sexta-feira, 15 de novembro de 2019

O Passado da Ordem - O Relógio Acromático (Parte 4)

O Relógio Acromático
– Bernard 

Alguém bateu à porta. Não estava acostumada a receber notícias depois do anoitecer, deixou o livro na cabeceira e preparou um de seus punhais para caso fosse obrigada a lidar com algum imprevisto de trabalho, mas qual foi a sua surpresa ao deparar-se com Astra King com as mãos ocupadas — a direita segurava uma garrafa de uísque e a esquerda dois copos baixos de cristal.
— Olá. Achei que uma companhia lhe cairia bem — disse o homem com a voz convidativa. — Desculpe por não usar as mãos para me comunicar, mas, como pode ver, elas estão ocupadas. Posso entrar?
Sheena precisou esconder sua expressão de desagrado, não estava contando com companhia. Seu planejamento inicial era de concluir pelo menos três capítulos até por volta da meia noite e passar o restante da madrugada se divertindo até pegar no sono.
Astra cambaleou pelo aposento escuro, tomando o devido cuidado para não trombar em nada pelo chão. Não havia nem mesmo um abajur ligado.
— Como é que você consegue enxergar nessa penumbra? — ele questionou.
Sheena piscou e seus olhos se acenderam como faróis. Mais um daqueles poderes inúteis que nunca quisera ter, mas ao menos servia para afugentar presas e ler no escuro. Astra não se cansava de impressionar-se com as habilidades da tótines.
— Garota, você é mesmo uma peculiaridade!
Assim que as luzes foram ligadas, Astra depositou os copos e a garrafa na mesinha de centro e seu olhar percorreu o aposento como se analisasse cada detalhe. Não havia nada de especial ali, o típico quarto de uma pessoa que passava a maior parte de seu tempo no trabalho e só precisava de uma cama para dormir quando o dia terminava. Sheena se acomodara no laboratório de Erlenmeyer desde que assumira sua missão como mercenária, mas alguns poucos pertences pessoais denunciavam que ela não era apenas uma assassina silenciosa e sanguinária como muitos faziam parecer.
— Bela peça — disse o Sr. King ao avistar um relógio de bolso inerte sobre a escrivaninha.
Sheena o repreendeu com um tapa leve na mão que não precisou de linguagem de sinais para ficar bem claro: “Não toque nele”.
— Ora essa, e o que temos aqui. — Astra ergueu um livro entreaberto sobre a cama. — Eu já ouvi falar dessa autora, minha ex-esposa lia tudo que ela lançasse. Quer dizer que você gosta de histórias eróticas?
Sheena arrancou o livro da mão dele e marcou a página para não se perder na leitura mais tarde.
“Se não tiver mais nada para fazer além de me provocar, peço que vá embora”, explicou Sheena através de gestos.
— Oh, me perdoe. Não quis ofender. — Astra dirigiu-se até a mesa e distribuiu a bebida entre dois copos. — Você recusou o meu vinho aquele dia, então imaginei que talvez preferisse algo mais forte. Trouxe esse uísque de quinze anos, produzido em Trajan, custa uma fortuna — ele entregou o copo para sua convidada e ergueu o outro num comprimento cordial. — Saúde.
Somente o cheiro daquela bebida a enojava, mas Sheena preferiu não fazer desfeita e aceitou para evitar que no futuro ele voltasse a fazer pedidos parecidos.
— Pois bem, vamos ao que interessa. — Astra espreguiçou-se pelo sofá, deixando um espaço óbvio para que ela se sentasse ao seu lado caso quisesse. — Como deve saber, há cerca de três dias os homens de Erlenmeyer trouxeram uma prisioneira com um poder muito peculiar... ela consegue acessar a mente das pessoas.
“Parece perigoso”, respondeu Sheena.
— Nós a chamamos de experimento Mysteria. Acessar a mente de alguém é de uma natureza inimaginável, acredito que poucos tótines no mundo saberiam como lidar com essa pressão. Um turbilhão de vozes em sua cabeça, o tempo todo, em qualquer lugar.
“Aonde quer chegar?”
— Já é de conhecimento nosso que você é a criatura mais sensível à mana em toda Sellure. Se você tivesse o poder de acessar mentes, você se tornaria imprevisível! Pense só nas possibilidades, até mesmo o Rei e seu Conselho idiota temeriam as verdades que você poderia trazer à tona.
“Eu não quero esse poder”.
— Calma, eu sei — desculpou-se Astra por sua exasperação. — Você, de todos os tótines que já conheci, é a única que recusa esse dom que recebeu das divindades.
“Eu não pedi isso. Eu só queria ser uma pessoa normal”.
— Pois essa simplicidade com que você lida com as coisas é o que me encanta — disse Astra com um sorriso, voltando a esticar os braços na poltrona. — A máquina capaz de extrair a mana foi concluída ontem à noite. Ainda está em período de testes, mas achei que ficaria contente em receber essa pequena atualização.
O coração de Sheena palpitou mais forte. Faltava muito pouco para que finalmente se livrasse daqueles poderes indesejáveis, mesmo que fosse uma chance remota.
— Eu poderia adiantar as coisas para você, se pudesse me fazer um pequeno favor — sugeriu Astra, que notou o olhar de desaprovação dela. — Não se preocupe, não é nada invasivo. Eu só preciso que você compareça amanhã no laboratório três onde faremos alguns experimentos com Mysteria. Eu quero que você faça um simples teste com o poder dela. Pode descartá-lo se não gostar.
“Por quê? Você não poderá usá-lo de qualquer forma”.
— É aí que você se engana, mocinha. A máquina em que estive trabalhando é capaz de não apenas drenar a mana do corpo de alguém, como passá-la para outro recipiente. Da mesma forma que as Pérolas Sagradas detém uma quantia absurda de magia, minha proposta é que passemos os seus poderes para pérolas vazias. Dessa forma, você se livrará deles para sempre.
“Não confio em seus homens”.
— Não se preocupe, eu mesmo lidarei com a extração. É uma troca justa, não acha? Você se vê livre do que te incomoda, e eu recebo algo que me agrada. Todo mundo sai ganhando.
Astra virou o líquido que restava em seu copo, fez um brinde com Sheena e seguiu em direção da porta para se despedir.
— Te espero amanhã às oito da noite. Não vá dormir tarde, hein? — ele disse com aquela voz cansada que passava uma sensação de segurança paternal. — Muito em breve você enxergará o mundo de outra maneira, com olhos de humanos!
Assim que Sheena foi deixada sozinha no quarto, ela despejou o uísque na pia do banheiro e deitou-se na cama. Permaneceu olhando para o teto, piscando a cada cinco segundos, acendendo e apagando os olhos como uma lanterna no escuro. Sentia tamanha ansiedade que já não conseguiria mais dormir e nem se concentrar em sua leitura, uma de suas mãos deslizou devagar para dentro da calça enquanto a outra massageava o seio em movimentos circulares. Ela se imaginou dali a alguns meses — qual seria a sensação de ser normal caso pudesse livrar-se de seus poderes? Seria mais prazeroso de alguma forma?
Sheena gemeu baixo, desenhando um arco com suas pernas enquanto puxava o cobertor com força. Sentiu um arrepio percorrer todo seu corpo, seus dedos estavam molhados. Aquele momento solitário e particular era a única maneira que conhecia para esvaziar sua mente, e assim, livrar-se do excesso de mana que a assolava. Esquecia poderes, magia, compromissos e preocupações; por uma fração de segundos sua mente se esvaziava por completo e podia se concentrar no seu próprio prazer. Já se tornara parte da rotina, uma obrigação.
Buscara uma “cura” para seus poderes por toda a vida, definira como o seu maior objetivo, mas e quando tudo terminasse... será que acabaria tornado-se uma pessoa completamente diferente daquela que conhecia? A Silenciadora respirou fundo, e enfim seus olhos se apagaram indicando que suas baterias se esgotaram.

i

No dia seguinte, Sheena compareceu ao laboratório quase uma hora antes do horário indicado. Erlenmeyer ainda não havia chegado, mas Astra King administrava os demais cientistas que também estavam ocupados demais com suas próprias experiências.
— Silenciadora, que bom que veio! — Astra cumprimentou-a de braços abertos. — Como passou a noite? Dormiu bem?
Ela se limitou a sorrir para ele, sem entrar em detalhes.
— Venha, depressa, a experiência já chegou — Astra também parecia alvoroçado, aquele dia seria decisivo para o avanço de suas pesquisas. — Quanto tempo precisa com ela para roubar seus poderes?
“Geralmente, cerca de vinte e quatro horas convivendo com alguém é o suficiente para que eu adquira seus poderes, mas se eu puder tocá-la, o resultado é quase imediato.”
Astra certificou-se de aproximá-la o máximo que pudesse. Sheena adentrou uma sala branca com paredes estofadas e uma simples cadeira de ferro estofado no centro, onde uma mulher encapuzada com vestes púrpuras repousava. Sheena encarou as próprias mãos e sentiu algo estranho — seu nível de poder mágico estava sendo drenado aos poucos, aquela sala tinha a capacidade de neutralizar qualquer magia dos tótines.
A mulher parecia ter quase a sua idade, mas dado o estado em que se encontrava, era claro que sofrera maus tratos. Suas vestes antes luxuosas estavam sujas e desgastadas, seus longos cabelos se emaranhavam escondendo parte do rosto cabisbaixo. Sheena precisou tocar no queixo dela para enxergá-la; apesar de inchados, seus olhos transmitiam o orgulho de quem mantivera a boca fechada até o fim.
— Nós pensávamos que ela fosse um dos membros da Ordem, mas parece que nos enganamos — falou Astra, sendo o próximo a entrar na sala fechada. — Parece que ela é um daqueles espécimes raros de animais que, por sorte, não nos apresenta risco nenhum.
Sheena não deixou de notar que no ombro a mulher carregava uma marca gravada em fogo.
“Pare de tratá-los como se fossem lixo”, ordenou Sheena, deixando sua mensagem bem clara de que os tótines não eram uma raça inferior e já sofriam o bastante nas mãos das divindades.
Sheena agachou-se em frente à mulher, como se pedisse licença para tocá-la. Por mais que as duas não tivessem se comunicado em momento algum, pela primeira vez, Mysteria sibilou algumas palavras em seu cativeiro.
— Se você pudesse ver o que eu vejo todos os dias... iria preferir estar morta...
Assim que a Silenciadora tocou em sua testa, uma aura sinistra a rodeou e uma dor de cabeça intensa tomou conta, como se estivesse enclausurada em uma festa ao lado da caixa de som, milhares de pessoas falando coisas que não lhe faziam sentido algum; ouvia barulhos ensurdecedores de todas as partes, imagens aceleradas de gente que ela nunca vira.
Sheena emitia grunhidos desconexos como um animal, Astra e outros dois de seus homens tentaram retirá-la da sala, mas a mulher se contorcia no chão lamentando de dor. Mysteria continuava sentada em sua frente, com os olhos vidrados.
— Sheena, Sheena! O que houve? — gritou Astra King. — O que está acontecendo dentro da sua cabeça?
Ela o puxou pela gola do jaleco e suas visões tomaram foco.
Viu-se presa em uma sala escura semelhante àquela, como se estivesse assistindo a um filme através dos olhos de outra pessoa. Viu Astra mais jovem com cerca de seus vinte e poucos anos ao lado de uma mulher muito bela que reconhecera pelo porta-retratos de sua família, devia ser sua esposa. Era como se a vida inteira de outra pessoa passasse através dos seus olhos — enxergara desde o casamento até as intimidades, os jantares em família e as conquistas da juventude. No meio de todas aquelas lembranças felizes também havia tormento e decepção, a imagem de momentos de alegria ao lado dos filhos logo se transformaram em embriaguês pela bebida.
Ela viu Astra tornar-se um monstro, chegando ao ponto de bater em seus filhos quando algum deles saía da linha. A violência não demorou a tomar novas proporções, Sheena precisou fechar os olhos, porque se sentia como na pele das crianças que gritavam e choravam assustadas. A imagem que tinha do homem se desfez no ponto em que, para o seu terror, ele espancou a própria esposa sem precisar estar embriagado para tal. Via-se obrigada a olhar tudo acontecer sem poder sair do esconderijo, impotente e desesperada.
“Você é só uma vadia reprodutora mesmo”, ouviu Astra dizer. “Pelo visto os tótines não têm nada de melhor para me oferecer”.
Assim que Sheena conseguiu livrar-se do turbilhão de memórias que a assolaram, percebeu que estava de volta ao laboratório. Astra estava ajoelhado ao seu lado, segurando sua mão com aquele olhar cauteloso e gentil.
— Pronto. Está se sentindo melhor? — disse o homem com um sorriso. — Por Araya, achei que fôssemos perdê-la. Eu detestaria que algo acontecesse com você, minha pequena.
“Minha pequena”. Aquelas palavras causaram um efeito de revolta tão grande em Sheena que ela partiu para cima dele feito um lobo feroz.
Ela não pertencia a ele. Ela não pertencia a ninguém.
Sheena começou a espancá-lo de forma impiedosa, nenhum dos outros cientistas puderam afastá-la. Mesmo em uma sala capaz de drenar sua mana, seus poderes estavam entrando em conflito e assumindo proporções surreais, o maquinário que media os níveis de magia sofreu um curto-circuito e precisaram ser desligados. Se tivesse levado suas adagas, Sheena com certeza o teria matado ali mesmo. Ela o socava no rosto deixando para trás contusões, seus óculos partiram-se ao meio, Astra já estava inconsciente, mas Sheena não dava sinais de que iria parar.
Uma figura sombria de um lobo atravessou as paredes do recinto e avançou para cima de Sheena, arremessando-a do outro lado com o impacto. A Silenciadora ficou de quatro no chão, ela comprimiu seus ombros e assumiu a sua forma de animal — a de um lobo com presas ferozes e pelagem branca. Com um forte rugido, Sheena encurralou os pesquisadores que cercavam, grunhindo raivosa com as presas expostas.
— Acalme-se, senhorita. Este não é um ambiente para brigas — alertou-lhe o Doutor Erlenmeyer que chegara havia pouco tempo.
Devo expulsá-la da alcateia?, perguntou o Lobo Negro, um dos três espíritos que sempre acompanhavam Erlenmeyer aonde quer que ele fosse.
— Claro que não, ela ainda é uma das nossas, só precisará de um pouco de tempo para repensar seus atos — retrucou a serpente albina. — Venha, Sheena, você precisa descansar... esse mundo é escuro demais para você.
O corpo de Sheena aos poucos retomou sua forma humana. Ela caiu de joelhos com a respiração ofegante, mas não se arrependia nem um pouco de ter descontado tudo que sentia naquele nojento do King. Mysteria continuava sentada sobre a sua cadeira com o olhar distante como se tivesse sido drogada, alheia à batalha que acabara de acontecer. Sheena não demorou a interpretar que os machucados naquela vítima indefesa eram obra dele — a marca no ombro era para lembrar os tótines capturados a quem eles pertenciam.
E ela também era responsável por isso. Caçara, assassinara e destruíra incontáveis famílias de sua própria raça. Seria ela tão pior quanto qualquer outro ali presente?
A Silenciadora ergueu os braços com os punhos fechados em um gesto de conformidade que só podia significar uma coisa: “Levem-me embora daqui”.

ii

Sheena foi levada para uma das salas de contenção do laboratório, em momento algum revidou ou demonstrou resistência, ofereceu-se como prisioneira de bom grado, pois assim teria onde pensar sem ser incomodada. Estava morrendo de dor de cabeça, tinha tanto a assimilar nas últimas horas, os flashes de imagens de vidas que não lhe pertenciam ocorriam o tempo todo, mas estava aos poucos aprendendo como controlá-los.
Assim que um dos guardas abriu a porta de sua cela, percebeu que teria companhia. Havia um gigante idoso ali dentro, tinha a barba cheia e os cabelos ralos já eram dominados por mechas prateadas pela idade. Sua ideia de ter um pouco de tranquilidade fora por água abaixo. Sheena olhou para o guarda que sentiu um frio na espinha — ela causava medo mesmo com as mãos e pernas atadas por correntes.
— P-pode entrar... p-por favor, não faça nenhum mal ao outro prisioneiro — rogou o guarda que estava tão trêmulo quanto um bambu. — Tente não... comê-lo, se ficar com fome.
Ah, então era essa reputação que tinham dela pelo mundo? Que comia gente como se fosse um animal selvagem. “Até que seria divertido”, pensou Sheena com sarcasmo.
A porta da cela foi trancada, tinha pelo menos trinta centímetros de cimento puro, o que tornava a escapatória dali uma missão improvável. Sheena sentou-se no chão frio e fechou os olhos para meditar e concentrar-se na mana que irrompia por seu corpo quando ouviu uma voz grave:
— Olá. Tudo bem com você?
Sheena continuou quieta. Se tivesse sorte, ele perceberia que ela não estava a fim de papo e logo iria parar.
— Meu nome é Bernard... Sinceramente, não sei o que fiz para estar nesse lugar — disse o gigante com a voz gentil. Para alguém daquele tamanho, ele conseguia ser muito amável. Sheena chegou até a lembrar-se do próprio pai que vivera a vida toda como um homem do bem na humilde Ilha Quebrada ao norte de Garamond.
Mas ainda não estava nem um pouco a fim de socializar.
— Certo dia, eu e minha família fomos alvejados por uns homens estranhos vestidos de branco que alegava que estávamos infringindo uma regra: “Vocês são tótines, não deviam estar perambulando livres pela cidade!” Sabe, no meu tempo, não havia diferença entre as raças, e...
Sheena respirou fundo. Ele continuou com seu monólogo:
— ... minha mulher morreu há alguns anos, eu gostaria que ela tivesse vivido um pouco mais para ver nossa primeira netinha crescer — falou Bernard com a voz embriagada, como quem chorara a noite inteira. — Quer ver uma foto?
Sheena abriu os olhos pela primeira vez e olhou para o pedaço de papel nas mãos gigantescas do velho. Outra daquelas fotos de família — todo mundo sempre feliz, com gente reunida e conectada por sorrisos em comum, eternizadas em um momento como uma pintura da realidade.
— Essa aqui é minha filha, Atani, e o marido dela. Eles também estão aqui dentro nesse laboratório em algum lugar, mas me disseram que os adultos entrariam primeiro. Como sou velho, não me importo de esperar. Tenho bastante tempo sobrando. Você também não acha esse quarto de hotel um pouco estranho? A comida pelo menos é boa, mas vem em pequenas quantidades. Um grandalhão feito eu precisaria repetir o prato pelo menos três vezes...
Pelo visto aquele senhor não fazia ideia de que era um prisioneiro. A mana dos tótines segue diminuindo conforme a idade avança, logo, idosos não tinham serventia alguma para as experiências praticadas por Erlenmeyer.
— Ah, e essa aqui é a minha neta, ela tem um coração enorme. Mal nasceu e já tinha quase um metro, aposto que vai ficar mais alta do que eu! O que mais me doeu o coração foi quando a levaram para uma casa cheia de outras crianças, disseram que ali elas poderiam brincar todas juntas, mas todas pareciam tão assustadas...
As crianças eram o alimento preferido das pesquisas ali feitas. A mana transbordava nos primeiros anos de vida de um tótines, tanto que o preço por elas era quase o dobro. Sheena nunca ligou para o dinheiro, preferia que suas vítimas tivessem uma morte tranquila a levá-las para que fossem submetidas aos experimentos do laboratório do terror como era chamado.
— Quando ela nasceu, ninguém conseguia fazê-la parar de chorar. Só eu — disse Bernard com um sorriso bobo, pois sentia um tremendo orgulho de ser um avô cuidadoso e divertido. — Ela amava uma das minhas mágicas, quer ver?
Com as duas mãos erguidas formando um círculo, Bernard soprou o ar devagar e enormes bolhas se formaram, tomando conta da cela apertada. Sheena o encarou com o semblante sereno, pois aquele gigante inocente não tinha ideia de que seus poderes envolviam a água, um dos elementos básicos mais poderosos e cobiçados do reino.
E ali estava ele, usando-o para fazer bolhinhas de sabão para sua neta.
Há quanto tempo não via a ignorância de alguém quanto aos seus poderes? Mesmo que a magia dos tótines lhe parecesse uma maldição cruel, ainda havia quem a considerasse um pequeno presente, parte da sua vida.
Bernard ainda falava sem parar, o que permitiu que Sheena embarcasse em uma viagem pelo tempo. Imaginou-se em sua ilhota isolada no extremo norte de Sellure, lembrou-se de sua vida simples no campo, de como amava deitar-se na grama e sentir a areia dos pés, da mãe e do pai que sempre a trataram tão bem e lhe deram tudo que estava ao seu alcance. Nunca levara uma vida de riquezas, mas quem precisava daquilo quando se tinha uma ilha inteira para usar a criatividade e brincar com seus recém-descobertos poderes?
Mas quando a puberdade chegou, logo as outras crianças da ilha passaram a vê-la com estranheza. Achavam-na perigosa por ter poderes que fugiam à compreensão.
“Se quiser viver entre nós, você precisa tentar agir como alguém mais normal!”.
Mas o que era “ser normal”? Ao se olhar por fora, era exatamente como todos os demais. Não pedira para ter poderes.
Desde pequena tudo que queria era ter uma vida tranquila, mas nem mesmo em seu lar lhe deram essa possibilidade. Todos na ilha achavam-na excêntrica demais, mas será que não havia mais ninguém no mundo estranho o bastante que a completasse? Quando menina, almejava um lugar onde ninguém soubesse seu nome, queria ser invisível.
E se tentasse reunir aquelas malditas Pérolas Sagradas? Talvez pudesse concentrar um campo de energia tão grande capaz de extinguir a mana em Sellure, dessa forma, todos seriam iguais, mesmo que apenas as gerações futuras. Se algum dia tivesse um filho que Yllata a livrasse de tamanho infortúnio então a criança não seria mais atormentada por ser diferente. Ninguém colocaria expectativas sobre ela. “Você tem grandes poderes, deve usá-los para o bem!”
Olhou outra vez para a foto em família de Bernard, o que a levou a retirar o próprio relógio do bolso e o encarar, ainda fechado.
Para alguém que vivera a vida toda em uma região remota, aquele era um bem inestimável. Sua primeira decepção na vida foi quando tentou vendê-lo por precisar desesperadamente de dinheiro, e descobriu que não passava de ferro fundido folheado a ouro, não tinha nenhum valor comercial. Hoje tinha apenas cores monocromáticas e um pouco de ferrugem, ainda assim, aquele era um de seus itens mais preciosos; fora o último presente do pai, pouco antes de abandonar a vida na ilha e partir para o mundo. Ele lhe dissera na ocasião:
“No dia que você tiver alguém muito importante em sua vida, coloque uma foto aqui dentro”.
O espaço estava vazio até hoje.
Sheena levantou-se, fez um cumprimento cordial para Bernard e agradeceu-lhe pela conversa. Ela tocou no joelho do homem e sentiu sua mana restaurar-se imediatamente. Seu corpo tornou-se líquido, o que a permitiu passar pelo vão da porta sem grandes problemas. Já meditara o suficiente. Estava decidida a sair dali e reunir as Pérolas Sagradas, nem que para isso precisasse passar por cima de Erlenmeyer. Quem sabe quando terminasse aquela missão poderia encontrar paz em algum lugar remoto de Sellure, isso se não terminasse destruindo a si própria. Se o momento chegasse, abraçaria a morte como uma velha amiga.

 

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