deles foi para um gecko muito alto e encorpado com escamas azuladas, seu nome era Pyke. Aplausos foram ouvidos diante de sua entrada, seu cargo já era notavelmente superior ao dos demais e agora ele acabava de ser nomeado chefe da Guarda Real. Recebeu das mãos de seus superiores um elmo com asas na ponta, característica marcante do cargo junto da longa capa azulada com estrelas de prata. Bastava ver uma de longe para saber que ali estava um guerreiro em grande posição de respeito.
Lesten sentiu um dedo cutuca-lo na fileira de trás.
— O próximo é você, irmão.
O lagarto confirmou com a cabeça e respirou fundo.
— E agora, gostaríamos de convidar o soldado Lesten para que venha receber uma medalha por sua bravura e perícia na batalha pela defesa da cidade de Ribravos, estrategicamente posicionada ao leito do rio, colaborando assim para a proteção de nossas mais importantes torres de vigilância.
O estardalhaço foi tamanho que os oficiais tiveram de pedir que os soldados se comportassem, mas era difícil de segurar. Lesten era conhecido e adorado por todos os seus colegas, estava sempre presente nas confraternizações e era o primeiro na linha de frente a avançar e enfrentar o inimigo. Wester não tinha nem de perto a mesma fama, mas era a mente por trás de ótimos planos e estratégias, sua habilidade com uma espada o tornava uma ameaça a ser considerada. Não havia um gecko sequer que não conhecesse os Irmãos do Vento, onde espada e lança se encontravam.
O lagarto estufou o peito, empinou o nariz e foi seguindo pelo corredor que lhe fora aberto. Ainda podia ouvir seu irmão batendo palmas logo capatrás. No caminho, recebia congratulações e tapas fortes na ombreira, répteis por toda a parte comemoravam sua vitória. Estava dando um grande passo em sua carreira.
— Meus parabéns, meu bom amigo — disse-lhe Pyke.
— Obrigado, capitão! — Lesten respondeu convicto, em seguida, murmurou baixinho perto de seu superior: — Só espero que você ainda possa participar de nossas confraternizações, seu lugar na taverna estará sempre reservado.
Terminada a cerimônia, Lesten voltou para o meio da multidão. O palco de apresentações localizava-se na área central da fortaleza onde todos se misturavam. Os geckos treinavam no leste, os humanos no sul, tótines a oeste e monstros no norte. Cada raça limitava-se à zona que lhe fora delimitada, pois nem toda criatura daquele reino gostava de misturar-se. Logo começaria uma cerimônia para os humanos, e aquilo de pouco lhe importava.
Wester o aguardava de braços cruzados, sentado embaixo do arco de pedra na transição entre as cidades. Ele e seu irmão eram muito parecidos, quando inventavam de misturar suas técnicas e armaduras ficava difícil de diferenciá-los no meio de uma luta, era como se fossem um só. Naquele dia, Wester usava uma armadura leve e móvel, além da fita vermelha presa ao braço direito, uma de suas maiores características.
— Bela medalha — falou o mais novo, apontando para o objeto dourado no peitoral da armadura de Lesten.
— Mais uma para a coleção. Já posso encomendar uma estante nova — divertiu-se o lagarto. — Mas, cara, entre nós agora... Tu não achou sacanagem terem te deixado de fora? É sério, quase que faço um discurso para reclamar disso. Qual é, somos os Irmãos do Vento, não se pode presentear um sem levar o outro de brinde.
— Dá um tempo — Wester falou, levantando-se. — Foi você quem fez tudo dessa vez, eu só fiquei na retaguarda. E bolei o plano inteiro.
— Se eu não soubesse que tu estava atrás, eu jamais avançaria.
Os dois irmãos seguiram juntos, desfilando pelas ruas de pedra azul. Soldados acenavam com cumprimentos no caminho, Lesten se sentia como um herói que era.
Ao chegarem aos dormitórios, Wester pegou a espada e seu irmão jogou-lhe sua lança, ambas as armas foram guardadas no pedestal até que seus serviços fossem mais uma vez requisitados. Ocasionalmente, trocavam seus equipamentos, pois não tinham preferência.
Lesten foi para a sala, onde havia um enorme quadro de medalhas na parede, todas perfeitamente protegidas por vidro e envoltas por um tecido vermelho que enaltecia seu brilho dourado. Havia precisamente dezesseis delas ali — agora dezessete —, das mais diferentes missões e tarefas realizadas nos últimos dois anos de serventia ao Reino de Sellure. Se continuasse naquele ritmo, logo uma parede não seria o suficiente.
— E aí, irmão. O que tu acha? — perguntou Lesten.
— Brilhante — respondeu Wester com sinceridade. — Poderia até cegar alguém.
— Tem como não sentir o impacto e a presença que essas coisinhas nos causam? O que tu acha que diferencia um soldado comum de um general do mais alto escalão? São essas medalhas, cara. O peito estufado, a compostura, o sentimento de quem merece estar ali, liderando as pessoas.
— E você acha mesmo que uma medalha é capaz de fazer tudo isso? Não viaja.
— Exatamente! Que parte tu não entendeu? A medalha é uma memória, ela representa a experiência que alguém passou para conquista-la, embutida com todo seu esforço físico e espiritual — Lesten explicou. — E afinal de contas, onde estão as suas?
Wester deu de ombros, insinuando que aquilo não fazia muita diferença.
— Qual é, tu tem vergonha das suas?
— Claro que não. Eu só não vejo motivo para ficar tão fissurado com uma chapa de metal pintada de amarelo. Não preciso deixa-las a mostra para me lembrar dos meus feitos.
Lesten mordiscou a medalha para ver se seus dentes deixariam alguma marca, comprovando assim sua autenticidade.
— Essa é de ouro mesmo. Não é pintada de amarelo.
Wester tentava não demonstrar, mas frequentemente era deixado na sombra do mais velho. Apesar do título “Irmãos do Vento”, somente um deles era o verdadeiro sucesso, a imagem da bravura em forma física, o lendário Lesten. Wester só estava ali para erguê-lo no alto quando conquistassem mais uma vitória.
Lesten decidiu fazer-lhe uma surpresa. Pegou uma caixa de madeira escondida debaixo no armário e a revirou em cima da cama, espalhando uma porção de itens e coisas sem valor para a maioria, mas que para eles era o tesouro mais precioso que poderiam encontrar.
— Eu não acredito que você guardou tudo isso — Wester vasculhava aquelas raridade com o entusiasmo de uma criança. — Caramba, a primeira ponta de flecha que te acertou na perna!
— Aquilo doeu pra porra.
— A primeira garrafa de uísque que tomamos juntos — Wester continuou. — E com assinatura!
— O fóssil que encontramos perto do Monte Rocha Sólida.
— A escama do maior peixe de água-doce do reino.
— O dente de um crocodilo selvagem. Ou será que esse era meu?
Os dois riram, pois agora eram como pesquisadores que fazem uma incrível descoberta.
— Cara, isso é incrível... — falou Wester, não encontrando palavras para definir o quanto aqueles objetos eram importantes para ele. — Mesmo depois de todo esse tempo?
— Quando eu digo que não sou nada sem você, eu não estou mentindo — Lesten forçou um sorriso, não escondia que também adorava a parcela mais peculiar de sua coleção. — Para a maioria, pode parecer apenas um monte de tranqueiras, mas eu sou um colecionador de memórias. Cada um desses itens significa alguma para nós dois. Ah, mas o que eu queria te mostrar mesmo era isso.
Wester reconheceu imediatamente a tampinha de garrafa. Quando ainda eram filhotes, um dia desafiou Lesten a acertar o alvo em uma árvore velha. A pontaria foi perfeita: ao invés da árvore, ele acertou um javali selvagem que passava por perto e garantiu o jantar da família. Wester se viu na obrigação de arranjar alguma forma de retribuir, se seu irmão era tão fissurado por medalhas, então ele fora o responsável.
— É a minha favorita — respondeu Lesten, observando a tampinha contra a luz, como se ela fosse banhada em ouro. — A melhor medalha de todas foi feita com uma tampinha de garrafa.
— E por que não está junto com as outras?
— Ah, sabe como é... Ela ficaria meio deslocada no meio de tantas douradas.
— Sei, sei.

Naquela noite, enquanto jantavam, puderam ouvir alguém na porta. Wester foi atender e deparou-se com Pyke, o mais novo chefe da guarda real. Ele estava trajado em sua armadura completa, vestia o elmo e o manto azulado, carregava também um enorme escudo com o símbolo dos geckos e a lança de prata recém-forjada.
— E então? O que achou?
— Incrível, capitão. Muito elegante.
— Obrigado. Pena que pesa demais, provavelmente porque agora não posso mais ficar no campo de batalha e preciso me concentrar na torre. Acho que vou sentir falta de nossas aventuras — disse Pyke. — O Lesten está?
— Não é como se eu pudesse me livrar dele tão cedo — Wester respondeu com uma risada.
Lesten aprontou-se rapidamente e saiu na companhia de seu superior.
Os dois se afastaram até alcançarem o terceiro andar da torre que dava visão para a ala norte da Fortaleza da Pedra Azul, em direção das montanhas. Aquela era uma das maiores e mais poderosas capitais de Sellure, nela residiam alguns dos melhores guerreiros já treinados, além de ser a morada do Rei e do Conselho da Matiz. Foi o palco central da Guerra das Espadas, um dos marcos da história de Sellure.
— Agora que farei parte da guarda real, minha rotina vai mudar — concluiu Pyke.
Durante anos fora o capitão do pelotão, mas seus soldados vinham ganhando destaque e não poderiam ficar sem um líder agora que fora promovido.
— Vamos sentir tua falta, chefe. A zoeira nas tavernas nos fins de semana nunca mais serão iguais — disse Lesten com uma risada.
— Não fale como se nunca mais fôssemos nos ver. A única diferença é que agora meu dever requer maior responsabilidade, mas continuarei servindo como eterno mentor e amigo.
— Agradeço o voto de confiança. Vamos comemorar qualquer dia desses!
— Pois bem, agora ao que interessa. Eu gostaria de fazer-lhe uma oferta, Lesten, e tenho certeza que não irá me decepcionar. Preciso que assuma meu lugar como capitão no pelotão. Você se tornará responsável por todos seus companheiros.
Seus olhos de lagarto se esbugalharam, estava incrédulo. Recebera honrarias e uma promoção no mesmo dia, em menos de dois anos no exército após ter sido enviado da academia e já alcançava um posto invejável.
— Você é habilidoso tanto com uma espada quanto com a lança. O povo gosta de você porque os faz sentir-se seguros através de bom humor e coragem. Não há ninguém melhor e de maior confiança para assumir meu lugar.
Lesten apoiou os braços no encosto da janela e respirou fundo. Eram muitos elogios vindo de alguém que tanto respeitava. Seu ego já estava mais inflado que o de costume, mas reconhecia que precisaria analisar a situação com cuidado.
 — E quanto ao meu irmão?
Pyke meneou a cabeça.
— Por mais que ambos tentem liderar, você sabe que no fim das contas um sempre acaba por se esforçar mais e merecer o crédito. Wester é um guerreiro ardiloso, mas falta-lhe... ousadia. Ele não arrisca o suficiente — concluiu Pyke, antes de dar aquela noite como encerrada. — Minha oferta é única e exclusivamente para você. Pense a respeito.

i

A semana seguinte começou com outra cerimônia e a experiência repetiu-se: Lesten foi recebido com aplausos — o mais novo capitão dos geckos! Apesar de pensar que seu irmão ficaria amargurado por sua decisão, devia ter se enganado, Wester é quem mais o apoiou e comemorou a vitória.
A primeira decisão de Lesten foi colocar seu irmão como comandante, em sua ausência, era ele o responsável pelas tropas e a ordem. Ainda eram os Irmãos do Vento.
Nas missões que seguiram, Lesten comprovou sua ousadia. Hordas de monstros eram frequentes arredores, suspeitava-se do ressurgimento de uma ameaça nas montanhas ao sul de Constantia. Após o enforcamento de Rudsi no Castelo Escarlate, diziam que um fantasma intitulado Peste Negra seguiu o legado dos Três Soberanos, buscando reacender a chama da guerra. Fosse ele homem, monstro ou fantasma, sabia-se apenas que vinha construindo um exército em algum lugar desconhecido, em completo segredo, tirando o sono dos altos oficiais e do Conselho que precisava exterminar tal ameaça.
Naquele mês, houve uma fatalidade. Cerca de cem soldados humanos que eram transferidos da academia mais próxima foram pegos em uma emboscada e não chegaram ao seu destino, causando discórdia entre o povo a respeito da segurança das bases e dos novatos que sequer começaram o treinamento para a guerra. O grupo desapareceu quando atravessava uma região rochosa próxima ao Lago Fantasma, evitando a floresta onde fora avistada atividade inimiga. Aquela zona era evitada por abrir oportunidades para investidas em sigilo, era impossível dizer o que existia entre a neblina espessa e suas águas profundas.
Um grupo de soldados do pelotão se reuniu numa taverna enquanto discutiam o ocorrido. Wester estava entre eles e não se conformava.
— Se os humanos foram idiotas o bastante para atravessarem aquela área, não me surpreende que tenham caído em uma armadilha — disse um dos soldados. — Eles não foram feitos para escalarem montanhas ou conviverem com a natureza, seu corpo não foi adaptado para isso, só funcionam efetivamente em zonas fechadas!
— Mas nós devemos ajuda-los — retrucou Wester. — Investigar, reunir reforços, pode haver sobreviventes! Sei que não somos da mesma raça e muitas vezes tivemos desavenças com os humanos, mas estamos do mesmo lado nessa guerra, eles precisam de nós!
— Se um lagarto sequer corresse perigo, tenho certeza que todos voltaríamos para ajudar — falou um segundo.
— Eles eram tão jovens, ainda me lembro de quando fui selecionado — ponderou outro, sentindo-se profundamente amargurado. Nunca gostara de humanos, mas também não desejava mal a eles.
Wester bateu na mesa e ficou de pé.
— Vamos reunir nossos melhores homens e patrulhar a área — afirmou com convicção —, tenho certeza que se descobrirmos qualquer pista, será uma ajuda bem vinda. Geckos são ótimos rastreadores, é o nosso trabalho e não somos pegos desprevenidos com tanta facilidade.
— Ninguém vai a lugar algum.
A atenção dos demais integrantes dirigiu-se ao capitão que entrou na taverna e sentou-se sozinho no balcão, pedindo duas canecas de chope. Lesten geralmente era alegre e gentil, adorava entrar chutando a porta e seu primeiro pedido era que aumentassem a música e começassem a cantoria, mas, naquele dia, parecia que o desgaste vinha prevalecendo.
Ele levantou-se, levou uma das canecas até seu irmão e sentou-se ao seu lado.
— É impressão minha ou você estava organizando um ataque, comandante? — Lesten o testou.
— Eu estava apenas comentando os boatos, capitão — respondeu Wester.
— Pelo que eu saiba, nós não recebemos nenhuma ordem de nossos superiores. Esses humanos provavelmente já estão mortos.
Lesten tomava sua bebida quando foi interrompido:
— Você é o superior agora, você decide as coisas. Quando finalmente nos tornamos mais do que meros soldados, viramos capachos do Conselho? Quando foi que o grande Lesten obedeceu a ordens de alguém? Quando foi que começou a tentar falar certo só para passar uma impressão? Quando foi o que meu irmão negou um pedido de socorro dos necessitados?
Lesten olhou bem nos olhos de Wester.
— Minha decisão é que todos vocês parem de discutir essas ideias loucas e voltem para suas casas. Nós não temos nada a tratar com humanos. A diversão terminou.
Era a primeira vez que a confraternização terminava antes da meia noite. Os demais soldados levantaram-se e deixaram a taverna, os dois ficaram a sós. Lesten continuou a beber tranquilamente, fingindo não ver Wester que cerrava os punhos prestes a soltar o que não devia.
— Como pode ser tão egoísta?
— Eu só estou me preocupando com a segurança dos meus homens — respondeu Lesten. — Inclusive a sua.
— Pois parece o oposto! É como se tivesse esquecido que somos irmãos, agindo como um capitão idiota que só gosta de mandar. Cadê as suas medalhas de ouro? Por que não anda com todas elas presas no peito, seu idiota?
Lesten ergueu seu braço, mas acabou por derrubar a caneca de Wester, que agachou no chão para limpar a sujeira. Enquanto esfregava o piso sólido e úmido, o lagarto não pôde deixar de comentar:
— Eu só queria o meu irmão de volta...
Lesten ficou muito triste ao ouvir aquelas palavras, mas também não encontrou uma forma de retribuir.
— Ele tá bem aqui, cara... Tá bem aqui. Pode ser meio difícil para você ver, mas sei que está em algum lugar. Desculpa, parceiro. Só estou tentando fazer o que parece certo.
— Não tem problema. Relaxa. Salvar humanos, que ideia idiota. Eu nem sou um herói.
Wester saiu da taverna, deixando o capitão sozinho com seus pensamentos no silêncio.

Durante a madrugada, Wester provou seu lado mais imaturo e impulsivo — reuniu quinze lagartos de seu grupo que concordaram em segui-lo, eles começariam a rastrear imediatamente os humanos desaparecidos e voltariam quando tivessem alguma posição. Quando Lesten tomou conhecimento do ocorrido, ficou furioso. Inimigos estavam à espreita por toda Constantia, e no momento que mais precisavam de cautela, seu irmão agia de forma imprudente.
— ...mas eu mato aquele desgraçado! Como é que pôde ser tão cabeça dura? — Lesten gritava para quem quisesse ouvir, batendo na mesa e derrubando peças, torres e miniaturas de soldados pelo mapa. Outros dois capitães ficaram em silêncio, mas Pyke conhecia a figura.
— Tente manter a calma por hora — sugeriu Pyke. — Não vá agir com impulso semelhante e fazer alguma besteira. Já basta uma. O Conselho não vai ficar nada contente.
— O Conselho que vá à merda! Eles não ligam pra soldado nenhum. Acha que aqueles velhos de roupa brega se importam com os humanos que morreram? É numa hora como essa que eles vão ter certeza de quem está obedecendo a suas ordens, não duvido nem que isso faça parte de um plano!
— Pare de dizer bobagens, Lesten. Você precisa esfriar a cabeça.
— É. Preciso mesmo.
O lagarto terminou de chutar uma mesa e quebrar uma cadeira quando enfim saiu do alojamento.
— Aonde pensa que vai? — Pyke perguntou.
— Sei lá, esfriar a cabeça, você mesmo falou... Não me procure nos próximos dias.
— Não vá fazer nenhuma besteira.
— Besteira, eu? — Lesten o desafiou com ironia. — Não me faça rir.
Se Wester era conhecido por ser o mais sensato da dupla, então Lesten tinha fama pela ousadia. Nunca ficaria parado, nem esperava que seus superiores liberassem um pequeno grupo que marcharia lentamente em busca de seu irmão para depois voltar sem respostas. Jamais lhe concederiam o aval.
Foi correndo pegar sua lança nos dormitórios quando percebeu que ela não estava lá, provavelmente seu irmão já a levara, por isso teve de ficar com a espada. Dispensou a armadura pesada por uma leve e de fácil manuseio. Não iria representando o exército, mas sim, como um caçador. Estava na hora de colocar suas habilidades e perícias de lagarto para funcionar.
Lesten partiu quando o sol ainda nem tinha nascido. Deixou a Fortaleza da Pedra Azul e cruzou o rio até alcançar a área rochosa onde o ataque ocorreu, preferindo dar a volta até as vias cruzadas que separavam a região de Constantia, Myriad, Helvetica e Perpetua. Farejou o ar e estudou o chão, concluindo que uma tropa de geckos passara por ali. Eles rumaram para o sul.
Procurava manter-se sempre silencioso, quando alcançou uma zona montanhesca onde a temperatura começou a cair e suas habilidades motoras foram prejudicadas.
— Cara, como eu odeio frio — reclamou o lagarto, tendo apenas uma pele de urso que caçara para abrigar-se. Geckos eram conhecidos por ter o sangue frio, lutar em temperaturas quentes ou frias ao extremo afetava, e muito, seu desempenho.
Quando alcançou uma floresta de árvores secas, ouviu certo movimento na estrada. Escondeu-se atrás de rochas cinzentas e estudou o local, notando um grupo de monstros que acampava ali. Era uma espécie que não tinha nome, conhecidos apenas como marionetes ou espantalhos, pois tampavam o rosto com sacos, máscaras ou elmos de ferro que roubavam de suas vítimas. Suas armaduras inteiras eram espólios de guerra, sempre que matavam um inimigo eles vasculhavam seus pertences até encontrar algo de interesse para usar como proteção. Lesten notou que havia muito do material que os geckos utilizavam, desde espadas e escudos até ombreiras rachadas e manchadas de sangue verde; mas sua atenção foi para a fita vermelha que um deles usava preso a uma lança — a lança do seu irmão.
Reagindo aos instintos, Lesten pulou e atacou o pequeno grupo de criaturas. Os monstros foram pegos de surpresa e tentaram revidar, mas falharam miseravelmente. Estavam cansados e aparentemente já tinham sofrido perdas, sem contar que não faziam parte de um exército treinado, tratava-se apenas de um grupo selvagem.
Dez deles não foram páreos para a habilidade de um gecko. Lesten poupou três para um interrogatório.
— Onde conseguiram esses espólios?
O monstro não sabia falar. A maioria não conseguia. Lesten cortou sua garganta lentamente até ele ficar imóvel como um pedaço de madeira. Tais criaturas não sangravam, elas simplesmente se desfaziam como se fossem feitas de palha.
Em seguida foi para o próximo, repetindo a pergunta:
— Onde conseguiram?
O segundo também não soube dizer, ele soltava apenas murmúrios e por isso teve o mesmo destino. Quando chegou ao terceiro, este tentou movimentar sua boca torta com ares de pânico:
— Geckos! Nós enfrentamos. Sacerdote levou. Recompensa. Espólios! Espólios!
Lesten meneou a cabeça, satisfeito com a resposta. Mesmo assim, cortou a cabeça do monstro que se desfez em sua frente.
Antes de partir, recuperou a lança e amarrou com cuidado a fita vermelha do irmão para devolvê-la quando o encontrasse.

  4 comentários:

  1. Eu não sei porquê, esse especial deu-me um profundo sentimento de nostalgia. Talvez devido ao género de enredo ilustrado, era típico em muitos desenhos animados da minha infância. Adorei!

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    1. Hey, Shii! Que bom que gostou, sempre me divirto trabalhando nos especiais do passado dos personagens, é uma boa chance para explorar alguns mistérios do livro sem precisar me preocupar com o número de páginas. Na Parte 2 provavelmente você não terá mais esse sentimento de nostalgia, o Lesten vai acabar se envolvendo em uma situação bem complicada kk

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  2. Gostei bastante meu chapa! Desculpa aí não comentar mais cedo, é que esses dias a internet tava péssima, conectava, abria uma aba e aí travava, aí logo depois de voltar ao normal já era uma semana de provas, que foi chata pacas! Mas eu fui bem e isso é o que importa.

    O que mais achei legal é que tipo, o Lesten era fodão, aparentemente, e depois virou um ***** para os outros, é... Ele foi pego nas pegadinhas da vida...

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    1. Nem se preocupe com a ausência parceiro, eu também estava numa correria louca aqui com mudança e tudo o mais, nunca carreguei tanta caixa kk Acho que até demorei um pouco mais do que gostaria para trazer a Parte 2, mas aqui está, vou ver se corro também pra preparar algumas novidades pro livro. Tô ansioso esperando a resposta de uma editora, acho que agora vai, hein? kkkk

      O Lesten realmente parecia outra pessoa né, de um capitão respeitado para um zé mané encrenqueiro que ninguém quer ter por perto kk Espero trabalhar duro na evolução do personagem, quem sabe o destino e a vida possam tragam alguma reviravolta!

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