sexta-feira, 18 de outubro de 2019

O Passado da Ordem - As Ilusionistas do Deserto (Parte 2)

As Ilusionistas do Deserto
– Tootie 

A taverna na Semente Venenosa era apinhada de indivíduos com origem questionável durante a madrugada — viajantes sem um tostão para alugar uma pousada nas redondezas, bêbados com suas próprias histórias trágicas para contar, mercenários e criminosos que buscavam um ponto neutro onde não fossem incomodados —, mas nenhum deles percebeu a presença ominosa que se esgueirou pela porta dos fundos do bar. Nem mesmo Karl, o dono do estabelecimento, escutou alguém passar pelas suas costas em direção da área restrita. A Silenciadora tinha negócios a tratar, embora não fosse com ele.
O corredor escuro e pouco iluminado terminava em uma porta de metal que mais parecia um portal para outra dimensão. Ao atravessá-lo, era como se estivesse em um mundo diferente — havia máquinas enormes, dispositivos científicos que não existiam em nenhum outro lugar de Sellure. Tanto o piso quanto as paredes eram de um branco que refletia na luz forte, chegando a cegar os olhos; o laboratório secreto de Erlenmeyer localizado em Bausonne era sua principal sede, onde o famoso cientista concentrava seus estudos mais recentes a respeito da ciência e tecnologia.
A Silenciadora dirigiu-se até a sala do pesquisador, mas uma mulher de óculos e cabelos presos em um coque tentou impedi-la.
— O Doutor está em reunião, você terá de esperar... — disse Sofia, sua secretária, antes de ser interrompida. Ela levou a mão à garganta como se sentisse algo entalado ali dentro, foi um choque perceber que sua voz tinha sido roubada. Quando estava enfezada, era muito fácil para a Silenciadora simplesmente calar qualquer indivíduo ao seu redor com o uso de seus poderes, o que lhe rendera seu título.
O barulho da porta se abrindo foi tão discreto que ninguém a ouviu a entrar. Erlenmeyer virou o rosto de relance, como se tivesse sido alertado por uma voz invisível em sua cabeça. O outro homem estirado no sofá quase derrubou sua taça de vinho ao notar que tinham companhia.
— Por Yllata! Essa mulher é um fantasma?
— Não há com o que se preocupar, Sr. King. Ela trabalha para mim — respondeu o Doutor Erlenmeyer com a voz tranquila. — Aprendi a reconhecer que ela é um pouco impaciente, mas sua chegada foi em boa hora. Permita-me apresentá-los.
O homem ficou de pé e ajeitou seu paletó branco. A Silenciadora deu um passo para trás quando o sujeito tentou lhe cumprimentar com um beijinho no rosto, nunca fora de muito contato, mas ele também não se ofendeu. Ela fez uma análise completa dele em poucos segundos: as marcas de expressão e os poucos fios de cabelo branco denunciavam que era um homem vaidoso, devia ter por volta dos seus cinquenta e poucos anos, mas carregava no olhar certa malícia e ardileza de um rapaz. Ele se vestia como os ricos de Constantia, sem contar que o sobrenome King era muito bem conhecido em todo reino. Qual seria sua relevância nos planos de Erlenmeyer?
— Este é Astra King, patriarca de sua família e ex-membro do Conselho da Matiz. Ele está chefiando minhas pesquisas e tem feito um trabalho sublime. Devo dizer que sua visão de mundo chega a se comparar à minha — falou Erlenmeyer, sem medir elogios.
— Oh, não é para tanto, doutor. Sou apenas um homem comum em busca de mais respostas — respondeu Astra. — Poderia me introduzir a essa belíssima beldade?
— Claro. Esta é Sheena, também conhecida como Silenciadora, uma mercenária capacitada e detentora de poderes que nunca vi antes. É ela quem está cumprindo serviço e trazendo algumas cobaias para você.
— Uma mulher linda e poderosa. Que combinação fatal — disse Astra com ares de malícia. — Eu adoraria sentar para tomar um café com você qualquer dia desses. O meu setor aqui tem relação com a magia dos tótines, estou tentando descobrir de onde ela vem, como funciona, quem decide quais serão os poderosos e os imprestáveis.
Os olhos indecifráveis de Sheena iam de um lado para o outro, como se estudasse o cenário. Astra voltou-se para Erlenmeyer e perguntou:
— Ela é muda?
A serpente albina confirmou com a cabeça.
Astra colocou sua taça de lado e começou a utilizar as mãos para comunicar-se através da linguagem de sinais com ela.
“Estou muito feliz por finalmente ter tido a chance de conhecê-la”.
“O prazer é todo meu”, correspondeu Sheena.
— Ah, estou vendo que vocês terão mesmo muito que conversar! — disse Erlenmeyer em tom de agrado. — Um dos motivos pelos quais Sheena trabalha comigo é porque prometi a ela encontrar uma cura para doenças incuráveis. Na natureza, uma criatura defeituosa é rapidamente descartada pelos pais e, mesmo que sobreviva, é apenas questão de tempo até que se torne uma vitima da seleção natural.
“E você acredita que não falar é um problema?”, perguntou Astra.
“Ficar calada é o meu trabalho”, respondeu Sheena. “Mas eu gostaria de ajudar outros que, como eu, não estão satisfeitos com seus poderes. Eu não pedi para nascer uma tótines”.
A Silenciadora jogou na mesa de centro uma sacola de pano. Erlenmeyer abriu-a cheio de agitação e seus olhos ficaram marejados ao perceber que ali estava uma das Pérolas Sagradas.
— Oh, mal posso acreditar! A Pérola da Fumaça — falou o Doutor. — Você é esplêndida, minha nobre, nunca brinca em serviço. O Sr. King ofereceu-se para bancar todas as nossas pesquisas, e um espólio como este merece a devida recompensa!
— Aproveite para divertir-se com o brinquedo novo, doutor — falou Astra. — Enquanto isso, me permite roubar sua garota por alguns minutos?
— Vão, vão, continuamos a reunião mais tarde — respondeu a serpente que já perdera completamente o interesse no assunto anterior. — No momento, tudo que quero é entender mais sobre essas... preciosssssidades.
Astra ofereceu o braço para guiar Sheena pelos corredores do laboratório, mas a mulher preferiu caminhar sozinha. Seu assunto ali estava terminado e ela sabia onde ficava a saída.
“Por favor, não vai me acompanhar para um café?”, perguntou o cavalheiro ao abrir a porta para ela.
“Desculpe, tenho muito que fazer”.
“Eu insisto. Sinto que ainda há tanto para descobrir sobre você. Vejo que você carrega pelo menos três amuletos pelo corpo — um colar, um bracelete e um relógio de bolso. Você acredita no totinismo, não é?”
Ele é observador, pensou Sheena. Não custa nada ouvir o que ele tem a dizer.
Ela se deixou guiar até o escritório do Sr. King onde teriam mais privacidade para conversar e o murmurinho de outras pessoas não a desconcentrassem. Pelo ambiente era possível notar que Astra não se apegava a utensílios, a sala estava praticamente intocada, exceto por inúmeros papéis e livros espalhados referentes a conteúdos que não soube distinguir.
Sheena notou em uma das prateleiras um quadro emoldurado onde se via Astra ao lado de cinco pessoas — dois meninos, duas meninas e uma mulher mais velha que devia ser sua esposa. Os quatro menores deviam ser todos seus filhos, havia uma diferença de idade razoável entre eles, sendo que cada um tinha o cabelo de uma cor: vermelho, verde-água, azul claro e amarelo. Sheena revelou um sorriso raro, porque nenhum dos quatro aparentava estar satisfeito ali, como se tivessem sido obrigados a tirar uma daquelas fotos cafonas em família para registro da posteridade. Ao menos Astra parecia ser do tipo que se esforçava para ser um bom pai.
O homem ofereceu-lhe vinho, mas Sheena não ingeria bebidas alcoólicas e nem comia durante seu período de trabalho, tinha a crença de que seu corpo era como um templo e qualquer coisa que pudesse dificultar seus movimentos representava um risco. O pano que ocultava sua boca era apenas um lembrete de que ela não cedia espaço a conversas, mas Astra teimava em puxar assunto. Sentiu os olhos dele em suas costas, analisando cada detalhe de seu corpo. Notou que ele usava uma aliança prateada na mão esquerda. Era mesmo um cafajeste.
“Você é casado?”, insinuou Sheena.
— Ah, é uma longa história — respondeu Astra entre risadas, apresentando as pessoas no quadro. — Esse é o meu primogênito, Lloyd King, controla poderes de gelo. Ele é fruto do meu primeiro casamento com Aithy, uma tótines maravilhosa com uma presença de mana altíssima. Depois de alguns desentendimentos entre nós, acabei me divorciando e casando com outra mulher com quem tive Fiametta e Clementine, as duas nasceram com poderes de fogo e água, uma combinação incrível. O quarto é este garotinho invocado, seu nome é Volker, controla eletricidade. Esse garoto foi um problema desde que nasceu... nasceu de um caso com minha ex. Hoje as duas me deixaram. É como diz aquela música: “Quem tem dois, não tem nenhum”.
“Então você considera o casamento uma prisão?”
— Não vou mentir, os primeiros anos foram maravilhosos, mas logo as coisas esfriaram e percebi que não seria possível continuar como era, entende? — comentou Astra. — Mas não estamos aqui para falar sobre mim. Quais são seus poderes? Percebi de cara que você tem algo relacionado a sons, acha que isso tem alguma influência com sua voz ter desaparecido?
“Você realmente valoriza muito os poderes de um tótines”, falou Sheena.
— Eu sou apaixonado pela raça de vocês! Os tótines representam tudo que há de melhor nos seres humanos, são como uma versão aprimorada, melhores em cada aspecto. Quando eu trabalhava no Conselho, fiz o possível para garantir mais direitos e representatividade ao seu povo.
“Impressionante”.
— Por que tenho a impressão de que você abomina seus poderes? É como se tivesse vergonha deles.
“Perdi a fala aos oito anos. Nunca entendi o porquê”, continuou Sheena. “Então, coisas estranhas começaram a acontecer... era como se eu drenasse a energia de outros tótines”.
— Drenasse? Isso te tornava mais forte?
“Não. Eu literalmente roubo a mana deles. Seus poderes são sugados para dentro de mim com um simples toque, eu me sinto como um buraco negro que a tudo consome”.
— Senhorita, isso é surreal! — disse Astra impressionado. — Nunca antes ouvi falar de alguém com um poder assim. Você é fascinante, fale-me mais.
“Muitos dizem que os tótines são uma raça abençoada. Nossa magia é o que nos torna únicos, e eu sou como fragmentos quebrados, um corpo composto por pequenos pedaços alheios.”
— E você sente como se fosse a juíza que traz a sentença?
“De certa forma. O Totinismo prega que nossa alma pode continuar vagando conectada após a morte. A mana não pertence a ninguém de forma individual, ela é energia, é tudo ao nosso redor, e por isso deve ser devolvida ao universo.”
— Isso explica os amuletos — cogitou Astra.
“Eu acredito que nossa mana representa apenas uma parcela de nossa real capacidade em outro plano astral. Eu exerço este ofício desde os 15 anos, e no momento em que vejo a vida esvair dos olhos de alguém, é como se eu os libertasse.”
— Intrigante, para dizer o mínimo — falou Astra King. — Sabe, eu sempre fui um homem comum, mas sou maravilhado pela cultura de vocês. Os tótines são, ao meu ver, o auge da perfeição criada pelas divindades. Nós, humanos, é que somos a falha descartada deles.
“É muita gentileza sua”, expressou-se Sheena. “Mas não nos coloque num pedestal. Também temos nossos defeitos”.
— Oh, senhorita, deixe de ser humilde. Muitos pagariam fortunas para ter uma gota de poder mágico, por mais insignificante que fosse. Se me permitir, eu adoraria trabalhar ao seu lado para ajudá-la a entender coisas que nem você entende.
“Como o quê, por exemplo?”
— Apesar de sempre caminharem lado a lado como velhas amigas, você teme a própria morte.
A Silenciadora franziu o cenho, perturbada com aquela palavra. Astra causou o incômodo de propósito, ainda que seu intuito não fosse irritá-la.
— Esses amuletos que você carrega representam uma tentativa desesperada de se salvar, estou certo? Um mero gesto esperançoso que lhe permita continuar nesse mundo e cumprir o seu propósito, não é?
Sheena levantou-se alterada, encontrando dificuldades em manter a compostura para se comunicar através de gestos.
“E quem é você para dizer qual é o meu propósito nessa vida?”
— Acalme-se, senhorita. Eu entendo — disse Astra com a voz gentil. — Esse excesso de mana dentro de você faz seus sentimentos aflorarem. Você é especial, ainda que não queira ser. Você sente que há grandes feitos no seu aguardo, mas só queria ter uma vida normal.
Sheena abaixou a cabeça e cobriu seu rosto. Apesar de todos sempre dizerem que seu povo era abençoado, por que sentia que aquilo era uma maldição? Tótines nunca podiam levar uma vida normal, a sociedade cobrava grandes realizações, como se seus poderes lhes trouxessem responsabilidades para proteger os oprimidos e ajudar o reino a prosperar. Os que não tinham aptidão para exercer funções no exército ou na área acadêmica eram considerados lixos, um desperdício de mana.
“Eu só quero ajudá-la”, disse Astra King na linguagem dos sinais.
Astra aproximou-se devagar, sem querer assustar. Sua voz trazia segurança e a maneira como ele dizia se preocupar fazia Sheena lembrar-se de seu falecido pai.
— Ouça com atenção o que tenho a dizer. Com a sua permissão, eu sei como extrair essa mana de dentro de você — explicou o cientista. — Essa convergência de poderes desaparecerá, e você poderá ter uma vida normal.
“Eu não posso ter uma vida normal”, explicou Sheena. “Minha tarefa ainda não está cumprida”.
— E que tarefa é esta?
“Eu quero que os tótines se vejam livres dessa maldição a que foram incumbidos”.
— Eu lhe darei o mundo, se assim eu puder — respondeu Astra. — Mas será que como forma de troca você também poderia ajudar um velho senhor com seus sonhos?
“O que precisa ser feito?”
— Só preciso que destrua o que chamam de A Ordem do Selamento — disse o homem com a voz amável.

i

O mercado central do vilarejo mais popular no Deserto Elmud estava em seu horário comercial, com vendedores disputando pelo melhor espaço e viajantes contanto as moedas para adquirirem os melhores produtos em sua viagem pelas hostis dunas que se estendiam até onde os olhos alcançassem.
Uma garotinha de roupas esfarrapadas aproximou-se com um cesto na cabeça, sua presença era invisível aos olhos de qualquer um. Seu coração palpitava, detestava estar no meio de multidões. Ela olhou para os lados, cheia de insegurança, mas reuniu a coragem dentro de si e gritou:
— T-tem um monstro atacando a cidade!
Um grupo de cavaleiros que passava por perto riu da garotinha. O líder do clã debruçou-se sobre os joelhos para falar com ela e perguntou:
— Onde está essa criatura temerosa? Basta dizer que nós daremos um jeito!
— Tá ali.
Ela apontou para as costas do homem que se virou e deu um salto ao notar uma criatura do tamanho de um prédio, tinha olhos amarelos que brilhavam e o corpo de um assustador Dinorros. Seus companheiros morreram de rir com a cena, pois perceberam que a criatura nada mais era do que uma ilusão feita de areia. O centro do mercado ficou agitado, logo mais pessoas pararam para apreciar aquele poder mágico tão avançado.
— Então você é um tótines, não é? Sua danadinha — falou o líder dos guerreiros, tentando recuperar a compostura. Ele bagunçou os cabelos da menina, mas levou outro tremendo susto quando o cabelo da criança caiu. Os olhos dela se encheram de lágrimas, porque agora todos estavam rindo do fato dela usar uma peruca.
— Caramba, Stanley, fazendo uma criança desse tamanho chorar! — caçoou o arqueiro, um de seus colegas de equipe.
— Poxa, não foi a minha intenção... — desculpou-se o homem, sentindo-se pequeno debaixo daquela enorme armadura.
— Ah, homens, eles nunca sabem como tratar uma garota! — ouviu-se uma voz distante.
Ao se virar, o grupo de guerreiros notou uma mulher formosa caminhando em sua direção. Ela tinha longos cabelos negros, sua pele realçava sua beleza como se fosse uma filha do sol, seu corpo escultural era moldado por um vestido ousado e a maquiagem no rosto realçava que ela devia pertencer a uma tribo antiga do deserto.
Ela ofereceu colo para a garotinha, aninhando-a junto ao peito com o carinho de uma mãe.
— Calma, Tootie, eles não estavam rindo de você...
— Mil perdões, senhorita, eu jamais faria algo para uma criança chorar — desculpou-se o cavaleiro. — Você é mãe dela?
— Sou tia dela. A pobrezinha perdeu os pais muito cedo e desde então passou a viver nas ruas — respondeu a mulher. — Acalme-se, não chore... Sei que você está morta de fome, mas nós vamos encontrar um lugar para dormir.
— Vocês não têm onde ficar? — perguntou outro integrante do clã.
— Não. Somos nômades, e as apresentações de hoje não renderam tanto quanto gostaríamos. Ah, acho que mais uma noite na estalagem terá de servir.
Os quatro aventureiros se reuniram para discutir o assunto, afinal, jamais poderiam permitir que duas mulheres passassem necessidade, as noites em Elmud eram frias e seu dever com reino era oferecer auxílio aos necessitados.
— Nós estamos alojados em uma pousada aqui perto, por que não passam a noite lá conosco? — sugeriu o arqueiro. — O chefe falou que paga uma refeição e quartos decentes para vocês duas, ele não é um sujeito bacana?
— O quê? Eu ainda nem recebi o salário desse mês! — retrucou o capitão, mas a mulher já estava esbaldando charme ao seu redor, tão perto que ele sentiu uma pontada entusiasmo.
— Fariam isso por nós? Como são gentis, acomodando uma pobre mulher e sua criança em necessidade! Já não se fazem mais homens assim — disse a mulher, chegando bem perto do rosto do líder para sussurrar: — Meu nome é Cleópatra, mas se quiser pode me chamar só de Cléo.
A noite estava garantida para a Srta. Cléo e a pequena Tootie. A pousada não era muito luxuosa, mas oferecia conforto e segurança para quem passaria a noite nas perigosas ruas do vilarejo. Tootie jogou-se na cama confortável e abraçou o travesseiro de penas enquanto observava sua tia se aprontar em frente ao espelho.
— Você vai sair com aqueles homens, Srta. Cléo?
— Sim, sim — ela respondeu enquanto ajeitava um dos brincos. — Comporte-se, ouviu?
— Eu posso sair do quarto e brincar na recepção? Vi outras crianças lá.
— Nem morta! — Cléo enfureceu-se. — Quantas vezes eu preciso te falar que o mundo lá fora é perigoso? Você não faz ideia do que fariam com uma criança como você caso a capturassem. Se Ankha ainda estivesse aqui, ela concordaria, sua mãe fez de tudo para protegê-la, e agora essa missão cabe a mim.
— Tá bem... — Tootie concordou com a cabeça, indo brincar com sua pelúcia rasgada e desbotada, o único brinquedo que possuía.
A noite pareceu se arrastar. Cleópatra dissera que iria se divertir no quarto de seus anfitriões e que voltaria antes das onze da noite, mas passava das duas da manhã e ainda não havia sinal dela.
Tootie revirou-se na cama, mas não tinha sono algum. Estava triste e cansada, todo dia era a mesma coisa. Às vezes sentia até inveja das outras crianças que podiam brincar e ir à escola, mas sua presença era essencial para servir de “isca”, como sua tia a chamava.
Quanto de dinheiro será que fizeram naquela manhã? Revirou a bolsa de Cléo e diversos utensílios caíram dali — moedas de bronze, algumas de prata e apenas uma de ouro, além de artigos de maquiagem essenciais para uma mulher e uma Pérola Dourada. Tootie empilhava as moedinhas uma em cima da outra quando ouviu a porta bater com força, sua tia estava de pé do outro lado com as pernas entrelaçadas e os sapatos na mão.
— O que foi que eu te disse sobre mexer nas minhas coisas?!
— E-eu só estava contando, mestra... — desculpou-se a menina, reunindo tudo o mais rápido que pôde para guardar, mas a pérola rolou pelo lençol e foi direto ao chão.
O coração de Cléo acelerou, ela estiou as mãos de onde um pilar de areia formou-se a amorteceu a queda da pérola que por pouco não se espatifou.
— Você é uma imprestável, menina! Às vezes nem eu sei por que te acolhi!
— D-desculpa, senhorita Cléo... eu juro que estou tentando...
— Se continuar desse jeito você nunca será digna a me substituir como guardiã da...!
Cléo levou a mão até a boca, mas acabou vomitando em cima do edredom do quarto. Tootie arregalou os olhos e correu para auxiliá-la, Cléo caiu de joelhos e sentiu a cabeça girar. Teve de receber ajuda para encontrar seu caminho até o banheiro, onde Tootie a despediu e a colocou debaixo do chuveiro até que o mau cheiro e embriaguez passassem.
Tootie ficou o tempo todo a observando para ter certeza de que não faria nada de errado. Quando a raiva passou, Cleópatra assumiu que fora estúpida com sua sobrinha.
— Você é uma menina de ouro, sabia disso? — disse Cléo em um tom meigo, como se fosse uma pessoa completamente distinta de minutos atrás. — Não seja igual a mim quando crescer...
— Por que está dizendo isso? A senhorita é linda, sempre foi minha inspiração. Eu gostaria que meus cabelos crescessem e ficassem tão grandes quanto os seus, e um dia torço para que meus poderes ilusórios alcancem nem que sejam os pés da sua capacidade.
— De que adianta controlar um elemento poderoso como terra se as pessoas só me enxergam como uma vagabunda?
— Não use essa palavra, tia. Mamãe ficava brava...
— Mas é isso que sou, vendo minha integridade para qualquer idiota na rua disposto a pagar. Pelo menos estou cheia da grana agora, olha só, hah, hah... — Cléo levou a mão até seu vestido e tirou dali um saco cheio de moedas de ouro encharcado. — Cavaleiros pagam bem, é o que sempre digo! Mas o mundo lá fora é perigoso, Tootie... evite-o enquanto puder.
— Nós não precisamos de tanto dinheiro, tia! — implorou Tootie, abraçando-a debaixo do chuveiro. — Por favor, pare de fazer essas coisas, você sempre volta alterada. Eu só me importo com você.
Ao sentir o abraço dela, foi como se seu coração tivesse sido lavado da imundice. No fim das contas, viver por Tootie era o que lhe dava forças. Era melhor deixar suas ilusões fajutas e começar a cuidar daquela criança, que era quem realmente importava. Ao menor sinal de tosse por parte da pequena, sua tia desligou a água e procurou equilibrar-se para não escorregar no banheiro.
— Venha, deixe-me secar sua peruca. Não quero que você pegue um resfriado.
— Eu posso dormir na mesma cama que você hoje? — perguntou a mais nova.
— Claro, querida — falou Cleópatra. — Mas se me chutar que nem da outra vez, eu juro que te jogo para fora dessa janela.
— Eu posso comprar uma boneca nova quando formos à cidade?
— Ah, começou! Quando você crescer, case-se com um homem rico e peça tudo que quiser para ele! Ai, minha cabeça está explodindo...
— Senhorita Cléo, você está delirando — respondeu Tootie preocupada.

 

  5 comentários:

  1. "— Ah, começou! Quando você crescer, case-se com um homem rico e peça tudo que quiser para ele! Ai, minha cabeça está explodindo..."

    Seria essa mulher uma vidente? Porque eu acho que shippo um certo shippno qual o boy tem um bom salário ( talvez não honesto, though ) .

    Pois então, fomos apresentados de forma mais concreta a Sheena, a Silenciadora, e conhecemos o Sr. King, que me é muito familiar, de alguma forma ( eu sou uma pessoa com memória fraca pra nomes, então ignore se eu esqueci quem é alguém, embora eu lembre quem é Lloyd ). O que eu vi aqui foi que Erlenmeyer sempre foi como no livro, que a Silenciadora é uma mulher desconfiada, mas de certa forma, eu vejo uma "inocência" nela e vi na figura do Sr. King uma pessoa elegante, vaidosa interessante, mas, acima de tudo, manipuladora.

    Mais pra frente o ponto de vista muda pra garotinha Tootie fazendo um monstro de areia com sua magia pra tentar "enganar" o povo , cavaleiros rindo e quase achando fofo ( foi essa a impressão que tive ) e a Cléo indo lá "salvar a cena" pra Tootie ( embora na realidade seja tudo um plano pra ter mais alguns dias de remuneração ).

    Logo depois amos ter ali os cavaleiros "patrocinando" ( sabemos que tipo de patrocínio ) a estadia das duas numa taverna, e depois temos uma conversa entre a mais velha e a mais nova, que revela um pouco da expectativa de ambas para o futuro.

    Desculpa aí o comentário meio meh, mas foi o que consegui fazer.

    Mais um capítulo muito bom, bro Canas.

    Valeu aí e até depois!

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    1. Bill e Tootie, meu ship ♥ Chega a ser cômico a maneira como percebemos que a tia da Tootie influenciou em quem ela se tornou, acho que explica porque a Tootie atual tem tantos trejeitos dela, se esforçando para ser uma boa criada, como se estivesse acostumada a sempre servir e agir com obediência. Cleópatra é uma personagem que eu venho planejando há anos (o desenho dela estava rascunhado desde 2016~2017), mas só agora que sentei para escrever é que a conheci de verdade. Essa coisa dela ser uma espécie de prostituta surgiu de forma inesperada, sempre quis que ela fosse extravagante, mas creio que as dificuldades e a forma como ela vivia dizendo "o mundo é perigoso, fique escondida" precisava influenciar na vida da Tootie de tal forma que ela passasse os oito anos seguintes reclusa da sociedade.

      Sheena e o Sr. King são duas figuras extremamente importantes para os futuros livros. Mesmo que eles não apareçam ou sejam mencionados, seus atos reverberam na vida de muita gente na história principal, fico feliz que eles estejam agradando. Acho que são os personagens que mais gostei de trabalhar nesse especial kkkkk

      Pô cara, seus comentários continuam sempre alegrando meu dia! Sua presença é sempre bem vinda, como nos velhos tempos haha Grande abraço, Napo!

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  2. ''''O homem ficou de pé e ajeitou seu paletó branco. A Silenciadora deu um passo para trás quando o sujeito tentou lhe cumprimentar com um beijinho no rosto, nunca fora de muito contato, mas ele também não se ofendeu'''''


    Amo demais a Sheena kkkk cumprimentar por beijo é horrível mesmo

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    1. Quando você mencionou a primeira vez que se identificava demais com esse trecho, eu finalmente percebi: "Minha nossa, acho que criei a Shii" kkkkkkk Aos poucos sinto que fui colocando alguns trejeitos seus na personagem, e espero que goste da evolução da personagem até o fim do especial :3 Hoje em dia é muito difícil para mim fazer homenagens a pessoas em minhas histórias, mas agora não consigo deixar de enxergar Shii/Sheena como algo único! Muitíssimo obrigado por toda a ajuda em criá-la, vocês criaram uma antagonista maravilhosa ♥

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    2. só cheguei hoje aqui para dizer que cumprimentar por beijo ainda é horrível''''

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