O Passado da Ordem - O Relógio Acromático (Parte 4)
– Bernard –
Alguém bateu à porta. Não estava
acostumada a receber notícias depois do anoitecer, deixou o livro na cabeceira
e preparou um de seus punhais para caso fosse obrigada a lidar com algum
imprevisto de trabalho, mas qual foi a sua surpresa ao deparar-se com Astra
King com as mãos ocupadas — a direita segurava uma garrafa de uísque e a
esquerda dois copos baixos de cristal.
— Olá. Achei que uma companhia lhe
cairia bem — disse o homem com a voz convidativa. — Desculpe por não usar as
mãos para me comunicar, mas, como pode ver, elas estão ocupadas. Posso entrar?
Sheena precisou esconder sua expressão
de desagrado, não estava contando com companhia. Seu planejamento inicial era
de concluir pelo menos três capítulos até por volta da meia noite e passar o
restante da madrugada se divertindo até pegar no sono.
Astra cambaleou pelo aposento escuro,
tomando o devido cuidado para não trombar em nada pelo chão. Não havia nem
mesmo um abajur ligado.
— Como é que você consegue enxergar
nessa penumbra? — ele questionou.
Sheena piscou e seus olhos se acenderam
como faróis. Mais um daqueles poderes inúteis que nunca quisera ter, mas ao
menos servia para afugentar presas e ler no escuro. Astra não se cansava de
impressionar-se com as habilidades da tótines.
— Garota, você é mesmo uma
peculiaridade!
Assim que as luzes foram ligadas, Astra
depositou os copos e a garrafa na mesinha de centro e seu olhar percorreu o
aposento como se analisasse cada detalhe. Não havia nada de especial ali, o
típico quarto de uma pessoa que passava a maior parte de seu tempo no trabalho
e só precisava de uma cama para dormir quando o dia terminava. Sheena se
acomodara no laboratório de Erlenmeyer desde que assumira sua missão como
mercenária, mas alguns poucos pertences pessoais denunciavam que ela não era
apenas uma assassina silenciosa e sanguinária como muitos faziam parecer.
— Bela peça — disse o Sr. King ao avistar
um relógio de bolso inerte sobre a escrivaninha.
Sheena o repreendeu com um tapa leve na
mão que não precisou de linguagem de sinais para ficar bem claro: “Não toque
nele”.
— Ora essa, e o que temos aqui. — Astra ergueu
um livro entreaberto sobre a cama. — Eu já ouvi falar dessa autora, minha
ex-esposa lia tudo que ela lançasse. Quer dizer que você gosta de histórias
eróticas?
Sheena arrancou o livro da mão dele e
marcou a página para não se perder na leitura mais tarde.
“Se não tiver mais nada para fazer além
de me provocar, peço que vá embora”, explicou Sheena através de gestos.
— Oh, me perdoe. Não quis ofender. —
Astra dirigiu-se até a mesa e distribuiu a bebida entre dois copos. — Você
recusou o meu vinho aquele dia, então imaginei que talvez preferisse algo mais
forte. Trouxe esse uísque de quinze anos, produzido em Trajan, custa uma
fortuna — ele entregou o copo para sua convidada e ergueu o outro num
comprimento cordial. — Saúde.
Somente o cheiro daquela bebida a
enojava, mas Sheena preferiu não fazer desfeita e aceitou para evitar que no
futuro ele voltasse a fazer pedidos parecidos.
— Pois bem, vamos ao que interessa. —
Astra espreguiçou-se pelo sofá, deixando um espaço óbvio para que ela se
sentasse ao seu lado caso quisesse. — Como deve saber, há cerca de três dias os
homens de Erlenmeyer trouxeram uma prisioneira com um poder muito peculiar...
ela consegue acessar a mente das pessoas.
“Parece perigoso”, respondeu Sheena.
— Nós a chamamos de experimento
Mysteria. Acessar a mente de alguém é de uma natureza inimaginável, acredito
que poucos tótines no mundo saberiam como lidar com essa pressão. Um turbilhão
de vozes em sua cabeça, o tempo todo, em qualquer lugar.
“Aonde quer chegar?”
— Já é de conhecimento nosso que você é
a criatura mais sensível à mana em toda Sellure. Se você tivesse o poder de
acessar mentes, você se tornaria imprevisível! Pense só nas possibilidades, até
mesmo o Rei e seu Conselho idiota temeriam as verdades que você poderia trazer à
tona.
“Eu não quero esse poder”.
— Calma, eu sei — desculpou-se Astra por
sua exasperação. — Você, de todos os tótines que já conheci, é a única que
recusa esse dom que recebeu das divindades.
“Eu não pedi isso. Eu só queria ser uma
pessoa normal”.
— Pois essa simplicidade com que você
lida com as coisas é o que me encanta — disse Astra com um sorriso, voltando a
esticar os braços na poltrona. — A máquina capaz de extrair a mana foi
concluída ontem à noite. Ainda está em período de testes, mas achei que ficaria
contente em receber essa pequena atualização.
O coração de Sheena palpitou mais forte.
Faltava muito pouco para que finalmente se livrasse daqueles poderes
indesejáveis, mesmo que fosse uma chance remota.
— Eu poderia adiantar as coisas para
você, se pudesse me fazer um pequeno favor — sugeriu Astra, que notou o olhar
de desaprovação dela. — Não se preocupe, não é nada invasivo. Eu só preciso que
você compareça amanhã no laboratório três onde faremos alguns experimentos com
Mysteria. Eu quero que você faça um simples teste com o poder dela. Pode
descartá-lo se não gostar.
“Por quê? Você não poderá usá-lo de
qualquer forma”.
— É aí que você se engana, mocinha. A máquina
em que estive trabalhando é capaz de não apenas drenar a mana do corpo de
alguém, como passá-la para outro recipiente. Da mesma forma que as Pérolas
Sagradas detém uma quantia absurda de magia, minha proposta é que passemos os
seus poderes para pérolas vazias. Dessa forma, você se livrará deles para
sempre.
“Não confio em seus homens”.
— Não se preocupe, eu mesmo lidarei com
a extração. É uma troca justa, não acha? Você se vê livre do que te incomoda, e
eu recebo algo que me agrada. Todo mundo sai ganhando.
Astra virou o líquido que restava em seu
copo, fez um brinde com Sheena e seguiu em direção da porta para se despedir.
— Te espero amanhã às oito da noite. Não
vá dormir tarde, hein? — ele disse com aquela voz cansada que passava uma
sensação de segurança paternal. — Muito em breve você enxergará o mundo de
outra maneira, com olhos de humanos!
Assim que Sheena foi deixada sozinha no
quarto, ela despejou o uísque na pia do banheiro e deitou-se na cama. Permaneceu
olhando para o teto, piscando a cada cinco segundos, acendendo e apagando os
olhos como uma lanterna no escuro. Sentia tamanha ansiedade que já não
conseguiria mais dormir e nem se concentrar em sua leitura, uma de suas mãos deslizou
devagar para dentro da calça enquanto a outra massageava o seio em movimentos
circulares. Ela se imaginou dali a alguns meses — qual seria a sensação de ser normal caso pudesse livrar-se de
seus poderes? Seria mais prazeroso de alguma forma?
Sheena gemeu baixo, desenhando um arco
com suas pernas enquanto puxava o cobertor com força. Sentiu um arrepio
percorrer todo seu corpo, seus dedos estavam molhados. Aquele momento solitário
e particular era a única maneira que conhecia para esvaziar sua mente, e assim,
livrar-se do excesso de mana que a assolava. Esquecia poderes, magia, compromissos e preocupações; por uma
fração de segundos sua mente se esvaziava por completo e podia se concentrar no
seu próprio prazer. Já se tornara parte da rotina, uma obrigação.
Buscara uma “cura” para seus poderes por
toda a vida, definira como o seu maior objetivo, mas e quando tudo
terminasse... será que acabaria tornado-se uma pessoa completamente diferente
daquela que conhecia? A Silenciadora respirou fundo, e enfim seus olhos se
apagaram indicando que suas baterias se esgotaram.
i
No dia seguinte, Sheena compareceu ao
laboratório quase uma hora antes do horário indicado. Erlenmeyer ainda não
havia chegado, mas Astra King administrava os demais cientistas que também
estavam ocupados demais com suas próprias experiências.
— Silenciadora, que bom que veio! —
Astra cumprimentou-a de braços abertos. — Como passou a noite? Dormiu bem?
Ela se limitou a sorrir para ele, sem
entrar em detalhes.
— Venha, depressa, a experiência já
chegou — Astra também parecia alvoroçado, aquele dia seria decisivo para o
avanço de suas pesquisas. — Quanto tempo precisa com ela para roubar seus
poderes?
“Geralmente, cerca de vinte e quatro
horas convivendo com alguém é o suficiente para que eu adquira seus poderes,
mas se eu puder tocá-la, o resultado é quase imediato.”
Astra certificou-se de aproximá-la o
máximo que pudesse. Sheena adentrou uma sala branca com paredes estofadas e uma
simples cadeira de ferro estofado no centro, onde uma mulher encapuzada com
vestes púrpuras repousava. Sheena encarou as próprias mãos e sentiu algo
estranho — seu nível de poder mágico estava sendo drenado aos poucos, aquela
sala tinha a capacidade de neutralizar qualquer magia dos tótines.
A mulher parecia ter quase a sua idade,
mas dado o estado em que se encontrava, era claro que sofrera maus tratos. Suas
vestes antes luxuosas estavam sujas e desgastadas, seus longos cabelos se
emaranhavam escondendo parte do rosto cabisbaixo. Sheena precisou tocar no
queixo dela para enxergá-la; apesar de inchados, seus olhos transmitiam o
orgulho de quem mantivera a boca fechada até o fim.
— Nós pensávamos que ela fosse um dos
membros da Ordem, mas parece que nos enganamos — falou Astra, sendo o próximo a
entrar na sala fechada. — Parece que ela é um daqueles espécimes raros de
animais que, por sorte, não nos apresenta risco nenhum.
Sheena não deixou de notar que no ombro a
mulher carregava uma marca gravada em fogo.
“Pare de tratá-los como se fossem lixo”,
ordenou Sheena, deixando sua mensagem bem clara de que os tótines não eram uma
raça inferior e já sofriam o bastante nas mãos das divindades.
Sheena agachou-se em frente à mulher,
como se pedisse licença para tocá-la. Por mais que as duas não tivessem se
comunicado em momento algum, pela primeira vez, Mysteria sibilou algumas
palavras em seu cativeiro.
— Se você pudesse ver o que eu vejo
todos os dias... iria preferir estar morta...
Assim que a Silenciadora tocou em sua
testa, uma aura sinistra a rodeou e uma dor de cabeça intensa tomou conta, como
se estivesse enclausurada em uma festa ao lado da caixa de som, milhares de
pessoas falando coisas que não lhe faziam sentido algum; ouvia barulhos
ensurdecedores de todas as partes, imagens aceleradas de gente que ela nunca
vira.
Sheena emitia grunhidos desconexos como
um animal, Astra e outros dois de seus homens tentaram retirá-la da sala, mas a
mulher se contorcia no chão lamentando de dor. Mysteria continuava sentada em
sua frente, com os olhos vidrados.
— Sheena, Sheena! O que houve? — gritou
Astra King. — O que está acontecendo dentro da sua cabeça?
Ela o puxou pela gola do jaleco e suas
visões tomaram foco.
Viu-se presa em uma sala escura
semelhante àquela, como se estivesse assistindo a um filme através dos olhos de
outra pessoa. Viu Astra mais jovem com cerca de seus vinte e poucos anos ao
lado de uma mulher muito bela que reconhecera pelo porta-retratos de sua
família, devia ser sua esposa. Era como se a vida inteira de outra pessoa passasse
através dos seus olhos — enxergara desde o casamento até as intimidades, os
jantares em família e as conquistas da juventude. No meio de todas aquelas
lembranças felizes também havia tormento e decepção, a imagem de momentos de
alegria ao lado dos filhos logo se transformaram em embriaguês pela bebida.
Ela viu Astra tornar-se um monstro,
chegando ao ponto de bater em seus filhos quando algum deles saía da linha. A
violência não demorou a tomar novas proporções, Sheena precisou fechar os
olhos, porque se sentia como na pele das crianças que gritavam e choravam
assustadas. A imagem que tinha do homem se desfez no ponto em que, para o seu
terror, ele espancou a própria esposa sem precisar estar embriagado para tal. Via-se
obrigada a olhar tudo acontecer sem poder sair do esconderijo, impotente e desesperada.
“Você é só uma vadia reprodutora mesmo”,
ouviu Astra dizer. “Pelo visto os tótines não têm nada de melhor para me
oferecer”.
Assim que Sheena conseguiu livrar-se do
turbilhão de memórias que a assolaram, percebeu que estava de volta ao
laboratório. Astra estava ajoelhado ao seu lado, segurando sua mão com aquele
olhar cauteloso e gentil.
— Pronto. Está se sentindo melhor? —
disse o homem com um sorriso. — Por Araya, achei que fôssemos perdê-la. Eu
detestaria que algo acontecesse com você, minha pequena.
“Minha pequena”. Aquelas palavras
causaram um efeito de revolta tão grande em Sheena que ela partiu para cima
dele feito um lobo feroz.
Ela não pertencia a ele. Ela não
pertencia a ninguém.
Sheena começou a espancá-lo de forma
impiedosa, nenhum dos outros cientistas puderam afastá-la. Mesmo em uma sala
capaz de drenar sua mana, seus poderes estavam entrando em conflito e assumindo
proporções surreais, o maquinário que media os níveis de magia sofreu um
curto-circuito e precisaram ser desligados. Se tivesse levado suas adagas,
Sheena com certeza o teria matado ali mesmo. Ela o socava no rosto deixando
para trás contusões, seus óculos partiram-se ao meio, Astra já estava inconsciente,
mas Sheena não dava sinais de que iria parar.
Uma figura sombria de um lobo atravessou
as paredes do recinto e avançou para cima de Sheena, arremessando-a do outro
lado com o impacto. A Silenciadora ficou de quatro no chão, ela comprimiu seus
ombros e assumiu a sua forma de animal — a de um lobo com presas ferozes e
pelagem branca. Com um forte rugido, Sheena encurralou os pesquisadores que
cercavam, grunhindo raivosa com as presas expostas.
— Acalme-se, senhorita. Este não é um
ambiente para brigas — alertou-lhe o Doutor Erlenmeyer que chegara havia pouco
tempo.
Devo
expulsá-la da alcateia?, perguntou o Lobo
Negro, um dos três espíritos que sempre acompanhavam Erlenmeyer aonde quer que
ele fosse.
— Claro que não, ela ainda é uma das
nossas, só precisará de um pouco de tempo para repensar seus atos — retrucou a
serpente albina. — Venha, Sheena, você precisa descansar... esse mundo é escuro
demais para você.
O corpo de Sheena aos poucos retomou sua
forma humana. Ela caiu de joelhos com a respiração ofegante, mas não se
arrependia nem um pouco de ter descontado tudo que sentia naquele nojento do
King. Mysteria continuava sentada sobre a sua cadeira com o olhar distante como
se tivesse sido drogada, alheia à batalha que acabara de acontecer. Sheena não
demorou a interpretar que os machucados naquela vítima indefesa eram obra dele —
a marca no ombro era para lembrar os tótines capturados a quem eles pertenciam.
E ela também era responsável por isso.
Caçara, assassinara e destruíra incontáveis famílias de sua própria raça. Seria
ela tão pior quanto qualquer outro ali presente?
A Silenciadora ergueu os braços com os
punhos fechados em um gesto de conformidade que só podia significar uma coisa:
“Levem-me embora daqui”.
ii
Sheena foi levada para uma das salas de
contenção do laboratório, em momento algum revidou ou demonstrou resistência,
ofereceu-se como prisioneira de bom grado, pois assim teria onde pensar sem ser
incomodada. Estava morrendo de dor de cabeça, tinha tanto a assimilar nas
últimas horas, os flashes de imagens de vidas que não lhe pertenciam ocorriam o
tempo todo, mas estava aos poucos aprendendo como controlá-los.
Assim que um dos guardas abriu a porta
de sua cela, percebeu que teria companhia. Havia um gigante idoso ali dentro,
tinha a barba cheia e os cabelos ralos já eram dominados por mechas prateadas
pela idade. Sua ideia de ter um pouco de tranquilidade fora por água abaixo.
Sheena olhou para o guarda que sentiu um frio na espinha — ela causava medo
mesmo com as mãos e pernas atadas por correntes.
— P-pode entrar... p-por favor, não faça
nenhum mal ao outro prisioneiro — rogou o guarda que estava tão trêmulo quanto
um bambu. — Tente não... comê-lo, se ficar com fome.
Ah, então era essa reputação que tinham
dela pelo mundo? Que comia gente como se fosse um animal selvagem. “Até que
seria divertido”, pensou Sheena com sarcasmo.
A porta da cela foi trancada, tinha pelo
menos trinta centímetros de cimento puro, o que tornava a escapatória dali uma
missão improvável. Sheena sentou-se no chão frio e fechou os olhos para meditar
e concentrar-se na mana que irrompia por seu corpo quando ouviu uma voz grave:
— Olá. Tudo bem com você?
Sheena continuou quieta. Se tivesse
sorte, ele perceberia que ela não estava a fim de papo e logo iria parar.
— Meu nome é Bernard... Sinceramente, não
sei o que fiz para estar nesse lugar — disse o gigante com a voz gentil. Para
alguém daquele tamanho, ele conseguia ser muito amável. Sheena chegou até a
lembrar-se do próprio pai que vivera a vida toda como um homem do bem na
humilde Ilha Quebrada ao norte de Garamond.
Mas ainda não estava nem um pouco a fim
de socializar.
— Certo dia, eu e minha família fomos
alvejados por uns homens estranhos vestidos de branco que alegava que estávamos
infringindo uma regra: “Vocês são tótines, não deviam estar perambulando livres
pela cidade!” Sabe, no meu tempo, não havia diferença entre as raças, e...
Sheena respirou fundo. Ele continuou com
seu monólogo:
— ... minha mulher morreu há alguns
anos, eu gostaria que ela tivesse vivido um pouco mais para ver nossa primeira
netinha crescer — falou Bernard com a voz embriagada, como quem chorara a noite
inteira. — Quer ver uma foto?
Sheena abriu os olhos pela primeira vez
e olhou para o pedaço de papel nas mãos gigantescas do velho. Outra daquelas
fotos de família — todo mundo sempre feliz, com gente reunida e conectada por
sorrisos em comum, eternizadas em um momento como uma pintura da realidade.
— Essa aqui é minha filha, Atani, e o
marido dela. Eles também estão aqui dentro nesse laboratório em algum lugar,
mas me disseram que os adultos entrariam primeiro. Como sou velho, não me
importo de esperar. Tenho bastante tempo sobrando. Você também não acha esse
quarto de hotel um pouco estranho? A comida pelo menos é boa, mas vem em
pequenas quantidades. Um grandalhão feito eu precisaria repetir o prato pelo
menos três vezes...
Pelo visto aquele senhor não fazia ideia
de que era um prisioneiro. A mana dos tótines segue diminuindo conforme a idade
avança, logo, idosos não tinham serventia alguma para as experiências
praticadas por Erlenmeyer.
— Ah, e essa aqui é a minha neta, ela
tem um coração enorme. Mal nasceu e já tinha quase um metro, aposto que vai
ficar mais alta do que eu! O que mais me doeu o coração foi quando a levaram
para uma casa cheia de outras crianças, disseram que ali elas poderiam brincar
todas juntas, mas todas pareciam tão assustadas...
As crianças eram o alimento preferido
das pesquisas ali feitas. A mana transbordava nos primeiros anos de vida de um
tótines, tanto que o preço por elas era quase o dobro. Sheena nunca ligou para
o dinheiro, preferia que suas vítimas tivessem uma morte tranquila a levá-las
para que fossem submetidas aos experimentos do laboratório do terror como era
chamado.
— Quando ela nasceu, ninguém conseguia
fazê-la parar de chorar. Só eu — disse Bernard com um sorriso bobo, pois sentia
um tremendo orgulho de ser um avô cuidadoso e divertido. — Ela amava uma das
minhas mágicas, quer ver?
Com as duas mãos erguidas formando um
círculo, Bernard soprou o ar devagar e enormes bolhas se formaram, tomando
conta da cela apertada. Sheena o encarou com o semblante sereno, pois aquele
gigante inocente não tinha ideia de que seus poderes envolviam a água, um dos
elementos básicos mais poderosos e cobiçados do reino.
E ali estava ele, usando-o para fazer
bolhinhas de sabão para sua neta.
Há quanto tempo não via a ignorância de alguém
quanto aos seus poderes? Mesmo que a magia dos tótines lhe parecesse uma
maldição cruel, ainda havia quem a considerasse um pequeno presente, parte da
sua vida.
Bernard ainda falava sem parar, o que permitiu que
Sheena embarcasse em uma viagem pelo tempo. Imaginou-se em sua ilhota isolada no
extremo norte de Sellure, lembrou-se de sua vida simples no campo, de como
amava deitar-se na grama e sentir a areia dos pés, da mãe e do pai que sempre a
trataram tão bem e lhe deram tudo que estava ao seu alcance. Nunca levara uma
vida de riquezas, mas quem precisava daquilo quando se tinha uma ilha inteira
para usar a criatividade e brincar com seus recém-descobertos poderes?
Mas quando a puberdade chegou, logo as outras crianças
da ilha passaram a vê-la com estranheza. Achavam-na perigosa por ter poderes
que fugiam à compreensão.
“Se quiser viver entre nós, você precisa tentar agir
como alguém mais normal!”.
Mas o que era “ser normal”? Ao se olhar por fora,
era exatamente como todos os demais. Não pedira para ter poderes.
Desde pequena tudo que queria era ter uma vida
tranquila, mas nem mesmo em seu lar lhe deram essa possibilidade. Todos na ilha
achavam-na excêntrica demais, mas será que não havia mais ninguém no mundo
estranho o bastante que a completasse? Quando menina, almejava um lugar onde
ninguém soubesse seu nome, queria ser invisível.
E se tentasse reunir aquelas malditas Pérolas
Sagradas? Talvez pudesse concentrar um campo de energia tão grande capaz de
extinguir a mana em Sellure, dessa forma, todos seriam iguais, mesmo que apenas
as gerações futuras. Se algum dia tivesse um filho —
que Yllata a livrasse de tamanho infortúnio —
então a criança não seria mais atormentada por ser diferente. Ninguém colocaria
expectativas sobre ela. “Você tem grandes poderes, deve usá-los para o bem!”
Olhou outra vez para a foto em família de Bernard, o
que a levou a retirar o próprio relógio do bolso e o encarar, ainda fechado.
Para alguém que vivera a vida toda em uma região
remota, aquele era um bem inestimável. Sua primeira decepção na vida foi quando
tentou vendê-lo por precisar desesperadamente de dinheiro, e descobriu que não
passava de ferro fundido folheado a ouro, não tinha nenhum valor comercial. Hoje
tinha apenas cores monocromáticas e um pouco de ferrugem, ainda assim, aquele
era um de seus itens mais preciosos; fora o último presente do pai, pouco antes
de abandonar a vida na ilha e partir para o mundo. Ele lhe dissera na ocasião:
“No dia que você tiver alguém muito importante em
sua vida, coloque uma foto aqui dentro”.
O espaço estava vazio até hoje.
Sheena levantou-se, fez um cumprimento cordial para
Bernard e agradeceu-lhe pela conversa. Ela tocou no joelho do homem e sentiu
sua mana restaurar-se imediatamente. Seu corpo tornou-se líquido, o que a
permitiu passar pelo vão da porta sem grandes problemas. Já meditara o
suficiente. Estava decidida a sair dali e reunir as Pérolas Sagradas, nem que
para isso precisasse passar por cima de Erlenmeyer. Quem sabe quando terminasse
aquela missão poderia encontrar paz em algum lugar remoto de Sellure, isso se
não terminasse destruindo a si própria. Se o momento chegasse, abraçaria a
morte como uma velha amiga.
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