Capítulo 5
O céu começava a
tomar um tom alaranjado, salpicado de nuvens branquinhas como algodão doce. Ralph
descansava debaixo de uma árvore em glorioso estado de concentração quando pôde
ver sua amiga passar ali por perto, quase que em transe e sem dar sinal algum
de motivação. Assim que ela passou em sua frente, o jovem a chamou:
— Oi, Auria! Eu queria
falar com você, mas aí encontrei essa sombrinha tão gostosa que acabei ficando
para aproveitar o momento, quer se juntar a mim?
— Não.
— Tudo bem,
então.
Auria continuou
a caminhar sem rumo, mas em um dado ponto parou e olhou para trás. Ralph
continuava debaixo da árvore com as mãos unidas, como se estivesse meditando ou
apenas usufruindo do momento, alheio a tudo que acontecia ao seu redor. Ralph
não tinha nada a ver com seus problemas e, mesmo assim, acabara descontando a
raiva nele.
A garota
sentou-se perto dele, abraçou seus próprios joelhos e cobriu o rosto.
— Eu sou uma pessoa
terrível... — ela enfim lamentou em voz alta.
— Sabe, eu tinha
um besouro de estimação em casa chamado Jujuba, só que ele morreu. Eu também
devo ser uma pessoa terrível por tê-lo deixado morrer.
— Isso não tem
nada a ver com ser uma pessoa ruim.
— Eu poderia ter
soltado ele quando tive a chance... — Ralph voltou a balançar a cabeça com
pesar. — Por ter deixado um ser vivo morrer sob meus cuidados, isso faz de mim
um monstro?
— Você cuidou
dele até o fim, não é culpa sua. Você... tentou.
Ralph deitou-se
na grama e olhou para cima. Auria sentiu-se confortada por aquele ânimo tão
natural, coçou a cabeça de forma encabulada num gesto raro de sua parte e
falou:
— Como pode enxergar
o mundo dessa maneira? Quero dizer, nunca está bravo com ninguém, nunca está
triste por nenhuma decisão errada. Como você faz isso?
— É uma questão
básica de escolher todos os dias, todos os instantes. Se eu ficar bravo, o que
isso mudaria? Eu poderia deixar alguém magoado? Como posso fazer alguém feliz?
Eu apenas escolho.
— Eu descontei
minha raiva em você sem motivos — continuou Auria. — Quando alguém faz algo
terrível, as pessoas costumam ficar bem irritadas.
— Não entendo
por que as pessoas fariam coisas terríveis, mas você nunca praticaria alguma
maldade de forma proposital, não é?
A moça respirou
fundo e também deitou-se no chão.
— Foi mal pela
maneira como eu falei com você agora há pouco.
— Sem problemas
— disse Ralph, mudando de assunto em seguida. — O pôr do sol está bonito, não?
— Romântico
demais para o meu gosto. — Auria deu uma risada de leve.
— Só estou aqui
para armazenar energia para minha pele, preciso de forças para o anoitecer ou
vou morrer de frio. É que nós, geckos, costumamos precisar de bastante calor...
Nosso sangue é frio.
Auria fez uma careta
ao terminar de ouvir aquela conversa sem sentido algum.
— Você é tão estranho
— ela falou.
— Estou só
brincando, sei que não sou um gecko. Pareço bobo, mas nem tanto. Só acho que os
humanos deveriam sorrir mais.
Ela revirou os
olhos.
— Por que se
esforça tanto para ser legal comigo?
— Sei lá, por
que não?
Os dois
continuaram apreciando a vista do alto do penhasco enquanto o sol se punha do
outro lado do horizonte, onde o mar parecia chegar ao seu fim e a Ilha dos
Geckos se erguia, tão cheia de seus mistérios para os humanos que raramente
faziam sua travessia.
— Dois oficiais estavam
hoje na academia — Auria comentou. — Generais Classe A.
— Dois Classe A?
Como é que eu perdi um espetáculo desses?! — gritou Ralph, levantando-se e
gritando de maneira eufórica. — Droga, eles ainda estão lá? Nem sei se terei
outra chance dessas na minha vida!
— Eles foram
embora. Talvez o destino tenha feito você não comparecer. Eu não gostaria que
você tivesse visto a maneira como fracassei... Mesmo que eu tenha demonstrado força
de vontade e determinação, ele me chamou de fraca. Senti vontade de acertar um
soco na cara dele, mas nem isso tive coragem. Tudo que eu queria era seguir o
meu coração, como você faz.
— E por que não
segue? Fala sério, ser humano é muito chato.
Ele sorri bastante, Auria pensou e também riu da situação.
— Não importa se
sou humano, gecko, ou um mero pensamento na mente de alguém que acredita em
mim. Eu também quero ser grande que nem você, não importa o que pensem. Quero
ter poder para mudar o mundo para melhor!
— Você é tão
altruísta, Ralph.
— Não sei o que
isso significa, mas obrigado!
Os dois acabaram
rindo. Auria só conseguia pensar em como teria de passar pelo menos mais um ano
até que tivesse outra oportunidade como aquela. Faria dezoito anos em menos de
um mês, devia ser uma das veteranas mais antigas da academia. Quando pensou que
estava ficando para trás enquanto todos perseguiam seus sonhos, sentiu vontade
de chorar, esticou as mãos para o alto e tentou alcançar o sol, a mesma
sensação de adorar algo e saber que nunca seria capaz de abraçar sua vontade.
— Eu estou presa
aqui — disse Auria com a voz trêmula, vendo a luz escapar por entre seus dedos.
— Presa. Para sempre.
Ralph
levantou-se e olhou para ela.
— Posso soltar
você então?
— Como se você
conseguisse...
— Levanta e
fecha os olhos.
Auria estranhou
a ordem, mas obedeceu. De olhos fechados ela sentiu uma estranha paz em seu
coração, estava com alguém que não ligava dela ser alguém indecisa e sem
habilidade alguma. Ralph parecia enxergar um poder oculto dentro das pessoas, mas
como alguém seria capaz de enxergar dentro de si próprio?
— O que está
fazendo? — Auria perguntou, curiosa.
— É uma
surpresa, não olhe! Espera só mais um pouquinho.
A moça sentiu
algo estranho cair por sobre seus ombros. Uma estranha sensação de refrescância
soprou em sua direção, de liberdade, nunca antes tinha sentido nada parecido. Sentiu
um arrepio na nuca e, ao levar a mão para trás, percebeu que faltava alguma
coisa ali.
— Ralph, o que
você fez?
— Agora você
está livre!
— Ralph, não me
diga que... — ela repetiu, levando a mão para as costas e vendo que suas longas
madeixas não estavam mais no lugar que deveriam. Agora elas cobriam o gramado. —
RALPH!
O garoto
ajoelhou-se em sua frente e começou a enterrar o cabelo num buraco não muito
fundo. Era um gesto simbólico. O coração de Auria começou a bater mais rápido,
não sabia se era de agitação ou de raiva. Alguém havia cortado seu cabelo sem sua autorização — pelo menos se sentia mais
leve.
— Eu vou sair
desse lugar e seguir minha própria aventura — Ralph falou sem tirar os olhos do
chão, terminando de cobrir o buraco com terra. Suas mãos ainda estavam sujas. —
Eu adoraria que você se tornasse o meu braço direito.
Auria ficou em
silêncio por um momento, ainda procurando uma forma de entender o que se
desenrolou em questão de minutos.
— Era só isso
que você planejava? Fugir? Abandonar seus problemas?
— Muito pelo
contrário: transformá-los em oportunidades. Se as pessoas me impedem de seguir
meus sonhos, então vou alcançá-los de outra maneira. Reunirei um grupo com os
guerreiros mais poderosos que existem e você será parte disso.
Antes que Auria
pudesse dizer qualquer coisa, Ralph saíra correndo.
— Vou deixar
você pensar, mas me dê uma resposta amanhã cedinho, tudo bem? Se concordar, eu te
buscarei para nós partirmos o quanto antes, mas eu sei que vai. Meu coração
está dizendo isso.
— Você cortou meu cabelo! — ela gritou alterada.
— Era hora de
mudanças, não?
Não estava em
seus planos abandonar os estudos da noite para o dia e sair em uma aventura sem
retorno previsto. Aquilo nunca havia passado por sua cabeça.
Lembrou-se de que,
na realidade, não tinha como voltar. Um general do alto escalão a rejeitara e
aquela havia sido a oportunidade mais próxima que tivera de sair da academia,
quem diria quando teria outra. Olhou para seus cachos de cabelo no chão e
pensou no que as pessoas diriam, conseguia imaginá-las olhando torto e dizendo pelas
suas costas: vejam só, a garota que não é
excepcional em nada!
Tivera tempo
mais do que o suficiente para escolher um caminho. Ser uma veterana a tornava indecisa
e cheia de dúvidas. Auria estava há três anos presa naquele lugar. Ralph encontrou
a resposta em três dias.
i
Auria não pretendia
comparecer às aulas naquele pacato dia de semana. Odiava pensar no que diriam sobre
sua nova aparência, não se sentia confortável. A Vila das Pérolas não era mais
o seu lar e, dessa vez, não iria esperar outros três anos para tomar alguma
atitude.
Na manhã
seguinte, Ralph não foi visto em nenhum lugar do curso. Auria considerou que
ele pudesse ter ido embora sem ela. Havia perdido o horário de novo — nem se
importava mais, estava acostumada a ser deixada para trás. Tentou infiltrar-se no
dormitório masculino, teve que pedir informações para cinco pessoas diferentes
até que o rapaz alojado na casa nº 7 lhe contasse sobre seu encontro.
— Um garoto de
cabelo vermelho passou aqui faz uns três dias. Tive a impressão de que o vi
tomando sol no telhado mais cedo, mas devo estar ficando louco.
Com as mãos nos
bolsos de sua jaqueta, Auria deu uma volta pelo local sem encontrar nenhum
sinal.
— Ei, novato.
Você ainda está aí?
A casa estava
vazia. Na parede, uma nota confirmava a disponibilidade e o aguardo da chegada do
novo aprendiz chamado Luke Wallers nas próximas semanas.
Sentiria saudade
das esquisitices de Ralph. Sequer tivera a oportunidade de despedir-se. Não
havia nada que pudesse fazer agora, por isso enfiou as mãos nos bolsos e foi
embora.
Quando voltou ao seu alojamento, Auria se deparou com o
silêncio. Jogou a mochila no chão, tirou a jaqueta, os sapatos e ficou apenas
de blusinha regata e calça legging por
conta do calor. Foi direto para o banheiro, olhou-se no espelho e não reconheceu
a garota ali parada.
— Até que não
ficou tão ruim. — Auria sorriu para seu reflexo.
Não havia se acostumado com sua nova aparência, mal se
lembrava da última vez que se sentira tão linda.
Na noite passada ajeitara o corte mal feito que Ralph fizera em seu cabelo,
teve de cortá-lo ainda mais acima dos ombros para evitar que ficasse torto e
repicado, mas o resultado superou suas expectativas. Nunca tentara cortar
porque tinha as irmãs como um espelho, e Lydia insistia na ideia antiquada de
que mulheres de verdade deviam ter o cabelo longo.
Ligou o chuveiro para tomar uma ducha, estava para tirar
suas roupas quando se assustou com um estranho movimento na janela. Ela
apoiou-se em cima do vaso sanitário para olhar e abriu uma pequena fresta da
cortina.
— Eu estava te
esperando para a gente sair em jornada! — Uma voz foi ouvida do lado de fora,
Auria recuou incrédula, surpreendida pelo fato de alguém vê-la em um momento
particular. Teve de se apoiar nas paredes para não ir direto ao chão,
desligando a água com pressa.
— Qual o seu
problema?! O que você está fazendo aí fora?
— Eu estava
precisando de uma toalha sua emprestada.
— Pra quê?
— É que eu ia
usar como capa. Os grandes heróis usam capa — disse Ralph contente, vendo que a
expressão dela não era das mais agradáveis. — Estou brincando, nada de capas...
Você demorou pra acordar, então fiquei protegendo os arredores enquanto descansava.
Está pronta agora?
Auria fechou a cortina
com força.
— Some daqui.
Ralph continuava
do lado de fora, aguardando ansioso o sinal.
— Você não vai
vir? Estamos atrasados.
— Eu nem
confirmei se eu vou — ela respondeu de dentro da casa.
— Não se esqueça
da citação dos velhos sábios: “insanidade é continuar fazendo sempre a mesma
coisa e esperar resultados diferentes”.
A moça sentou-se
sobre a latrina e resmungou algumas palavras, agora desejava que o rapaz tivesse
ido embora mais cedo. Estava confusa. Era difícil tomar decisões que mudariam sua
vida depois de habituar-se, estava há muito tempo presa a uma rotina. Aguardou
até que o barulho do lado de fora tivesse cessado, mas no fundo sabia que Ralph
jamais partiria sem sua companhia.
Analisando os
parâmetros com mais cuidado, o que ela teria a perder se saísse em uma jornada?
Ralph teria alguns conselhos a lhe dar: agir
é sempre melhor do que ficar parado! Embora seguir numa aventura nunca
tivesse sido seu sonho particular, poderia ser uma maneira interessante de sair
de sua zona de conforto.
Auria olhou para
a jaqueta de couro que estava exposta num canto da sala. Adorava usá-la quando
não a obrigavam a vestir saia, estava até um pouco surrada dos dias em que
tentara aventurar-se além das fronteiras de sua casa em Cortina Escarlate
quando era pequena. A jaqueta era uma das poucas lembranças que tinha de suas
irmãs.
Abriu a janela e
deparou-se com Ralph que fazia patrulha em volta da casa junto de sua espada de
madeira. O garoto bateu continência e sorriu à espera da confirmação.
— Pronta?
— Com algumas
condições... Entenda o seguinte: tenho duas irmãs e elas detestariam essa ideia
maluca de sair por aí viajando e abandonar o treinamento. A mais velha se chama
Lydia, ela é uma das figuras mais influentes em toda a Sellure; e a outra, Diana,
trabalha num alto regimento e ficaria preocupada se eu desaparecesse do dia
para a noite alegando sair em uma jornada com alguém que conheci na mesma
semana.
— Legal.
— O que você
faria em meu lugar?
Ralph encarava o
chão enquanto ponderava. Em seguida, respondeu para Auria de forma séria:
— Eu iria me
apressar, porque agora só faltam dez minutos para o navio ir embora.
— Estou em um
sério dilema aqui!
— Os humanos
pensam muito. Deveriam agir e aceitar mais as decisões.
— Que tipo de
criatura persistente você é? — indagou Auria.
— Do tipo dos geckos.
Chatos, irritantes e que não desistem das coisas até o fim.
Auria fechou a
janela com força. Demorou apenas dois minutos para que saísse com uma mochila improvisada
que trazia mantimentos e acessórios pessoais no ombro direito. Levava também a jaqueta
de couro e uma espada de aço guardada na bainha. Ralph demonstrou um enorme
sorriso ao ver a cena.
— Auria, isso é
demais! Uma espada leve para ser carregada com uma mão só, a outra deve ser para
um escudo — presumiu.
— Talvez eu seja
do tipo que aguenta o tranco, que fica na linha de frente para surrar os
inimigos e proteger os que precisam — disse a moça com um sorriso contente ao
ver a reação do companheiro, mas ao mesmo tempo perguntando-se: céus, por que pareço tão animada com isso?
Ignorou seus pensamentos e continuou: — Eu posso ser a defensora da sua equipe.
— Excelente. Este
é um claro sinal do chamado à aventura, primeiro você recusa, só depois você aceita.
Agora vamos, o navio já vai partir!
Auria concordou
com a cabeça, pois compartilhava da emoção.
ii
Havia um navio cargueiro
transportando cargas e mercadorias para a Ilha dos Geckos. Os dois seguiram até
o cais e deixaram os limites de onde os estudantes tinham acesso. Alguns homens
levavam caixotes grandes por meio de uma ponte improvisada. Um tapete de pedaços
de pérolas cobria a costa, eram tantas que mais pareciam pequenos grãos de
areia branca. Ralph esgueirou-se na área coberta e revelou uma escadaria que
dava para os depósitos, devia ter ficado observando o navio nos últimos dias
que estivera na vila. O local era preenchido por containers nos fundos, o que daria um belo esconderijo.
Chamou por Auria
com um gesto. Ela perguntou com uma expressão alterada:
— Nós vamos
entrar como clandestinos?
— Não é
emocionante?
— Você é louco.
— Ela riu antes de concordar que também era. Jogou a mochila pelo alto e deu um
salto habilidoso para dentro do navio.
O som profundo do
apito do cargueiro soou, vapor subiu dando-lhe forças para movimentar-se sem
pressa alguma, assim como os aventureiros que ali se escondiam. Aos poucos a
Vila das Pérolas se tornava um pontinho distante na costa, o marco inicial da
longa aventura que estava prestes a começar.
O mar se
estendia logo adiante deles como um manto azul de calmaria. Nenhuma onda os
atormentava, o sol escaldante brilhava no céu sendo aquela uma das épocas mais
quentes do ano. Ralph e Auria sentiram a leve brisa em seus rostos, deixaram
suas bagagens de lado e desfrutaram o momento como se fossem passageiros de um
luxuoso cruzeiro.
Os dois esconderam-se
atrás de um caixote azul e montaram um acampamento provisório. Quando
alcançassem o limite da Ilha dos Geckos, Ralph começaria a colocar seus planos
em prática.
— Bem, acho que
agora não tem mais volta, né? — murmurou Auria.
— Caso tudo dê
errado, pelo menos você tem um lugar para voltar. Mas não se preocupe, prometo
que voltaremos como pessoas transformadas!
— Eu não sei se
quero mesmo voltar...
Ralph sorriu,
acomodou-se no chão e cruzou as pernas.
— Agora, conte-me
um pouco sobre você. Seu aniversário, seus sonhos, suas qualidades e defeitos,
o que gosta de comer...
— Isto é um
questionário? — Ela riu. — Vamos com calma, eu lhe respondo algumas e depois
também quero saber sobre você. Pois bem, meu nome é Auria Mercer, sou do signo
de Aquário e faço aniversário no dia 30 de Janeiro. Duas qualidades minhas são
que sou independente e justa, dois defeitos são que sou orgulhosa e
imprevisível. Acho que gosto de batatas gratinadas e, quanto aos sonhos, ainda
estou me decidindo... Sua vez.
— Meu nome é
Ralph e eu tenho uma espada de madeira. Sua vez.
— Ei, isso não
vale!
— Tudo bem... — Ele
tossiu e levou a mão ao peito, como se preparasse um discurso. — Duas
qualidades minhas são que gosto de sorrir toda hora e confio demais nas
pessoas, mas há quem considere a segunda um defeito. Eu também gosto de caçar
insetos. — Ele olhou para os lados, como se prestes a contar um segredo. — Conheço
gente que come.
— Isso é... interessante.
Está melhorando. — Auria sorriu. — Bem, a minha cor predileta é azul.
— Eu amo laranja!
— Acrescentou o rapaz. — Sabia que essa cor remete à família?
— De madrugada
gosto de ouvir músicas tristes que mais ninguém conhece.
— Eu amo dragões.
— Tenho astigmatismo
e preciso usar óculos, mas não gosto.
— Meus pais são
lagartos.
Auria foi tomada
por uma crise de risos.
— Sério? Tipo, lagartos
mesmo? Que nem aqueles verdes, gosmentos, com pele pegajosa e...
— Estou falando
de geckos! — Ralph também caiu na risada. — Inclusive, esse foi o motivo por
não terem me aceitado no exército. Acham que minha criação vai fazer alguma
diferença. Você também não gosta de geckos?
— Eu apenas não
me dou bem com os lagartos, mas talvez minha opinião mude caso conheçamos algum
que me faça mudar de ideia. Mas, nossa, analisando a forma como você se movimenta
isso faz todo sentido!
— Eu nunca
conheci meus pais de verdade, por isso os geckos foram como minha família.
Perguntei para as pessoas do porto e eles me disseram que só se pode entrar na ilha
com um passaporte ou permissão.
— E então você
decidiu invadir um navio... Muito inteligente de sua parte.
— Não se
preocupe, vamos ficar por pouco tempo. Estou em busca de mais integrantes para
a equipe, penso em construir uma base para centrarmos nosso trabalho e
chamarmos um pouco de atenção. Poderíamos atender pedidos por meio deste posto,
uma espécie de guilda para pessoas com o mesmo ofício, uma fortaleza
realizadora de sonhos!
— Interessante. —
Auria teve de concordar, esticando os braços para trás e apoiando-se em um saco
de batatas enquanto olhava para o céu e pensava em tudo que tinha passado com
sua visão borrada sobre o mundo. — Que outros sonhos você tem, além de querer
entrar para o exército e ser reconhecido como herói?
— Estou
procurando alguém — Ralph falou meio tímido.
— É uma garota,
né?
— Ah, deixa isso
pra lá...
Auria aquietou-se
ao perceber que tocara em uma questão pessoal. Talvez Ralph estivesse atrás de
seus pais biológicos e não quisesse discutir o assunto, afinal, até um livro
aberto como ele tinha seus segredos e mistérios.
— Estou feliz em
ter a oportunidade de sair da Vila das Pérolas, explorar o mundo e ser eu
mesma. Não preciso me preocupar em manter a boa pose o tempo inteiro. Não me
confunda com uma desleixada mal educada, eu tenho classe, só não gosto que
cobrem isso de mim o tempo todo — ela falou quase como um agradecimento. —
Agora não preciso mais perder horas penteando o cabelo.
— Ficou bem legal
assim. Até parece que você foi desenhada de cabelo curto!
Auria abaixou seu
rosto de maneira embaraçosa e observou o garoto do outro lado. Ele tinha um
olhar sereno, como se estivesse voando longe, muito longe; onde podia viver
todas as suas aventuras mais impossíveis sem sair do lugar.
— Você é
diferente, Ralph — admitiu num tom sincero. — E também sabe dizer palavras
bonitas. Como pode existir tamanho contraste entre a sabedoria e a ingenuidade?
Você lê muitos livros?
— Eu não. Nunca
me concentro, mas adoro que me contem histórias para que eu também possa
compartilhá-las, ouvi muitas da pessoa que me deu essa espada quando eu era
criança.
— Qual o nome
dele?
— Eu não sei...
o chamava só de Narrador. Hoje deve estar explorando o mundo em busca de mais
histórias para contar. É por causa dele que eu quero me tornar um herói.
Auria aninhou-se
em um canto com sua espada em mãos. Ralph espreguiçou-se e aproveitou para
descansar também. O assunto morreu ali.
Eles ouviam
passos vindos do convés, mas preferiam não correr o risco de espiarem nem de serem
pegos como clandestinos.
A defensora lustrava
a lâmina de Melodia quando decidiu questionar com pouca discrição:
— O que
aconteceu com a sua família verdadeira? — falou, enfim, vendo o amigo
silenciar-se. — Você não precisa responder, está no seu direito. É só que não
consigo imaginar como alguém poderia ter recebido os cuidados de espécies tão
diferentes como os geckos e ainda por cima viver feliz, como você.
Ralph sorriu à procura
das melhores palavras para respondê-la:
— Como tantos
outros pais que se ausentam, gosto de acreditar que eles tiveram seus motivos e
não cabe a mim condená-los. É o que acontece com a família dos heróis, não?
Primeiro precisam perder alguém importante para depois se tornarem grandes e
seguirem em frente. O Narrador que me contou que eu também poderia me tornar
um.
Os dois permaneceram quietos, um clima pesado pairou
antes de Ralph voltar a falar:
— Somos
construídos a partir de nossas experiências neste mundo. Deve ser por isso que tento
ser lembrado, para que eu não seja mais... esquecido. Deixado para trás. Quero
encontrar algum meio das pessoas saberem quem eu sou e quem eu fui, que contem
histórias sobre meus feitos. Mas não faço questão que o mundo inteiro saiba, se
apenas meus amigos derem risada de todas as coisas engraçadas que eu fiz, então
estarei contente.
Auria revelou um sorriso discreto, fechou os olhos e
encostou a cabeça nos caixotes logo atrás. Ela conseguia se colocar no lugar de
Ralph, imaginava como seria a sensação de perder suas duas irmãs, seu único elo
familiar que restara.
Ralph encarava a
espada de aço na bainha dela. O equipamento o fascinava. Auria imaginou que,
com sua espada de madeira inofensiva, ele não devia ter muita experiência manuseando
armas de verdade.
A moça esticou a
bainha em sua direção.
— Pode ver, se
quiser. Só não vai se ferir, hein?
Ralph a segurou
com a delicadeza que seguraria a mão de uma garota. Auria buscou uma maçã em
sua mochila e a abocanhou, aproveitando o intervalo para descansar. Teriam de
ficar ali por algumas horas, logo, havia bastante tempo a ser gasto.
— Qual o nome
dela?
— Quem?
— Da sua espada.
— Ralph era muito bom em mudar de assuntos de repente. Talvez suas palavras saíssem
mais depressa do que seus pensamentos. — Ela tem um nome, não tem? Todas as
grandes armas têm um nome. A minha se chama Lignum. Diga oi, Liggy!
Auria nunca
havia pensado em algo tão irrelevante, mas divertiu-se com a ideia.
— Bem, hm... O
que acha de Melodia?
— Incrível.
Seria pelo tom que ela emite ao acertar seus oponentes e os condenar ao sono
eterno? Sim, Melodia, como nos contos antigos! É um nome muito bonito, espero
que se deem bem — respondeu Ralph, entregando a espada às mãos de sua dona.
— Eu inventei
agora. — Sorriu de maneira amistosa.
Era divertido
conversar com ele. Há muito tempo não ouvia uma pessoa que não se aproximasse
dela com segundas intenções, fosse por sua aparência ou pela fama de sua
família, que era muito respeitada.
Muitos preferiam
vê-la presa numa gaiola feita um passarinho, incapaz de fugir das grades de
ferro que a separavam de sua liberdade. Só queriam ouvi-la cantar, mesmo depois
de suas forças se esgotarem.
Ralph retomou seu sorriso costumeiro ao brandir sua
espada de madeira. O jovem apoiou-se com as mãos para ficar de pé e em seguida
fez movimentos rápidos e habilidosos com Lignum, exibindo sua técnica que
lembrava a esgrima.
— Você é habilidoso —
admitiu Auria. — Deve ter tido um ótimo professor.
— A força
verdadeira vem dela — respondeu o jovem guerreiro, apontando para a espada. — Venha,
eu quero ver o que você também pode fazer. Se desejar ser minha defensora,
mostre que está em sincronia comigo.
Auria levantou-se
provocativa com Melodia dançando entre sua mão direita e a esquerda.
— Saiba que eu
serei a melhor líder deste reino. Enfrente-me, novato!
Ela tentou
copiar os mesmos movimentos que Ralph fizera, mas a espada escapuliu de sua mão
e acabou cortando uma corda que sustentava um container logo atrás. Um estalo
foi ouvido e os dois olharam para cima.
— Acho que
espadas não são seu forte — disse Ralph.
As cordas arrebentaram,
derrubando todos os caixotes e barris perto de onde os aventureiros se
escondiam. Um estrondo foi ouvido e uma nuvem de poeira formou-se com
mercadorias, farinha e alimentos espalhados pelo convés do navio.
Os dois clandestinos
viraram e se depararam com criaturas bizarras, observando-os com curiosidade.
Eram verdes, amarelos ou até azuis; de cauda longa e dentes afiados, com um
olhar tão apavorado quanto o deles próprios.
Adorei o ambiente vivido pelo Ralph e a Auria no capitulo, especialmente no simbolismo de cortar o cabelo, lembrou muito a minha infância, talvez porque eu vivi algo parecido e tive uma reação semelhante á da Auria! kkk
ResponderExcluirCoitado do Raplh e do Jujuba, e eu agora refletido sobre a minha vida e pensando: Quanto bicho morreu nas minhas próprias mãos?...
- Destruindo formigueiros e matando as formigas
- Caçar borboletas e as prender em cadernos ou na parede com fita-adesiva, e elas ainda vivas (eu as deixava morrer)
- Lembrei agora que uma vez apanhei um pássaro e simplesmente o matei
- Apanhei joaninhas e deixei elas morrendo dentro de caixas perdidas no tempo
- Muitas vezes eu ficava fazendo um género de ritual: ''corridas com caracóis'' (algumas vezes utilizei carros de brincar), e no fim, começando pelos caracóis vencedores, ficava sacrificando cada um a uma certa divindade do meu Livro, ao converter estes em lesmas.
As vezes eu sou do mal... Como é que eu não tenho peso na consciência?
Agora vê o lado positivo: O Ralph não soltou uma praga no seu jardim
Caramba, Shii! Você ainda lembra dessa história da praga que eu soltei no jardim! kkkkkkkk Descanse em paz, pequena Jujuba. Desde aquela época eu já tinha o intuito de eternizar meu besouro de estimação no livro. Uma das marcas principais do Ralph é falar sobre besouros em algum momento, quando tentei escrever o livro pela primeira vez em 2009 haviam capítulos inteiros dedicados a besouros. No atual tive que tirar, mas elas viraram Cenas Deletadas que postarei no futuro kkk Eu não poderia tirar esse detalhe!
ExcluirPelo visto, você foi a maior matadora de insetos na história, Shii kkkkkkk Os geckos teriam orgulho de você! Eu gosto dessa metáfora sobre deixar um animal morrer sobre nossos cuidados, ela reflete bem a visão do Ralph sobre o mundo. O simbolismo da Auria cortar o cabelo também é muito importante, na versão antiga era ela quem cortava com uma faca, mas senti que o Ralph fazendo isso traria uma imagem diferente. Traz a ideia de mudança, ser uma pessoa nova.
Eu me segurei muito para não podar esse capítulo inteiro... D: Há quem leia e considere metade dele irrelevante, pois é um momento onde os personagens conversam sobre a vida e coisas aleatórias. Eu tentei diminuir o máximo que pude, mas se eu cortasse mais, acabaria não sendo mais uma história minha. O que seriam de nossos personagens sem essas conversinhas bobas? kkkk
Yo Canas! Muito obrigado por mais um capítulo! Não vou comentar muito mas digo pra você: ficou ótimo! Show de bola!
ResponderExcluirE bem, Luke Wallers na Academia? Mano, tu quer desencadear uma guerra mortal com um megalomaníaco BADASS a solta no controle militar de uma nação? Tu fumaste, não?
kkkkkkkkkkkk Cara, na verdade o livro possui 17 pequenos Easter Eggs do Aventuras em Sinnoh, desde os mais descarados como o nome do Luke e da Dawn nesses dois capítulos ou estação Diamante/Pérola, até alguns que só os mais atentos vão perceber. É uma brincadeira que fiz com os velhos leitores da Aliança, para a maioria não fará sentido, mas é o mínimo que posso fazer por uma história que me marcou tanto :')
ExcluirDAAAMN, love the character arc Auria is getting here and how she's learning to be such an epic badass! Lovely how her transformation (both figuratively and literally) is coming alone, cutting the hair and throwing on her jacket, and how Ralph is teaching her so much, clever twist in terms of their age difference! Love as well how you keep reminding the audience of what a big part her lineage plays into her life and how it's just held her down, and how it's slowly beginning to not hold her back.
ResponderExcluirAnd what a cliffhanger! Can't wait to see how they get out of this one (I imagine Ralph will just be so damned sweet they just let them go, curse that kid and his pure heart). ^0^
When I created Auria back in 2005, she was just a regular girl who got kidnaped and always stayed away from the adventure. She used to have long blue hair, but you know me, short haired girls are the best! haha. The hair scene has a lot of meaning, sometimes we just need a little change in ourselves and try new things.
ExcluirWhen I started this book, I knew Auria needed to be something more than a love interest, she is a little stubborn in the beginning, but she's very dedicated and treats Ralph as a little brother, she learns a lot from him too. From my most ignored character, she became me absolutely favorite. I love the way one look for each other.
And I bet Ralph will try something out too! It's time for you to know my lizard species. Dude, I'm really glad you're here, yesterday I received my finished cover and I can't wait to show you guys, I think I'm really close to publishing!
WAHHHHHHHAT, THAT was Auria?! DAMN she's come a long ways! and Wow! Omg I can't wait to see man!
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